O Viajante - Capítulo XLIX - Rosa - 1953 a 1954
Setembro de 1953
Eu estava esperando o Willi chegar em casa. Já não havia dúvidas, para mim, de que eu estava grávida. Tive uma longa conversa com a Norma no dia anterior e ela compartilhava a certeza, dizendo que até mesmo demorei a perceber o bebê dentro de mim.
Há algumas semanas, parei de vomitar e comecei a sentir muita fome, notei que os meus vestidos estavam apertados, além de me sentir cansada e meus seios estarem inchados e doloridos. Porém, o maior sinal de que eu esperava um filho, eram minhas regras não virem há três meses. Meu marido pensava que eu estava doente e andava preocupado comigo e, com a diminuição dos vômitos, imaginou que eu estivesse me recuperando.
Levei a mão até minha barriga e imaginei como estaria o meu filho. Seria um menino ou uma menina? Puxaria o Willi ou se seria parecido comigo? Imaginei seus primeiros passos, as primeiras palavras, as brincadeiras que o pequeno inventaria, o som de sua risada...
Sorri de um jeito bobo ao pensar na criança que nasceria.
— Eu não vou fazer com você o que fizeram comigo. — Acariciei minha barriga como se eu pudesse tocar o meu bebê. — Vou te dar muito amor, meu anjo. E o seu pai também. Você vai ser feliz com a gente.
Ouvi a porta abrir e me levantei do sofá. Minhas pernas doeram com aquele movimento e as senti pesadas. A cada segundo, ficava mais nítida a gravidez. Norma estava certa ao dizer que demorei a notar.
Eu não consegui correr até ele como costumava fazer, mas acelerei o passo, meu amor me envolveu com os braços e me beijou.
— Oi, pequena. — Aqueles olhos azuis encararam os meus e eu esbocei um sorriso. Porém, minhas mãos estavam frias, eu estava muito nervosa por ter que contar a ele sobre o nosso filho. — Você ficou bem hoje? Não passou mal?
— Fiquei. — Desviei os olhos e não consegui voltar a encará-lo. — Willi, a gente precisa conversar.
— Aconteceu alguma coisa? — Sua voz se tornou séria.
— Não... — Me soltei do abraço e voltei a me sentar no sofá. Wilhelm se sentou ao meu lado e me fitou com preocupação.
— Eu já tô doente há um tempo... — Segurei sua mão calejada para tomar coragem e meu marido me retribuiu com um leve carinho nos cabelos. — Mas eu não te contei tudo.
— Do que você tá falando, Rosa?
— Sabe... — Me esforcei e o olhei nos olhos. Eu tinha a obrigação de o encarar ao lhe contar que ele seria pai. — As minhas regras não vêm há três meses, eu te escondi isso... Porque... Achei melhor ter certeza, já que elas nunca foram muito certas. Depois eu conversei com a Norma...
Ele franziu o cenho, deduzi que Willi já imaginasse onde eu ia chegar e, portanto, decidi falar logo de uma vez.
— Eu tô grávida, Willi.
Seus olhos se arregalaram, os lábios se tornaram pálidos e suas mãos ficaram geladas. Senti medo. E se meu filho fosse uma criança indesejada como eu fui? Eu não queria isso para a minha criança.
O alívio veio quando vi o seu sorriso se abrir e as lágrimas inundaram os seus olhos. Wilhelm me envolveu em um abraço e senti tanta alegria que gargalhei. Após o abraço, ele tocou meu rosto com uma mão e me beijou várias vezes.
Aqueles olhos azuis olhavam os meus com tanta felicidade.
— Você ficou feliz. — Comentei ao me aninhar contra o seu ombro após nosso último beijo.
— Claro que fiquei, pequena. — Senti a palma de sua mão sobre a minha barriga e ele a acariciou. — Eu vou ter um filho com você. Não existe nada que me faça mais feliz do que essa notícia.
— Eu amo você, Willi. — Sussurrei e os seus lábios depositaram um beijo em minha bochecha.
— Também amo você.
Ele beijou meu rosto de novo e me senti em paz. Desde de que nasci, sempre sonhei em ter uma família. Esse sonho, por muito tempo, me pareceu só uma fantasia, mas as coisas mudaram quando conheci o Wilhelm.
E, com meu bebê, minha família iria aumentar e eu seria ainda mais feliz.
Abril de 1954
As dores começaram há horas atrás e só faziam aumentar. Descobri que, no final da gravidez, era normal sentir algumas contrações rápidas. Norma me contou tudo o que passou quando estava grávida da Ana.
De fato, essas dores vinham e passavam. Entretanto, as que eu estava sentindo naquele dia não foram embora. Quando Willi avisou a Norma, ela disse que era início do parto. Fiquei assustada, eu não sabia o que viria, tudo o que eu tinha era um relato doloroso da minha cunhada.
Eu estava deitada na cama há horas e minhas dores estavam insuportáveis. Norma chamou uma parteira para me ajudar e a única coisa que ela fazia era olhar entre as minhas pernas e dizer para eu fazer força.
