O Viajante - Capítulo XLV - Levi - Maio de 1973
Ouvi alguém se mexer no matagal.
Seria bom se fosse a Isabelle, mas também podia ser um bicho ou algum bandido.
Fiquei parado. Se fosse bicho, torcia para ser um gato ou cachorro pequeno. Se fosse bandido, esperava que não estivesse armado.
Tomei coragem, dei um passo e o que estava escondido se mexeu de novo.
Mais um passo.
E o outro lado ficou em silêncio.
— Eu não quero confusão! — Achei melhor falar, pois eu não queria ser esfaqueado ou levar um tiro de algum bandido assustado.
— Levi? — Reconheci a voz da princesa. Nem vi quando ela veio correndo em minha direção, só senti o seu abraço e os bracinhos ao redor do meu corpo.
— Você tá bem? — Perguntei. Ela estava tremendo e, quando se afastou, começou a chorar, sem conseguir me responder.
Abracei a Isabelle de novo, deixei ela chorar no meu ombro e também caí no choro.
Senti o peso do mundo nas costas e o fato de que, naquela manhã, enterrei a minha mãe, bateu com força na minha cara.
A dor foi como um tiro que mata alguém quando acerta o peito e atravessa a carne. Eu não conseguia fazer mais nada, só chorar junto da Isabelle.
Depois de um longo tempo, a princesa desfez o abraço. Tentei parar o pranto, mas não consegui. O único jeito era deixar as lágrimas escorrerem enquanto eu ajudava aquele anjo em forma de moça.
— E então… Você tá bem? — Minha pergunta saiu com voz de choro.
— Eu tô muito cansada, mas não me machuquei. — Era triste olhar para a Isabelle e a enxergar tão sofrida, com o corpo todo sujo de poeira e cara cansada.
Mas ainda assim, linda.
— Vem, vamos pra minha casa.
— Levi, eu vou te colocar em risco…
— Não ligo pra isso, Isabelle. — Eu já não me importava com nada naquela altura do campeonato.
— Eu não tenho esse direito. — Isabelle tirou os óculos e secou as lágrimas com os dedos.
— Eu perdi a minha mãe... — Também precisei secar as minhas lágrimas. — Fui um babaca com ela a vida toda e perdi…
— Não fala isso… — Ela pediu.
— Eu errei muito, mas não vou errar de novo. — Eu chorava feito uma criancinha. — Você acha que eu vou largar você toda jogada? Depois de tudo o que você fez por mim?
Isabelle não respondeu.
— Vem. — Chamei. A princesa pegou uma bolsa e uma mala que estavam jogadas no chão. Peguei a bagagem maior, de suas mãos, para que ela não precisasse carregar peso.
Depois, Isabelle catou um revólver, largado no mato, e o guardou na bolsa. A força daquele anjo sempre me admirava. Isabelle era a mulher mais forte que já conheci.
—
Andamos pelas vielas até chegarmos na minha casa. As ruas estavam escuras e torci que isso fosse o suficiente para que nenhum daqueles merdas intrometidos nos vissem.
Quando abri o portão, vi o Grilo e o Mikael esperando na varanda. Eu estava notando uma coisa esquisita entre aqueles dois, eles falavam um com o outro como se fossem um casal de namorados.
Eu conheci dois caras assim no reformatório, eram boa gente e apanhavam para um caralho dos outros moleques e dos monitores.
Me senti mal com essa lembrança.
Ao ver a Isabelle, o Grilo levantou da cadeira e correu até ela. O Mikael veio atrás, com aquela cara vazia que ele sempre tinha.
— Você tá bem? Alguém te machucou? — O moleque com cara de maluco perguntou com tanta pressa que pareceu nem respirar.
— Eu tô bem. — A princesa respondeu e o abraçou.
Todo mundo ficou quieto. Estávamos acabados.
— Eu devo uma explicação pra vocês… — Ela disse depois do abraço com o Grilo. — A gente pode conversar na sala, Levi?
Eu estava sendo um péssimo homem. Acordei para a vida e resolvi agir.
— Fica à vontade, princesa. Deixa que eu guardo suas coisas pra você.
Levei a mala dela para o quarto da minha mãe.
Quando entrei naquele cômodo, pensei que não conseguia mais respirar. Uma queimação iniciou no meu peito e minha garganta pareceu estar fechando.
— Não… — Falei baixo. Fiquei tonto e comecei a chorar sem controle nenhum. Eu parecia um bebê chorão ali, soluçando com o rosto todo sujo de lágrimas.
