O Viajante - Capítulo XLVII - Levi - Maio de 1973
Eu queria arrebentar a cara daquele mauricinho. O filho da puta abriu a boca pra falar que minha mãe não sentiu medo. Ele esteve na pele dela para saber? Era muito fácil falar isso com a mãe dele viva.
O Grilo não tinha culpa, eu sabia. Mas o moleque acabaria me matando e eu não daria esse direito a ele. Aquela minha vizinhança desgraçada sempre me quis morto e eu me recusava a morrer.
Além disso, eu nunca pedi ao moleque para que me salvasse. Se ele fez isso, que aguentasse as consequências. Era para eu ter morrido no acidente, seria um acaso merda do destino. Porém, eu não aceitaria morrer pelas mãos de ninguém.
O magrelo cabeludo parecia estar surtando. Ele tinha um olhar apavorado, não respondia ninguém e aquele mundo infernal não acabava.
— Minha mãe... — O maluco finalmente falou alguma coisa. — Eu tenho que ajudar minha mãe.
— Wolfgang? — O galãzinho filho da puta perguntou.
Senti cheiro de perigo e toquei o braço da princesa, que chorava na minha frente.
— Cuidado, Isabelle. — Avisei e ela olhou preocupada para o magrelo. — Vem.
A boneca recuou uns passos e parou do meu lado.
— Wolfgang! — A moça chamou.
O Grilo não respondeu ninguém. Ele se inclinou em direção ao enfermeiro e deu um beijo rápido nele.
— Toma cuidado... — O mais baixo falou como se estivesse delirando de febre. — Cuidado... Não se machuca...
Ele levantou do chão e tropeçou para trás, como um bêbado. O loirinho cheio de firula também ficou de pé e tentou apoiar o namorado.
— O que tá acontecendo, Wolfgang? — O Mikael perguntou.
O Grilo virou as costas e saiu correndo pela porta ao mesmo tempo que aquele som infernal ficou tão alto que quase fiquei surdo. A Isabelle cobriu os ouvidos e eu também.
Um vento forte começou, do nada, do lado de forma e os vidros da janela passaram a tremer por causa dele.
O Mikael correu atrás do Grilo e a Isabelle e eu os seguimos. Não dava para ver muito bem o que estava acontecendo, o vento soprava com força e a neblina se misturava com poeira e sujeira da rua, deixando tudo difícil de enxergar.
Vi o vulto do Grilo correr pelo portão. O enfermeiro o seguiu e eu fui atrás dos dois, com a Isabelle no meu encalço.
Corrermos até a rua e o vento ficou mais forte. Ainda assim, o Grilo corria sem dificuldade nenhuma no meio da poeira, vento e entulhos que voavam.
Ele sumiu no horizonte e não deu mais para olhar para rua, porque a poeira atingiu os nossos olhos e precisamos os fechar.
Aquilo durou mais um ou dois minutos e o vento parou de uma hora para outra, assim como o barulho infernal ficou mais baixo e foi possível tirar as mãos dos ouvidos sem ficar surdo.
— Que porra ele fez? — Perguntei.
— Ele fugiu... — Isabelle falou. — Esse vendaval foi muito estranho...
— Na rua 18... — A voz do Mikael saiu fraca, o engomadinho estava com medo. Que sentisse todo o medo que dizia ter faltado à minha mãe. — Ventou uma vez. Foi quando a gente achou os cadáveres no ônibus, vocês lembram?
Lembrei do dia em que abri o caminho da lataria do ônibus com uma marreta e todos nós ouvimos um vento forte uivando do lado de fora da lata velha.
Isso foi há pouco mais de um mês atrás e eu tinha tudo naquela época. Eu jamais imaginei que minha mãe iria embora assim, de uma outra para outra. Pensava que ela ficaria mais velha e mais mirrada em sua cadeira de rodas até os cabelos ficarem brancos, com netos enchendo seu saco e uma linda nora.
