O Viajante - Capítulo XLI - Levi - Maio de 1973
Acordei com o telefone tocando.
Pelo vidro da janela, vi que ainda estava escuro, era madrugada.
Uma ligação naquele horário não era boa coisa.
Levantei da cama, corri até à sala e atendi o telefone.
- Alô. Eu falo com o senhor Levi da Costa? - Uma voz de mulher falou do outro lado da linha.
- Alô. Ele mesmo.
- Aqui é do Hospital São Francisco de Assis...
Minha mãe morreu. Foi nítido, como se uma lâmpada tivesse acendido nas minhas ideias.
Só um imbecil para não perceber isso. Por que outro motivo o hospital ligaria de madrugada?
- Precisamos que o senhor venha até o hospital. - Ela continuou.
Não restavam dúvidas.
- Tá. - Só consegui responder isso e desliguei o telefone.
Não tinha nada na minha cabeça nem no meu coração.
Uma vez, no Santa Maria, três moleques arrebentaram a minha cara. Eu não senti nada na hora, só queria bater neles de volta.
Mas, à noite, quando deitei na cama para dormir, parecia que tinha alguém enfiando ferro em brasa no meu rosto.
Iria acontecer de novo. Eu não sentia porra nenhuma e nem mesmo pensava. Porém, uma hora isso passaria e eu iria sentir a dor de um ferro em brasa na minha carne.
Afinal, minha mãe morreu.
Morreu...
Repeti aquilo uma, duas, três vezes... E nada.
Me assustei com o toque do telefone que fez meus ouvidos doerem.
- Levi. - Ouvi ao atender. Era a voz da Isabelle. - O Mikael ligou do hospital e me avisou que você precisa ir pra lá agora.
- Minha mãe morreu. - Ainda não sentia nada.
- Eu tô indo pra aí. - Ela sabia. O Mikael, com certeza, contou.
A recordação de quando era um molequinho e resolvi jogar pedras das janelas dos vizinhos veio como um som de rádio na minha cabeça vazia.
Vi a minha velhinha, que era jovem nessa época, subindo a rua e me pegando pela orelha enquanto gritava comigo.
Tereza andava e tinha saúde quando isso aconteceu.
E eu ainda não sentia nada...
Minha cabeça estava tão vazia que demorei a notar que eu não podia ir para o hospital com aqueles trapos que eu usava para dormir.
Vesti minhas únicas calças e uma camisa qualquer e calcei os sapatos. Depois, tomei o resto de café que encontrei na cozinha.
Nada...
Eu não sentia nada.
Ouvi a Isabelle me chamar no portão e fui até lá e me deparei com aquele anjo parado ali, me esperando.
Vi que seus olhos, debaixo dos óculos, estavam cheios de lágrimas.
Saí pelo portão, ela me cumprimentou e entrou no carro. No momento em que puxei a maçaneta do passageiro, ouvi um barulho baixo vindo da calçada.
Olhei e vi uma gata cinza com uma ratazana morta na boca. Três gatinhos a seguiam. Dois eram cinza como ela e um era branco e preto.
Os pimpolhos miavam baixo atrás da mãe e corriam no ritmo apressado da gata.
Segui, com os olhos, aquela mãe gata e seus filhos virarem em um beco e desapareceram da minha vista.
A mãe caçou uma ratazana enorme para alimentar sua cria. Naquela madrugada gelada, aquela família sem pai iria comer e então a gata iria lamber os filhotes e encontrar um lugar quente para todos dormirem.
Apenas ela e seus filhotes, pois eram gatos de rua, não tinham donos.
Tudo o que os gatinhos tinham era a mãe.
Que eles fossem filhos melhores do que eu fui.
Afinal, em 21 anos, consegui encher minha mãe de desgostos e não lhe dei um único orgulho.
- Levi? - Ouvi a Isabelle chamar.
Respirei fundo e entrei no carro, com medo do que ainda viria pela frente.
-
O caminho até o hospital pareceu durar horas.
Assim que a Isabelle estacionou o carro, desci do veículo corri para dentro do prédio antigo.
