O Viajante - Capítulo VII - Mikael - Fevereiro de 1973
Não era mais uma novidade ter aqueles sonhos. Percebi que o Wolfgang agora olhava a neblina com atenção e, vez em outra, desatava a caminhar.
Tinham se passado quatro dias desde que conversamos na cafeteria. Eu estava realmente ansioso para entender aquele fenômeno inexplicável. Pensei em passar no bar e perguntar para o Wolfgang se ele tinha descoberto alguma coisa, mas isso seria inconveniente.
O relógio na cozinha marcava 7h da noite. Isaac estava sentado na ponta da mesa de jantar. Sara servia o prato dele enquanto Samuel e eu aguardávamos nossa autorização implícita para jantar.
O silêncio era o imperador de nossas refeições em família. Sara terminou de colocar a comida no prato do marido e, em seguida, encheu o copo dele com o suco de acerola que estava na jarra.
Naquele momento, eu soube que Samuel e eu poderíamos nos servir. Olhei para a minha mãe e ela esboçou um sorriso triste. Servi-me do jantar com cautela, para que sobrasse bastante comida para a Sara. Por fim, ela se autorizou a pegar a comida para si.
O telefone tocou.
- Mas na hora da janta... - Minha mãe reclamou. Isaac se levantou sem dizer nada e andou em direção ao corredor que dava para a sala de estar.
Samuel me olhou. Ele cutucou o pé em minha panturrilha por debaixo da mesa.
- Hoje é um daqueles dias? - Perguntou em um sussurro. Sara o ouviu e o encarou com censura.
- Quieto, Samuel! - Advertiu a nossa mãe.
- Depois a gente fala disso, Samuca. Come direito. - Respondi ao meu irmão. Ele assentiu.
Minha mãe sorriu para mim de novo. Com ternura dessa vez.
- Obrigada, meu anjo. - Agradeceu. Eu sorri de volta. Um sorriso sincero e genuíno.
- Mikael, telefone! - A voz do meu pai ecoou pelo corredor. Toquei o ombro do meu irmão mais novo e me inclinei em direção a ele.
- Vou atender. Não fala nada, só janta. - E me levantei. Não me interessei em perguntar quem era ao telefone. Quanto menos eu conversasse com o meu pai, melhor seria.
Andei até o corredor. Bruscamente, dei de cara com o patriarca. Ele olhou nos meus olhos. Nossos olhos eram iguais. O semblante do Isaac estava rígido. As sobrancelhas franzidas e a mandíbula cerrada. De onde vinha tanto ódio?
Ofereci espaço para ele passar. Meu pai andou em direção à cozinha e eu caminhei em direção à sala. Peguei o telefone amarelo, que estava fora do gancho, e o coloquei contra a minha orelha.
- Alô.
- Mikael? - Reconheci a voz. Era o Wolfgang.
- Sim?
- É o Wolfgang. - Ele se calou. O Wolfgang parecia ter uma forma peculiar de interagir com as pessoas. Ou talvez, fosse muito tímido.
- Reconheci a voz. Como você tá? - Após o silêncio que se instalou, perguntei.
- Bem. - Respondeu e fez mais uma pausa. Supus que não era uma peculiaridade, mas nervosismo. - Eu acho que consegui observar algum padrão nos vultos.
Senti uma animação abrupta. A vontade de entender o que estava acontecendo estava se tornando insustentável. Eu queria continuar a investigar aquela situação estranha.
- Tem mesmo uma mulher?
- Sim. E tem mais outra coisa. - Mais silêncio. - Espera aí...
Ouvi um chiado e vozes altas no fundo. Alguém falava alto e o Wolfgang respondia. Mas não era possível entender o que falavam.
- Vai encher o saco de outro! - Ouvi a voz do Wolfgang dizer. Supus que ele tinha aproximado o telefone do rosto. O seu jeito irreverente de falar o tornava estranhamente simpático. - Desculpa. Eu não tenho telefone em casa. Tô ligando do trabalho. O meu patrão veio encher o saco.
- Tudo bem. - Uma ameaça de risada me escapou.
- Eu tava falando do quê mesmo?
- Que identificou o vulto da mulher na neblina. E que tinha outra coisa.
- Ah, é. Tem vários vultos. Não é só o dela. Não dá pra explicar por aqui. É coisa demais pra contar.
- A gente pode falar disso naquele café...