Como eu era imbecil.
— Verdade! — A boneca me tirou dos meus pensamentos. — O Wolfgang tava muito assustado. Todo mundo tava... — Aqueles olhinhos, que me encararam, eram sempre espertos, não importava o tamanho da cilada que estávamos metidos. — Igual hoje.
— O moleque fez o vento, é isso? — Minha pergunta saiu abafada e sem vida. Eu estava cansado e muito puto, tudo o que eu queria era que aquela merda chegasse ao fim e o mundo voltasse ao normal.
— Parece que sim. — Ela respondeu.
— Porra, que merda. O Grilo não vai acabar com essa palhaçada?
— Ele não consegue controlar, Levi. — O mauricinho falou. Olhei para ele sentindo a raiva queimar em mim, doido para dar um soco na sua cara.
E senti pena. O Mikael estava olhando para o fim da rua, onde o magrelo virou a esquina e sumiu
Eu era um otário.
— Eu não tenho culpa, porra. — Porém, ainda que eu estivesse com pena, não podia aceitar o Grilo brincando com o mundo. — Ele coloca a gente aqui, faz uma bagunça e vaza? Que merda!
— A gente espera um pouco. — A Isabelle falou rápido, ela sabia que o Mikael iria começar a falar merda para defender o Grilo. — Se tudo continuar como tá, a gente vai atrás do Wolfgang.
— Acho que ele foi pra casa. No dia que a gente procurou você, Isabelle... Depois do enterro da mãe do Levi... — O enfermeiro me olhou e voltou a encarar a rua. — Eu fui com o Wolfgang pra casa dele e esse fenômeno começou. A gente viu uma coisa muito esquisita. A mãe dele tava na varanda com uma versão bebê do Wolfgang nos braços. Então, saíram várias... Cópias dela pela porta.
Aquela conversa era maluca. Parecia lorota mesmo, com tudo o que estávamos passando.
Mas eu sabia que era verdade.
O Grilo tinha o direito de salvar ou tirar as nossas vidas, controlar aquele inferno e ver a mãe desaparecida quantas vezes ele quisesse.
— Ela tem várias contrapartes? — Isabelle perguntou. Eu estava em silêncio por ainda estar tentando digerir toda a loucura da situação e a raiva que crescia.
— Parece que sim. — O mauricinho respondeu.
Isabelle não falou nada. Nós três ficamos quietos e o único barulho que se ouvia era o guincho ardido.
Os minutos se passaram e nada aconteceu. Nós esperamos as coisas voltarem ao normal, porém continuamos no mundo maluco do Grilo.
Quanto mais eu esperava, pior era. Eu virei um cachorro louco que sentia raiva o tempo todo, ela fervia dentro de mim como ferro quente que queimava a pele de quem ousasse tocar. Nunca senti isso antes, apesar de todas as merdas que fiz, nunca fui um cara agressivo ou irritado.
Eu não sabia o que estava acontecendo comigo.
— Até agora, nada. É melhor a gente ir atrás do Grilo. — Quebrei o silêncio.
— Sim. — O Mikael respondeu.
Percebi que a princesa arregalou os olhos e olhou ao redor assustada.
— Você quer ficar, boneca? — Perguntei.
— As pessoas vêem a gente andando, não é? — Ela perguntou. — Na rua 18, quando tudo voltava ao normal, as pessoas não notavam nada de diferente.
— É, ninguém nunca reparou nada. Acho que elas só viam a gente andando. — Quem respondeu foi o Mikael.
— As pessoas vão me ver... — Isabelle negou com a cabeça e respirou fundo. — Tá, isso não importa agora. Vamos.
— A gente vai por um caminho mais deserto. — Sugeri, eu conhecia bem aquele lugar, sabia por onde andar sem muita gente ver. — Mas você não precisa ir...