Toda a enrolação de conversar com a recepcionista e esperar o médico me chamar pareceu não existir, como um branco na memória.
Quando dei por mim, estava sentado em uma cadeira da recepção com a Isabelle na cadeira ao lado.
O médico que socorreu a minha mãe se aproximou de mim e pediu para eu o seguir até uma sala. Eu o obedeci e Isabelle veio junto comigo.
Assim que entramos no cômodo, que era uma salinha branca com uma mesa e uma maca, o homem fechou a porta.
- Levi. - Ele me olhou nos olhos. - Sou o Antônio, o médico que tava de plantão quando sua mãe deu entrada. Lembra de mim?
Só balancei a cabeça, minha garganta não estava funcionando. Nada saía dela.
- A paciente Tereza, sua mãe, veio a óbito hoje às 4:47 da madrugada. Ela teve uma parada cardíaca devido a um choque séptico... - Ele continuou a explicar com aqueles jargões de bacana estudado, mas eu parei de o ouvir.
A voz dele ficou longe como se falasse há muitos metros de mim.
Isabelle me abraçou. A vertigem fez o mundo ao meu redor girar. Se aquele anjo não estivesse me envolvendo com os braços, eu teria caído no chão.
- Eu sinto muito, Levi. - A bonequinha falou com uma voz de choro.
O médico tocou o meu ombro depois de parar com sua explicação que ninguém entendia.
- Meus pêsames. - Doutor Antônio disse antes de se afastar e sair da sala.
A princesa também se afastou e me olhou nos olhos. Ela estava chorando e eu não.
Eu não conseguia chorar, falar ou reagir.
Vi a porta da sala abrir e o Mikael entrar. O enfermeiro andou até mim, tocou o meu ombro e me olhou com tristeza.
- Eu sinto muito por isso, Levi.
Meu corpo não se mexia. Tudo ficou longe demais. As vozes deles dois ficaram distantes como a do doutor e meus braços e pernas pareciam balões vazios e leves.
Tive mais um branco na cabeça.
E só voltei à mim quando precisei assinar alguns papéis no hospital.
Depois disso, a Isabelle me deixou em casa. Ela e o Mikael disseram que iriam resolver as burocracias do enterro. Entreguei a eles o meu dinheiro guardado para que Tereza tivesse ao menos um velório decente.
Pelo menos isso um desgraçado como eu podia oferecer à mãe.
-
Era umas 6h da manhã quando cheguei do hospital.
A primeira coisa que fiz foi dar a notícia para a Lurdes.
Nem precisei terminar de falar para ela cair no choro. A única coisa que podia fazer era abraçar minha mais velha amiga e fazer carinho nos cabelos dela.
- Meu Deus, minha Terezinha... - Ela falou no meio do seu choro. - Minha irmã de coração...
Lurdinha chorava tanto que molhou minha camisa com suas lágrimas.
E eu ainda não sentia nada.
-
Minha casa começou a encher de gente. A coitada da Lurdes tentava receber aquelas pessoas com gentileza, já eu não conseguia reagir.
Todo mundo que estava ali me olhava com cara feia. Eu era o filho vagabundo da falecida, que só deu trabalho para ela.
Fiquei sentado no sofá com a Isabelle do meu lado. O Mikael apareceu no final da manhã e o Grilo foi para lá no início da tarde.
Só eles três e a Lurdes ficavam perto de mim. Os urubus, na minha casa, passavam por mim, me olhavam com cara de merda, diziam "meus pêsames" e se afastavam.
Umas 4 horas da tarde, o caixão chegou e dois caras da funerária o colocaram em um suporte de metal que foi montado, no meio da sala, por um terceiro homem.
O caixão era tão pequeno. Minha mãe estava dentro dele, como ela cabia ali, em um espaço tão minúsculo?
Os rapazes tiraram a tampa do caixão e eu me levantei do sofá e me aproximei.