- Tá. - Pensei que ele fosse dizer mais alguma coisa. Mas Wolfgang não falou nada.
- Amanhã às 6h?
- Sim, pode ser. - E mais uma vez, esperei ele falar. Não seria educado eu pedir para desligar, foi o Wolfgang que me ligou. Entretanto, ele não falava nada do outro lado da linha.
- Wolfgang? - Chamei-o.
- Oi... Ah, é... Preciso desligar. - As reações dele eram inesperadas. Não entendia exatamente o porquê dele ser daquela maneira. Mas o seu jeito de ser era diferente da maneira de agir das pessoas que eu convivia. - Tchau.
- Tchau. - Respondi. O rapaz desligou em seguida.
Voltei para a cozinha e terminei de jantar com os meus pais e meu irmão. Após a refeição, Isaac foi assistir televisão e Sara arcou com a tarefa de arrumar a mesa e lavar a louça. Ela nunca aceitava a minha ajuda para isso.
Entretanto, eu achava margem para ajudar a minha mãe em outra tarefa: colocar o Samuel para dormir.
- Hora de dormir, Samuca. - Falei para o meu irmão ao chegar até a sala de estar, vindo da cozinha, após as recusas da minha mãe ao pedir para ajudá-la com a louça. Samuel estava sentado no sofá olhando de relance para Isaac. Nosso pai, por sua vez, estava absorto na novela que a televisão transmitia.
- Não! - Samuca protestou. - Tá cedo!
- Já são 8 horas. Depois não quer levantar pra ir pra escola e fica reclamando.
- Só mais um pouquinho... - Pediu.
- Cala a boca, Samuel. - A voz de Isaac reverberou séria e filme. - Tô tentando assistir essa merda. - E acenou com a cabeça para a televisão.
Encarei o meu irmão e vi seu olhar assustado.
- Vem... - Chamei-o em um sussurro. Samuel desceu do sofá. Andamos até o corredor em que ficavam os quartos e o banheiro e apontei, com o dedo, para a porta do banheiro. O menino entrou no cômodo indicado.
Fui até o seu quarto, peguei o pijama da criança e o deixei pendurado na maçaneta da porta do banheiro em que ele tomava banho e se preparava para dormir.
Samuel abriu a porta discretamente e pegou aquele conjunto de roupas - tratava-se de uma camisa e de uma calça, ambas verdes, feitas de algodão.
Ele demorou mais alguns minutos lá dentro, enquanto eu o esperava no corredor. Por fim, Samuel abriu a porta e saiu vestido com o pijama e com gotas de água nas pontas dos cabelos e no rosto. Ele segurava as roupas sujas em suas mãos rechonchudas.
Abri a porta do seu quarto, peguei sua roupa suja e a coloquei no cesto. Samuel se deitou na cama e se envolveu no cobertor. Sentei-me no canto do colchão e o olhei nos olhos. Estivemos, por todo esse tempo, em silêncio.
- O pai tá bravo comigo? - A criança quebrou o silêncio.
- Ele tá bravo com todo mundo a todo tempo.
- Mas... Eu tô falando bravo mesmo.
- Não. Fica tranquilo. - Tentei sorrir para o tranquilizar.
- Eu tenho medo que ele faça comigo aquilo que ele fez com você.
- Foi só porque eu gritei com ele. O pai não vai machucar você se você não gritar com ele.
- Tem certeza?
- Tenho. Por isso você precisa se comportar.
- Tá... - Os olhos do menino encheram de lágrimas. - Mas seu braço já sarou?
- Já. - Eu queria, por tudo, sorrir de verdade. - Isso faz muito tempo, Samuca. Esquece essa história.
- É que eu fiquei com medo.
- Não precisa ficar. Eu já deixei o pai machucar você alguma vez?
- Não.
- Ele não vai te machucar. Eu sou forte, Samuca. Não sou?
- É nada! - E riu.
- Mais forte que você. - Por fim, sorri verdadeiramente. - E não conta pro pai, mas eu sou mais forte que ele.
- É?
- Sou! Eu sou mais novo. Sabe os cachorros do seu Xavier?
- Sei. O Pluto e o Pateta.
- O Pluto é pai do Pateta. Ele já foi bem maior e mais forte que o Pateta. Mas o Pateta ficou adulto e agora morde o Pluto.
Samuel riu novamente.
- É a mesma coisa. - Continuei em resposta ao seu riso. - Mas não conta pro pai que eu falei isso.