— Eu vou. Não consigo ficar aqui esperando e quero arrumar uma forma de ajudar o Wolfgang.
O Grilo era um bom rapaz, mas todos pareciam achar que ele era a criatura mais importante do mundo.
—
Saímos da minha casa e seguimos por becos empoeirados e matagais altos. Aquela neblina nos atrapalhava a enxergar e nos perdemos algumas vezes. O barulho irritava qualquer um e o Grilo não acabava com aquilo, eu já não aguentava mais aquela luz vinda do céu, a neblina e muito menos aquela merda de som que parecia uma cigarra gritando.
Depois de muita andança, chegamos na casa do magrelo. Encontramos o portão escancarado e ouvimos um choro de bebê vindo de dentro da casa. E como se não bastasse toda essa esquisitice, estava gelado ali.
Corremos para dentro da casa e ficou mais frio ainda, eu até comecei a tremer.
Demos de cara com um carrinho de bebê na sala. Dentro dele, estava um neném que chorava alto e estava enrolado em uma manta branca. O pequeno devia estar com frio.
O Mikael se aproximou e o pegou nos braços.
— Coitado, ele tá sozinho nesse frio. — Isabelle comentou.. — É o Wolfgang, não é?
— Sim. — O loiro respondeu.
— Caralho, que coisa estranha. — Deixei escapar.
Como se o Grilo estivesse zombando da minha cara, na hora que falei isso, um moleque abriu uma porta, que provavelmente dava para um quarto, e saiu por ela.
— Deixa ele no carrinho. — O moleque era o Grilo mais novo, na idade que víamos na rua 18. —Se você levar ele embora, meu pai não vai me achar.
Parecia que, a cada minuto, aquilo ficava mais esquisito. O Mikael arregalou os olhos ao ouvir aquele absurdo.
— Ele tá com muito frio. — E rebateu.
— Eu cubro ele. — O moleque olhou em volta. — Quando tudo voltar ao normal, esse frio vai passar. Agora devolve o bebê pro carrinho.
Parecia que o magrelo era irritadinho desde criança.
Mikael obedeceu e colocou o bebê onde ele estava antes.
— O que tá acontecendo? — Isabelle perguntou para o menino marrento.
— É a última vez.
— Não... — Ouvi o enfermeiro sussurrar e as lágrimas do seu rosto brilhavam em verde por conta do brilho que entrava pelo vidro da janela.
— Não precisa ser a última, moleque. — Falei. Apesar da raiva, eu não queria que nada acontecesse com o Grilo. — Só tira a gente daqui.
— Não. Eu ainda vou decidir o que vai acontecer. — Aquele menino malcriado respondeu cheio de macheza.
— Que porra é essa? — Gritei. O bebê chorou mais alto e Isabelle segurou o meu braço, assustada. — Decidir?
— Eu não sei se quero morrer. O meu pai...
Aquela raiva crescente explodiu dentro de mim e senti o meu próprio sangue ferver, e borbulhar, em meu corpo, obrigando os meus braços e minhas pernas a se mexerem. Com o coração e mente queimando, corri em direção ao garoto, como um covarde que ameaça crianças
O moleque se assustou e tentou correr, mas o agarrei pelos cabelos.
— Você vai matar a gente? — Eu queria parar com aquilo, ele era só uma criança, mas eu não conseguia me controlar.
— Me solta! — Ele gritou.
Respirei fundo e pensei na minha mãe. Ele ficaria triste se me visse bater em uma criança. Quando pensei nisso, consegui soltar os cabelos do Grilo e foi um alívio retomar a decência.
Eu mal tinha aberto a minha mão quando senti um soco forte no meu rosto e cambaleei para trás. Fiquei tonto com a pancada e, com a visão escura, vi o moleque correr até o carrinho de bebê, o empurrar em direção ao quarto e se trancar lá dentro, junto com sua versão mais nova.
Quando a tontura passou, entendi o que tinha acontecido. Foi o mauricinho filho da puta que meteu a porrada na minha casa.