Wilhelm estava ajoelhado ao lado da nossa cama, segurando a minha mão. Sua irmã permanecia de pé, observando o parto.
— Força, menina. — A parteira falou.
— Eu tô fazendo força... — Não consegui terminar porque precisei gritar devido a mais uma dor horrível.
— Empurra, você consegue!
— Não consigo! Para de falar que eu consigo! — Eu estava irritada, pois começava em mim um sofrimento pior que a das contrações. — Willi, eu não consigo!
— Calma, pequena. — A voz do meu marido estava trêmula. — Só mais um pouco. Você é forte, a mulher mais forte que conheço.
Wilhelm afastou os cabelos da minha testa suada. Eu não consegui responder, só gritei e, com uma mão, empurrei a minha barriga. Tudo ali embaixo queimava, era muito doloroso.
— Tá quase, menina. Tá perto de sair. — A mulher não pareceu se importar do jeito que falei com ela. Talvez estivesse acostumada com mães irritadas.
— Força, Rosa. Antes do bebê sair, dói mesmo. — Ouvi a Norma dizer.
Os meus gritos foram perdendo, aos poucos, a força, pois a dor tomou até o ar dos meus pulmões. Sentia como se estivessem colocando fogo em mim. Já não havia mais voz, na minha garganta, quando apertei a mão do Willi com força. Eu tive a certeza de que iria desmaiar naquele momento.
E a dor sumiu.
Fiquei tonta e, em um intervalo de segundos, a voz da parteira e o choro do meu filho se misturaram.
Meu bebê tinha nascido, estava ali no mundo e eu poderia demonstrar todo o meu amor por ele. Encarei o Willi, ele sorriu para mim e eu senti o meu corpo cansado relaxar contra a cama.
— É um menino. — A parteira anunciou. — Já entrego ele pra vocês.
As lágrimas banharam o meu rosto ao imaginar como seria assistir o meu menininho crescendo e aprontando.
— O nome dele é Wolfgang. — Sussurrei para o Willi. — O nome do seu pai, como você me pediu.
Seus olhos transbordaram em um pranto emocionado e ele beijou o meu rosto.
— Eu amo você, pequena.
— Também te amo.
A mulher que fez o parto me entregou o bebê enrolado em um manto. Eu queria tanto ver o meu Wolfgang e saber como ele era. Aninhei o meu filho contra o meu peito e olhei para os seus olhos, que eram negros como os meus.
E fui ensurdecida pelo guincho agudo que preencheu o ambiente e perdi minha consciência.
Novembro de 1954
Olhei para o meu bebê sentado em meu colo. O Wolfgang era muito parecido comigo, tinha olhinhos e cabelos pretos. Os fios do cabelo eram bagunçados e ele já os tinha em grande quantidade. Do Willi, ele herdou só a cor da pele.
Era uma criança perfeita e muito inteligente. Já falava "mama" para mim e "papa" para o pai, chorava quando ouvia a palavra "não" e gostava de empilhar três blocos de madeira e coloridos que o Wilhelm comprou para ele. Se eu deixasse, o Wolfgang passaria o dia inteiro fazendo isso.
Cuidar de um filho era uma tarefa exaustiva. O Willi trabalhava o dia todo e só podia ficar com ele à noite e aos domingos. Norma já tinha dificuldades o suficiente com a Ana, não dava para ela ficar indo em minha casa. Portanto, eu estava quase sempre cuidando do meu bebê sozinha.
Tudo o que tinha por aquela criança era amor, porém eu estava cansada. Só queria dormir uma noite inteira de novo ou poder fechar os olhos por alguns segundos. O meu Wolfgang queria ficar comigo até quando eu estava no banheiro.
Naquela manhã, ele estava chorando. Às vezes, a criança chorava sem nenhuma razão. Era difícil entender o que ele queria me dizer. Não estava sujo ou molhado, se recusou a dormir e declinou o seio e as frutas que eu oferecia.
— O que foi, meu anjo? — Indaguei, fazendo carinho nos seus braços pequenos. Ele era um pouco menor do que o esperado para a idade, mas era saudável. Isso era tudo o que importava.
O pequeno não parou de chorar. Não sei quanto tempo se passou com aquele lamento ininterrupto. Eu estava aflita ao vê-lo tão nervoso e me perguntei se o Wolfgang estava sentindo alguma dor. Também não suportava mais o som do choro, por mais que me sentisse uma mãe horrível por isso.
Ele não parava. Pensei que talvez ele não tivesse mamado o bastante. Às vezes, o Wolfgang só se acalmava após eu o amamentar enquanto conversava baixinho com ele.
Dei-lhe o seio e recostei no sofá. Seu choro cessou, embora continuasse resmungando. Enquanto o alimentava, comecei a falar com o meu anjo para que ele dormisse.