- Tá bom. - O menino disse com convicção.
- Agora vai dormir. - Levantei da cama. - Boa noite, Samuca.
- Boa noite, Mikael. - Andei em direção ao interruptor, apaguei a luz e saí do quarto. Senti um peso no peito. Queria levar o meu irmão para longe daquela casa. Quando, por fim, eu mesmo fui me deitar, tive a companhia das minhas lágrimas.
-
Eu estava no último três dias livres da minha escala do hospital. Passei a tarde em casa. Era um alívio para minha mãe quando Isaac não estava ali. Meu pai tinha um mercado. O comércio havia sido do meu avô paterno. Isaac passava boa parte do tempo por lá. Nessas horas de liberdade, eu ajudava Sara em seu amado jardim. Minha mãe cultivava rosas de todas as cores e aromas. Estar em sua companhia e vê-la sorrir me deixava feliz.
Ao fim da tarde, quando o relógio estava próximo das 6h, fui até à cafeteira. Eu estava começando a ficar confuso com aquela situação toda. Eram muitas informações. Portanto, levei uma caderneta para anotar alguns pontos chave.
Quando cheguei no Café Dinamarca, o Wolfgang já estava lá, sentado à mesma mesa do outro dia. Seus olhos estavam perdidos na fumaça do cigarro. Os cabelos pretos, como sempre, estavam bagunçados. Ele usava um casaco cinza e folgado. Parecia ficar mais magro ainda dentro daquele sobretudo.
Sentei-me na cadeira. Os olhos negros e confusos do rapaz foram até mim.
- Oi. - Cumprimentei.
- Oi. - Ele bateu, levemente, o cigarro na borda do cinzeiro, a fim de jogar as cinzas dentro da peça de porcelana.
- Tá empenhado mesmo em descobrir. - Wolfgang acenou com a cabeça para o caderno em minhas mãos.
- E você não?
- Claro que tô, porra. - E sorriu. Fitei-o. Ele era muito estranho em suas atitudes. Percebi que ele tinha covinhas que se evidenciavam quando sorria.
O garçom se aproximou da mesa e pedi um café expresso novamente. Wolfgang, por sua vez, não quis pedir nada.
- Você disse que tinha descoberto mais coisas. - Coloquei a caderneta aberta sobre a mesa e depositei a ponta da caneta no papel.
- Tem a mulher. - Anotei a palavra mulher. - Mas... Tem uma coisa estranha. Na verdade, são duas mulheres. Eu sinto que as silhuetas são da mesma pessoa... Os vultos são muito parecidos.
- Como elas são?
- As duas são altas e magras. Dá pra ver que elas têm o cabelo volumoso. Acho que crespos. A única diferença entre elas é que uma tem o cabelo menos volumoso.
- Podem ser parentes, irmãs, sei lá... - Sugeri.
- É, pode ser.
Volfgan vê duas mulheres. Cabelo volumoso, crespo. Magras. Altas. A diferença é que o cabelo de uma delas é menor. - Escrevi apressadamente.
- Que porra é essa, Mikael? - Wolfgang falou em uma voz incrédula e alta. Um casal ao nosso lado se assustou com o tom da exclamação dele.
- O quê? - Indaguei, assustado.
- Meu nome tá escrito todo errado. - Sem pedir licença, ele tomou a caneta da minha mão abruptamente, rabiscou o próprio nome e escreveu Wolfgang embaixo.
Encarei-o com incredulidade. Como alguém podia ser tão sem polidez como o Wolfgang? Cada reação dele era absurdamente fora do esperado.
Uma risada me escapou. Tão inesperada quanto as reações do Wolfgang. Ri brevemente, mas com uma espontaneidade que há muito não me ocorria.
- Que foi? - Ele indagou e franziu o cenho.
- Desculpa... - Esfreguei os olhos. - Desculpa, Wolfgang.
- Tá rindo da minha cara? - Pude sentir a raiva em sua pergunta.
- Não. Eu... Não ri da sua cara.
- Qual a graça, então?
- Todo mundo com quem eu convivo tá sempre sendo polido, educado. Ninguém fala o que pensa ou faz o que quer. Então, eu não sabia que tinha como ser de outro jeito. Mas você fala o que pensa e faz o que quer sem um pingo de filtro. Nunca tinha visto alguém assim.
- E qual a graça disso?
- Eu fui pego de surpresa. Não leva a mal. Não é algo ruim, pelo contrário. Eu queria ter essa... Sua falta de tato.