— Não encosta no Wolfgang. — Aquele lixo de enfermeiro falou devagar e entre dentes.
Meu nariz estava sangrando por causa do soco.
— Vocês têm merda na cabeça? — A boneca falou alto. — Vão começar a brigar agora?
Não adiantava. Meu sangue estava fervendo e eu estava com medo.
Medo de verdade, com as entranhas frias, me sentindo caindo do alto, olhando o chão, que iria quebrar todos os meus ossos, sem poder fazer nada para impedir.
A qualquer momento, o Grilo podia decidir acabar com a gente. Como o Mikael ainda estava o protegendo?
Fui até esse desgraçado e o segurei pelo colarinho da camisa.
— Você ainda defende aquele merdinha? O filho da puta vai matar a gente, seu enfermeirinho de bosta.
— Você não vai encostar nele. — O Mikael agarrou o meu pulso com a mão.
— Para com isso! — Isabelle tentou trazer a paz mais uma vez, sem perceber que, depois daquele soco, era impossível.
— E a gente que se foda? O moleque vai fazer o que der na telha, matar a gente e eu fico aqui esperando a morte?
— Ele... Não vai fazer isso. — Os olhos do enfermeiro estavam cheios de lágrimas. Como ele podia ser tão idiota?
— Você tá cego por ele. Mas eu não tô. Já vivi demais pra saber que ninguém aceita morrer tão fácil. O Grilo não vai aceitar e eu também não vou.
— Você não vai encostar nele. — O babaca repetiu e eu soltei o seu colarinho e o empurrei.
— Eu vou achar ele e fazer esse bosta tirar a gente daqui. — Meu rosto estava queimando de tanta raiva.
— Vai fazer isso sem machucar o Wolfgang!
— Se for preciso, eu vou arrebentar a cara do moleque! — Seria melhor ficar quieto e acalmar os ânimos, mas acabei voltando a ser um moleque do internato Santa Maria. Lá, as confusões escalavam para a porrada em dois tempos. Bastava um xingamento ou palavra torta que os meninos se atracavam como animais.
— Cala a boca, Levi! — A bonequinha ainda tentava apagar o incêndio.
Eu notei que, no meio de toda a bagunça e medo, eu me revelei um mesmo imbecil que deu desgosto para a Tereza.
Mas eu queria sobreviver. Não sabia o motivo, nada de bom me esperava. Porém, eu me recusava a ser apagado do mundo.
— Eu te mato se você machucar o Wolfgang. — O Mikael avisou com um ódio assustador na voz.
Com a ameaça, soltei o animal dentro de mim, cerrei o punho e dei um soco forte na cara do enfermeiro, com toda a raiva que eu guardava desde que ele abriu a boca para falar da minha mãe.
Carreguei, no golpe, toda a raiva das humilhações daqueles filhos da puta da vizinhança, dos monitores, dos padres do internato, do seu Jorge, de todo o lixo que já falaram de mim, das vezes que apontaram armas em minha direção e disseram que o filho da Tereza não tinha conserto e só a polícia ou a morte dariam jeito no moleque...
Ao ver o mauricinho cair para trás e bater as costas no chão, com o nariz sangrando e a sobrancelha aberta, me perguntei o que ele tinha a ver com toda a merda que eu passei. Por que eu soquei a sua cara com o ódio guardado durante toda uma vida?
Com o canto dos olhos, enxerguei a Isabelle me olhar assustada e fugir correndo da casa.
Dei-me conta do que eu fiz.
E notei que era tarde demais para voltar atrás quando o Mikael ficou de pé, com o rosto todo ensanguentado. Encarei o seu olhar e percebi que era o mesmo semblante, dos rapazes do internato, que vinha junto com a violência.
Não foi diferente, o enfermeiro foi para cima de mim e era a força física que iria decidir o resultado daquela briga.
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