— Você é tão bonito, meu amor. Mas só sorri pro seu pai, não é? — Percebi os seus olhos se fechando e os resmungos pararam. — Por que não abre o seu sorrisinho banguela pra mim? — Sorri bobamente e senti o meu coração se aquecer de amor.
O silêncio se instaurou na sala, fez o meu corpo relaxar e meus olhos pesaram, eu estava cansada. Os cuidados com o Wolfgang tomavam todo o meu tempo, até os horários em que eu deveria dormir. Eu o carregava para todos os lados, trocava as fraldas e as lavava, dava banhos, brincava com ele e só tinha alguma folga à noite, quando o Willi assumia os cuidados. Às vezes ele chorava no colo do pai porque queria voltar para o meu e eu tornava a pegá-lo em meus braços, não dava para resistir ao choro daquela coisinha pequena.
A exaustão cobrou seu preço, meus olhos se fecharam contra a minha vontade e adormeci.
Dormi por um tempo que eu fui incapaz de contar.
Sem ter noção dos minutos que se passaram, abri os olhos bruscamente e me assustei. Meu coração acelerou e parecia prestes a sair pela minha boca. Olhei para a criança em meus braços e percebi que ela estava parada.
E não parecia respirar.
Afastei ele de mim e vi seus lábios azulados e olhos entreabertos.
— Wolfgang! — Eu nem sentia mais minhas mãos e minhas pernas de tanto que elas tremiam. Minha cabeça girou e as lágrimas vieram como uma enxurrada. Era impossível acreditar no que eu via. Aquilo tinha que ser um pesadelo.
Me como se estivesse sendo eviscerada viva, pois minha barriga estava gelada e meu peito ardia, cada osso dentro da minha carne explodia de dor e eu tremia violentamente. Queria ser mutilada e morrer, ser rasgada em pedaços, sangrar e ser sacrificada. Queria tudo menos perder o meu filho. Eu aceitaria qualquer coisa para vê-lo respirar.
— Meu anjinho, acorda! — Gritei. — NÃO FAZ ISSO COMIGO, WOLFGANG! — Eu tinha que estar errada. Ele iria respirar e chorar.
Que o destino me tirasse tudo, menos o meu filho. Eu aceitaria todos os castigos da vida de bom grado e ainda ajoelharia em gratidão se o Wolfgang voltasse para mim.
— Acorda. Eu tô te implorando! — Supliquei. Meu bebê tinha que me ouvir. Eu não iria aguentar perder o meu filho.
Não podia ser real, eu não queria acreditar que era real.
Nem mesmo me importei com a luz esmeralda que nos iluminava e aquele som irritante. Tudo o que meu coração desejava era ver o Wolfgang respirar.
Gritei tanto, tão alto, com tanta dor...
Que tudo escureceu.
—
Quando abri os olhos, percebi que estava sentada no sofá sem o bebê nos braços e, ao olhar para o lado, vi uma cópia minha dormindo com o Wolfgang ao seio.
— Acorda! —Berrei, a outra Rosa abriu os olhos, se sobressaltou e gritou ao se dar conta que o nosso pequeno não respirava.
Aquela cena se repetiu por dozes vezes e, a cada vez que ela acontecia, tinha mais uma de mim na sala. Todas gritavam ao mesmo tempo para que a Rosa, adormecida, acordasse.
Berramos até as nossas gargantas doerem e, quando já quase não havia espaço para tantas mulheres na sala, a Rosa, que amamentava o Wolfgang acordou, e encarou o filho no momento exato em que ele começou a se engasgar.
Ela apertou sua barriga, o bebê vomitou o leite...
E chorou.
Ele estava respirando. Meu filho estava vivo! O meu maior amor voltou para mim. A felicidade consumiu o meu coração e eu ri de tanta alegria.
Tudo escureceu ao meu redor em meio às minhas risadas, mas eu não senti medo. Não tinha o que temer se minha criança respirava.
—
Ao acordar, me vi na sala, com o Wolfgang em meus braços, chorando e sujo de vômito.
— Me perdoa, meu anjinho. — Abracei o meu bebê e o pranto úmido molhou meu rosto. — Perdoa a mamãe.
Fiquei tonta e meus braços e pernas perderam a força. Com esforço, fiquei de pé e coloquei o Wolfgang no seu carrinho. Eu não queria o deixar cair.
Senti vontade de vomitar e uma dor forte percorreu o meu corpo. Caminhei, cambaleando, para a varanda da casa. Minha visão escureceu e esbarrei na porta, porém continuei a andar até chegar ao muro da casa e me apoiar nele.
Algo me veio à mente, como se uma misteriosa informação se revelasse.
A cada vez que voltei no tempo para salvar o Wolfgang, o tempo da minha vida diminuiu. Foram doze tentativas até conseguir encontrar o momento exato em que o Wolfgang engasgou. As mudanças no destino cobravam um preço e já não havia mais tempo para mim.
Eu iria morrer dali algumas horas. Era uma vida pela outra.
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