- Você é esquisito. - O rapaz desviou os olhos dos meus.
Li o nome dele escrito da maneira correta. Wolfgang. Parecia ter uma grafia levemente diferente da pronúncia. Onde se escrevia W, falava-se com som de V.
O café que pedi foi colocado sobre a mesa pelo garçom. Peguei a xícara e tomei um longo gole.
- Mas sabe o que me faz pensar que são a mesma pessoa? - Ele quebrou o silêncio que se instaurou entre nós.
- O quê?
- Eu vejo outro par de vultos. Dá pra ver que é um cara e que é forte.
- E tem dois desses? - Inferi.
- Sim. Com algumas diferenças...
- Quais?
- Um é um pouco mais alto e mais forte que o outro.
- Só isso? - Wolfgang assentiu à minha pergunta.
Dois homens fortes. A única diferença é que um é um pouco menor que o outro.
- Também vi outra silhueta. Muito parecida contigo.
Meu coração acelerou e eu senti uma aflição intensa quando o Wolfgang me disse aquilo.
- Não consegui perceber muita diferença entre você e essa sombra. - Ele continuou.
- Você tá dizendo que vê as pessoas duplicadas?
- É. - O rapaz franziu o cenho de maneira irritada.
Wolfgang vê uma silhueta parecida a minha.
- Temos pares de vultos?
- Sim. Eles tão sempre andando na neblina. Quase nunca ficam parados.
- E você nunca alcança eles.
- Isso. - Wolfgang pegou mais um cigarro e o acendeu. Estava quase sempre fumando.
- Você não consegue ver nada mais que isso?
- Tipo o que? - Ele tragou o cigarro que segurava entre o dedo indicador e médio e soltou a fumaça lentamente.
- O lugar. Consegue ver melhor que lugar é aquele.
Wolfgang ficou em silêncio e olhou para baixo.
- Eu sou muito burro. - Resmungou e voltou a me olhar. - Nunca pensei em reparar nisso.
- Então as coisas mudam conforme você anda?
- Eu acho que sim. Não consigo lembrar. Nunca prestei atenção.
- Acho que é o nosso próximo passo.
Pares de vultos. Observar ao redor. - Anotei. Fitei o semblante do rapaz na minha frente. Seus olhos olhavam para a folha de papel do caderno. Ele mordia os próprios lábios com força. Ao perceber que eu o olhava, cerrou os olhos em uma expressão que remetia ao desconforto.
- Esse café é uma merda, você não acha? - Por fim, o jovem de feições delicadas verbalizou.
- Não... - Surpreendi-me com aquela observação. - O que tem de errado com esse lugar?
- Porra, Mikael. - Ele riu brevemente.
- Eu não entendi.
- É cheio de mauricinho. Gente fina, de alta classe. E eu tô aqui, feito um vira-lata no meio de poodles.
Meu rosto ardeu e senti tanta vergonha que não consegui o encarar. Esfreguei uma de minhas mãos nos meus cabelos, em um trejeito desconcertado.
- Desculpa, eu não pensei nisso.
- Relaxa. Ia ser meio escroto se você pensasse que eu sou pobre demais pro Café Dinamarca. - Wolfgang disse com sarcasmo e, mais uma vez, arrancou de mim uma risada rápida e sincera.
- A gente pode conversar em outro lugar da próxima vez. - Sugeri.
- No bar. Depois das 6h, o Silva vai embora. Não tem ninguém pra encher o saco.
- Tudo bem. - Assim que o respondi, o Wolfgang se levantou. Ele parou ao lado da mesa e me encarou com hesitação. Apesar do total desprendimento às normas de boa educação, o rapaz parecia ser tímido.
- Tchau. - Após hesitar, verbalizou apressadamente em uma despedida desajeitada. - Olhar ao redor. Certo. Tchau.
- Tchau, Wolfgang. - Tentei esboçar um sorriso gentil. Dessa vez, não era espontâneo. Ele me fitou brevemente e caminhou para fora da cafeteria. Era um sujeito simpático ao seu modo. Se eu fosse capaz de fazer amizades, gostaria de ser amigo dele.
Olhei para as anotações que fiz ali. Era tão estranho sentir fascínio por um mistério que apareceu de forma abrupta em minha vida. Mas aquela situação era tão intrigante que o desejo de a entender me raptou e me colocou em movimento, como uma correnteza de um rio agitado.
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