Meu corpo doeu como se eu tivesse trabalhado o dia inteiro. Porém, o pior era a dor que eu sentia no coração.
Nenhum sofrimento que meu corpo já aguentou, e foram muitos, era pior que aquilo. Cada soco que se afundou na minha carne, cada chute nas costelas, cortes nos lábios, dedos queimados no motor dos carros… Nada era pior que a dor de perder a minha mãe.
Se eu pudesse escolher, deixaria me baterem e arrancarem meus dedos para não sentir mais todo aquele sofrimento.
Eu daria todos os anos que me restavam só para não sentir mais a perda da Tereza.
Demorei a tomar coragem para sair do quarto e, antes de ir para a sala, precisei lavar o rosto na pia no banheiro.
—
Isabelle contou tudo para nós três. O pai dela era um professor que falava para os alunos sobre as merdas que o governo fazia. Ele foi preso e desapareceu, o que significava que estava morto.
A mãe e as irmãs da princesa foram embora da cidade, mas Isabelle, muito triste e com raiva, ficou. A partir daí, ela se juntou a um jornal ilegal de sua antiga professora e começou a denunciar o regime.
A boneca tinha mais coragem que os três homens naquela sala. Nós éramos frouxos e idiotas perto dela.
Pouco depois, o Grilo e o Mikael foram embora e a Isabelle tomou um banho longo, comeu ovos fritos com pães, que preparei para nós dois, e foi dormir.
Também cedi ao cansaço, fui para o meu quarto e adormeci.
—
No dia seguinte, me levantei contra a minha vontade. Só arrumei forças porque sabia que a Isabelle precisava de mim.
Logo eu teria que voltar ao trabalho. O corno do Jorge me deu só três dias de afastamento e isso me assustava. Ele era um desgraçado e, só de pensar em olhar para aquela cara inchada, sentia vontade de quebrar tudo na minha frente. Fiquei com medo de fazer alguma merda quando voltasse a trabalhar.
Mesmo após sair da cama, eu continuava sonolento e com o corpo pesado. Aquele dia iria ser difícil. E todos os outros depois dele também.
A vida nunca mais seria a mesma.
Fui até a cozinha para preparar café e encontrei Isabelle conversando com a Lurdes.
— Bom dia, meu bem. — A vizinha me cumprimentou. — Como você tá?
— Bem… — Eu ainda estava um pouco tonto. Olhei para Lurdes e depois para a Isabelle. — E vocês?
A jornalista apenas assentiu.
— Tá difícil… — A velha disse com uma voz triste. — E sei que você não tá bem, não precisa mentir.
Apenas suspirei e balancei a cabeça. Eu não queria falar sobre a minha mãe.
— Vem, senta. Eu fiz café e bolo pra vocês. — Lurdinha pediu e eu obedeci.
Ficamos em silêncio. Os três carregavam tristeza no olhar, aquela casa não tinha mais felicidade.
Nem a Lurdes, que era uma matraca, puxou conversa. Nós três tomamos café sem dizer nada.
A vizinha voltou para a sua casa após um tempo e a Isabelle e eu ficamos ali, calados.
— A dona Lurdes tá certa, você não tá bem. — A princesa disse e eu a olhei. Ela não estava arrumada, usava apenas uma frouxa camiseta branca e calças folgadas da mesma cor, sem maquiagem nos olhos e nem brincos na orelhas. De algum modo, assim, ela parecia ainda mais um anjo. Eu me sentia um merda por ser apaixonado por algo tão puro.
— Não tá fácil. — Eu não podia ser fraco na frente dela.
— Eu sei… — A boneca abaixou o rosto. — Nada vai consolar você… E a dor não vai diminuir. — Sua voz era de choro. — Mas você vai precisar seguir. Mesmo que, em alguns dias, tenha a sensação que não vai aguentar… — Ela negou com a cabeça. — Merda, eu não tô ajudando. Eu só quero te dizer que você não tá sozinho.
Assenti com a cabeça, eu não sabia o que responder, porém era bom ter a Isabelle ali comigo.
Não me importava se ela não sentisse o mesmo por mim, eu só queria estar perto da princesa, ainda que como um amigo.
Fiquei encarando aquele rostinho lindo, afundado nos seus olhos de jabuticaba.
Olhar para ela era como ver um pôr do sol bonito, que dá medo de fechar os olhos e perder a beleza daquele momento.
De repente, sua pele foi iluminada pela luz verde que entrou pela janela e aquela merda de barulho irritante invadiu os meus ouvidos.