Lá estava ela. Seu corpo estava coberto por um véu branco. Minha Terezinha usava um vestido preto, estava com seus cachos penteados e tinha um terço, de contas brancas, enrolado em sua mão. Os olhinhos estavam fechados, como se estivesse dormindo um sono tranquilo.
- Mãe...
Quando essa palavra escapou da minha boca, a dor veio. Minha carne foi perfurada por ferro em brasa. Ele quebrou todos os meus ossos e acertou o meu coração.
As lágrimas pingaram sobre as flores brancas que envolviam minha mãe da cintura para baixo, como um cobertor.
Lembrei dos olhos dela agonizando e seu sussurro sobre o filho que foi preso.
O ferro quente dilacerava o meu coração e perfurava várias e várias vezes. Cortava ele em mil pedaços, como um açougueiro que tritura a carne vermelha e sangrenta até não sobrar nada inteiro.
Minhas vísceras gelaram. Pareciam morrer junto da minha alma enquanto eu descia ao inferno.
Com o corpo tremendo e as lágrimas molhando a minha cara, me afastei do caixão e saí pela porta da sala, em passos rápidos.
As pessoas ficaram me olhando.
Atravessei a varanda da casa e saí pelo portão. Tinham mais urubus na calçada. Todos me encaravam com aquelas caras de merda e nariz retorcido.
Um deles era o filho da puta do Ernesto. A porra do vizinho que sempre me xingava quando eu passava por ele. Nunca respondi, porque pensava que ele tinha esse direito devido aos meus erros do passado.
Mas se eu era o vagabundo maldito, bandido e marginal, eu não deveria deixar barato. Eu era um merda sem caráter aos olhos de todos.
Então que tudo se fodesse.
Ouvi aquele lixo do Ernesto sussurrar alguma coisa enquanto me olhava como se estivesse vendo um verme.
- VÃO SE FODER! EU QUERO QUE TODOS VOCÊS SE FODAM! - Berrei o mais alto que pide.
Andei em direção ao velho e o agarrei pelo colarinho de sua camisa. Foi tudo muito rápido, eu nem me dei conta de quando cheguei àquele ponto.
Eu estava cego de raiva. O velho me xingou, as pessoas ao meu redor começaram a fazer escândalo e eu joguei aquele desgraçado no chão.
Um vizinho, que eu nem lembrava o nome, se colocou entre eu e o Ernesto e eu o empurrei com força.
- Bandido! - Ernesto gritou do chão. - Você matou sua mãe de desgosto!
Fui para cima dele e o homem, que tinha me empurrado, tentou me segurar de novo e eu dei um soco na cara daquele corno.
- Sai! - Berrei.
- Filho da puta. - Ele respondeu, segurando o nariz que sangrava.
Dois caras seguraram os meus braços. Eu estava pronto para os empurrar e bater neles. Porém, parei ao perceber que eram o Mikael e o Grilo.
Isabelle entrou na minha frente, ficando diante do filho da puta que soquei a cara.
- Some daqui! Todo mundo! - Ela falou do jeito mandão pelo qual eu era apaixonado. - Sai, sai! E você, ajuda o velho! - Ordenou para o cara com o nariz sangrando.
- Quem é você pra falar assim? - Ele perguntou.
- Você não quer proteger esse velho? Então ajuda ele!
O homem obedeceu e ajudou o Ernesto a se levantar. As pessoas me xingavam e insultavam a Isabelle também, mas pelo menos foram embora.
Eu só não reagi porque ela se virou em minha direção, tocou meu rosto com suas mãos macias e me olhou nos olhos.
Ver aquele rostinho delicado, sua covinha no queixo e olhos espertos, me acalmou.
- Deixa eles, Levi. - A princesa disse e meus olhos ficaram presos naqueles lábios carnudos.
A raiva sumiu e o que sobrou foi a dor. Todos os pedaços dilacerados dentro de mim vazaram em forma de lágrimas e soluços.
O Grilo e o Mikael me soltaram. O enfermeiro deixou a mão em meu ombro e o magrelo ficou do meu lado, me olhando com olhos de choro.
A princesa me abraçou e eu chorei nos seus braços.
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