O Viajante - Capítulo V - Mikael - Janeiro de 1973
Eu estava sendo diariamente atormentado por aqueles sonhos. Sempre que eu dormia, me encontrava naquele lugar, vendo o garçom me encarar ou sair andando e sumir no horizonte enevoados.
Mas o trabalho não se importava com nada disso. E quem chegava na emergência do Hospital São Francisco de Assis não tinha culpa da minha tormenta onírica. Não existia um único dia tranquilo ali. Muitas pessoas sem dinheiro e sem previdência iam parar naquela instituição filantrópica.
Assim que cheguei no hospital, foi anunciado um paciente que precisava ser atendido imediatamente. A equipe sempre agia com muita prontidão. Quando dei por mim, já estava com as mãos cobertas pelas luvas enquanto injetava epinefrina na veia daquele homem em meio a uma parada cardíaca.
Mas não adiantou. O paciente, com apenas 42 anos, morreu ali. No momento em que o doutor Antônio, o médico plantonista, declarou o óbito, foi como estar flutuando em um céu tempestuoso.
Não era a primeira vez que alguém morria nas minhas mãos. A bem da verdade, isso era quase uma rotina. Mas naquele dia, senti-me mais abalado que o habitual. Questionei-me como ficariam as pessoas da família dele e também seus amigos. Quantos projetos ele deixou para trás quando seu coração parou de bater.
Talvez fossem as noites mal dormidas ou aquela sensação de vazio que estava cada dia mais familiar. Eu nunca fui uma pessoa alegre, mas também jamais experimentei tamanha apatia como vinha experimentado nos últimos tempos.
Sem prestar atenção ao que estava fazendo, lavei as mãos com minúcia e fui até a copa. Movimentos automáticos que me permitiam existir e interagir com o mundo.
Enchi metade do copo com café, sentei na cadeira de madeira ao lado da mesa e bebi o conteúdo daquele copo americano. Minha mente estava vazia. Nada passava por ela.
— Tá pensativo hoje, Mikael. — Ouvi a voz de Eliza. Ela era uma das enfermeiras que trabalhavam ali junto comigo. Sequer tinha visto a moça entrar na copa.
Eliza sorriu para mim. Era uma mulher muito bonita. Seus lábios eram carnudos, a pele brilhante e cor de oliva e cabelos cheios, em cachos escuros. Seu rosto era delicado, com bochechas coradas e levemente cheias, mas sem quebrar a harmonia de sua face. Essa característica lhe dava um aspecto bastante jovial. Eu sabia que ela tinha alguma atração por mim.
— É, eu ando um pouco cansado. — Linda, gentil e esforçada. Uma mulher como ela tinha sido o meu sonho há alguns anos atrás. Mas, naquele momento, não. Apesar de todas as características positivas da bela enfermeira, eu simplesmente não me sentia atraído por ela.
— Andou passando noites em claro? — Indagou de maneira sugestiva enquanto enchia um copo de café.
— É, acho que tô com insônia. — Desconversei. A mulher desfez o sorriso e desviou os olhos.
Ficamos em silêncio. Também desviei os olhos dela. Por que eu simplesmente não a correspondia? Até mesmo o meu desejo tinha se dissipado?
Não trocamos mais palavras depois daquela interação constrangedora. E, no meu silêncio, afoguei-me novamente no vazio de pensamentos, saindo dele apenas para cumprir o meu dever.
—
Quando o relógio marcou 10h da manhã, o plantão acabou. Peguei o ônibus até a estação que ficava a dois quarteirões da minha casa. O ônibus parou nela e eu desci do veículo calmamente.
Fiz o trajeto a pé, sem pressa. Eu não tinha nenhum ímpeto para chegar no meu lar. Gostava de caminhar em passos lentos e olhar a rua. Ao contrário do que é esperado, eu sentia um enorme conforto ao ser um transeunte. Vagar por aí me trazia uma paz que eu não encontrava dentro da minha casa.
Meus pensamentos voltaram a surgir enquanto eu andava devagar. Lembrei-me dos sonhos. Percebi que isso se deu porque eu estava, quase que involuntariamente, fazendo o trajeto que dava naquele bar que o Wolfgang trabalhava.