Fiquei puto. Depois de tudo o que aconteceu, eu não tinha mais cabeça para aquela história. O Grilo fez todo mundo sentir uma dor do caralho da última vez que foi na rua 18. Naquele dia, pareceu que os meus ossos estavam queimando, eu quase me mijei e minha mãe morreu na madrugada seguinte. Só de pensar nessa bizarrice do magrelo, eu já sentia vontade de vomitar.
— Porra, eu não aguento mais isso! — Falei ao esfregar os olhos com os dedos.
— Calma. — Isabelle pediu. — Logo acaba.
— Essa merda tá me irritando pra caralho.
— O Wolfgang não consegue controlar. Ontem isso também aconteceu. Tem algo novo nessa história.
— É, ontem ele ficou com o nariz sangrando. — Eu simpatizava do Grilo, considerava ele um amigo, mas eu queria que ele me livrasse daquela coisa.
— Eu trouxe os documentos da investigação, depois vou conversar com ele.
— Isabelle, eu quero ficar de fora disso.
— Tudo bem, Levi. — Vi seu sorriso lindo e triste ser iluminado pelo brilho verde.
Logo, as coisas voltaram ao normal. O vômito parecia estar doido para escapar da minha boca e eu estava meio zonzo.
— O pior de tudo é que o Grilo tá morrendo por nossa causa. — Falei depois de um tempo. Pensar naquilo me deixava pior do que eu já estava, mas era um fato que não podia ser ignorado.
— A gente… Não tem certeza. — A boneca esfregou o rosto com a mão e desviou os olhos.
— Foi o que ele mesmo, ainda moleque, falou.
— Eu quero achar um jeito de evitar…
— Só se ele voltar de novo pra 1966 e deixar a gente morrer… — Aquilo veio na minha cabeça do nada e, quando percebi, estava arrepiado de medo.
— A versão mais nova do Wolfgang tentou isso… — Isabelle franziu a testa e arregalou os olhos. — No dia que a gente sentiu aquela dor…
A linda moça se levantou, saiu da mesa com pressa e logo voltou com uma pasta de couro nas mãos.
— Desculpa, eu sei que você quer ficar de fora disso, mas eu não posso perder o fio da meada. — Isabelle se sentou na cadeira, abriu a pasta e pegou uns papéis que estavam dentro dela.
— Relaxa, eu quero entender… — Não soube como continuar, mas o que eu queria saber era se o Grilo podia matar a Isabelle, o Mikael e eu.
— Wolfgang é o causador do fenômeno. Tem convulsões anormais e sem sequelas quando entra em contato com o estranho acontecimento. Seu nariz sangra. Ele sente tristeza, medo… E me pediu desculpa por ter feito alguma coisa, mas não se lembra o que é. — Ela leu em voz alta.
— O Grilo tá sempre com medo de morrer. — Me recordei que o magrelo já tinha falado aquilo várias vezes.
A boneca folheou os papéis que segurava e os examinou com os seus olhos espertos debaixo dos óculos.
— Eu comecei a anotar todos os nossos encontros e idas até à rua 18. Em todos eles, o Wolfgang tinha um tipo de… — Ela franziu a testa. — Sentimento ou memória, sem saber direito o que causou. É como se elas não seguissem uma ordem no tempo. Ele sentia medo de morrer muito antes de descobrir que… Isso pode acontecer.
— E ele te pediu desculpa no dia que surtou e saiu correndo na chuva, lembra?
— Quando perguntei o motivo, o Wolfgang me disse que não sabia, mas que se sentiu um verme…
— Se ele tá sentindo culpa, é porque vai fazer alguma coisa ruim. — Eu não achava o Grilo uma má pessoa, mas sabia o que um cara com medo era capaz de fazer. Já vi muitos moleques, no reformatório, virarem animais quando ficavam assustados.
— O Wolfgang não é assim. — Isabelle pegou os papéis sobre a mesa e os empilhou. — Deve ter outro motivo.
Eu a entendia. Nenhum de nós dois queria que o Grilo morresse, ele era nosso amigo e não dava para acreditar que aquele magrelo chorão era capaz de machucar alguém. Sabíamos que ele era uma pessoa boa. Entretanto, depois de tantas merdas que vivi, seria burrice pensar que o moleque iria escolher morrer por livre e espontânea vontade.
Não falei nada para a Isabelle, tudo estava difícil demais, mas eu sabia que, uma hora, o Grilo iria mudar de ideia.
E ele não era Deus para ter o direito de mudar o destino de três pessoas.
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