E o medo veio. Ele sempre vinha. Não tinha razão alguma para temer. Mas lá estava eu, com as mãos suadas e trêmulas.
Respirei fundo, tentando me convencer de que não tinha nada de errado. Eu parecia um idiota com aquele medo infundado de entrar em um bar e encarar um rapaz mais baixo e mais magro que eu. E que se demonstrou absurdamente inofensivo - e até mesmo vulnerável - na primeira e única vez que o vi.
Os meus pés se moveram como uma máquina sem vontade ou motivação. Entrei naquele prédio verde e velho. O estabelecimento estava vazio, com exceção a um homem que bebia cachaça sozinho em uma mesa.
Andei até o balcão e me sentei em um banco de madeira. Lembrei-me do homem que morreu no pronto socorro e senti uma tristeza opressiva. Aquele lugar pareceu potencializar a intensidade dela.
Ouvi um som de porta velha rangendo e vi o Wolfgang saindo por uma porta de metal que ficava atrás do balcão, ao lado de uma estante cheia de garrafas de bebida. Vê-lo pessoalmente, no mundo real, causou uma espécie de sensação de familiaridade após eu ser atormentado por sua imagem em meus sonhos. Era incrível como minha mente o recriara de forma tão realista.
Os cabelos estavam levemente bagunçados, como eu sempre via nos sonhos. O rapaz usava uma camiseta branca com gola e mangas pretas. Sua calça jeans estava desbotada. Era a mesma que ele estava usando no dia que desmaiou e que usava quando eu o via ao sonhar.
— Bom dia. — Cumprimentei com formalidade.
Wolfgang estava cabisbaixo. O garçom levantou o rosto e olhou em minha direção. Seus olhos se arregalaram ao me ver. Ele engoliu seco.
— Oi. — Retribuiu o cumprimento de maneira hesitante. Vez ou outra, nos sonhos, ele falava que me conhecia de algum lugar. Mas a sua voz era sufocada pelo ruído incessante e agudo. Ouvi-la de perto e sem interferências a deixava diferente. Tinha um timbre que não pendia nem para o agudo e nem para o grave. Uma voz comum de homem jovem.
— Você tá melhor? — Indaguei. Eu não sabia sequer a razão de estar ali.
— Tô… Tô melhor. — Sua voz parecia rouca e fraca e seu rosto demonstrava medo.
— Tá rouco?
— Tô com uma dor de garganta meio merda. — Confessou. — Quer pedir alguma coisa?
Era uma boa pergunta.
— Acho que… Pão na chapa e café de novo. — Wolfgang só assentiu. Ele se virou para voltar àquela porta.
Eu não sabia como o abordar para falar dos sonhos. Soaria assustador e inconveniente. Senti-me envergonhado só de pensar em falar sobre estar sonhando com ele. Qualquer um pensaria que eu era um tarado maluco.
— Wolfgang. — Chamei-o, sem saber exatamente o que dizer. O rapaz me olhou por cima do ombro. — Eu acho que conheço você de algum lugar… — Foi o melhor que consegui falar.
O rapaz franziu as sobrancelhas e caminhou em direção ao balcão. Ele parou diante daquele balcão, do lado oposto do que eu estava, e me olhou nos olhos.
— Eu tive essa mesma impressão. — Respondeu.
— A gente já deve ter se visto por aí. — Titubeei.
— Eu não tenho certeza… — Wolfgang mordeu os lábios e desviou os olhos. Talvez eu já estivesse o deixando desconfortável com aquela conversa estranha. — Eu não quero parecer um maluco drogado, Mikael… — E voltou a morder os lábios, dessa vez, pareceu colocar mais força na mordida. Aparentava ser uma manifestação de insegurança ou hesitação. — Ah, merda. Esquece.
— Você… — Que maluquice que eu iria dizer. Mas percebi uma brecha para ser um maluco ali. Se o rapaz estranhasse a pergunta, bastava que eu simplesmente não voltasse mais ali e tentasse esquecer da vergonha que supostamente passaria. — Tem tido sonhos estranhos?
A respiração dele se tornou mais rápida e Wolfgang engoliu seco. Suas bochechas e seus lábios - agora ligeiramente feridos - empalideceram ainda mais.
— Com um som infernal e muita neblina. — Ele respondeu quase em um sussurro. Eu também estava ofegante. Meu corpo inteiro estava tremendo e minhas entranhas gelaram.
— E um brilho verde no céu. — Completei, ao que ele assentiu. — Você me vê?
— Vejo. Sempre que durmo. — Suas palavras saíram rápidas e atropeladas, acompanhando o ritmo de sua respiração apavorada.
— Tá acontecendo o mesmo comigo. — Vários pensamentos invadiram a minha cabeça, como uma represa que arrebenta e libera uma torrente de água. Todos esses pensamentos envolviam o medo de perder a minha sanidade.
Inesperadamente, Wolfgang riu. Uma risada breve e nervosa.
— Eu pensei que eu tava ficando maluco! — O rapaz falou um pouco alto. Aquela reação foi inesperada.
— Eu também pensei. Na verdade, eu ainda acho isso que eu tô ficando louco. — Retruquei. Também atropelei as palavras. Eu estava muito apreensivo e surpreso.
— Isso é sintoma de loucura? — Indagou.
— Qual a chance de duas pessoas que mal se conhecem terem os mesmos sintomas? Não, é alguma coisa… Muito estranha.
— Então por que ainda acha que tá ficando louco? — Sua pergunta pareceu soar sarcástica. Mas era nítido que ele estava tão apreensivo quanto eu.
— Porque nunca ouvi falar de alguma coisa assim antes. — Respondi.
— Então não é loucura, é desconhecimento. — Mais um riso nervoso. Ele mordeu os lábios mais uma vez. Aquilo parecia doer. — Desculpa, eu falo muita merda quando tô nervoso. É que… Isso é esquisito pra caralho, eu nem sei o que pensar. — Disse de maneira atropelada e sem pausas, ficando sem ar ao terminar de falar.
— A gente precisa conversar melhor sobre esses sonhos. — Encarei-o nos olhos e o Wolfgang olhou para baixo. — Consegue me encontrar no fim da tarde?
— Dá pra eu fugir umas 6 horas. — Ele olhou em volta e tornou a fitar um ponto qualquer próximo ao chão.
— Tem uma cafeteria há duas ruas daqui, sabe onde é? Acho que o nome é Café Dinamarca.
— Sei. — Ele franziu o cenho.
— Te encontro lá. — Levantei-me da cadeira.
— Não vai querer o pão mofado na chapa e aquela merda de café? — Sua indagação veio com um sorriso jocoso.
Sequer me lembrava do pedido que tinha feito. Senti muita vergonha por me esquecer.
— Desculpa. — Não consegui o fitar devido ao constrangimento. Sentei-me na cadeira mais uma vez.
— Relaxa. É uma merda mesmo. — Eu não soube o que fazer naquela situação embaraçosa. Seria rude simplesmente ir embora e também seria grosseiro pedir para ele ir trabalhar.
Fiquei parado algum tempo e o Wolfgang continuou ali, esperando eu decidir o que faria.
— Que merda de situação. — Por fim, eu disse. — Me sinto bem idiota agora.
Wolfgang riu e acabei rindo também. Ri genuinamente com aquele embaraço, algo que não fazia há muito tempo.
— Vou ser honesto… O melhor é você ir embora. É menos trabalho pra mim. — Retrucou. E assim o fiz, sentindo um misto de apreensão, vergonha e um estranho alívio por não pender à loucura e por ainda saber rir.
Enquanto voltava para casa, percebi que fui capaz de sentir alguma coisa com toda aquela situação. Senti medo, vergonha e curiosidade. Assim como a risada nervosa, há muito eu não sentia nada daquilo. Ainda que fossem situações que causavam aflição, ao menos permitiam que eu me sentisse vivo. Tão vivo quando uma presa que foge. Desesperadamente vivo
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