O Viajante - Capítulo LXV - Wolfgang- Maio a Agosto de 1973
Meus dias eram de mágoa e o que os acalentava eram os momentos ao lado do Mikael.
Também tive um momento de alegria quando recebi uma carta da Isabelle dizendo que tinha chegado bem em sua cidade e estava feliz ao lado da mãe e das irmãs.
Porém, a situação com o meu pai estava sempre à espreita, pronta para me levar a um poço de ressentimento.
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Em uma noite de quinta-feira, eu estava sentado no sofá. O dia de trabalho foi exaustivo e tudo o que queria era ficar perto do Mikael. Se ele ainda estivesse sozinho em casa, eu certamente passaria mais tempo lá do que na minha própria.
Meu pai estava na cozinha. Eu não queria ficar perto dele, pois isso me fazia lembrar da minha decepção.
Decidi ir para o meu quarto, porém, uma voz inusitada o chamou no portão. Era a Norma. Só de ouvi-la, minhas mãos começaram a tremer.
A raiva me subiu e cerrei os punhos com força, a ponto dos meus braços doerem. Vi o meu pai atravessar a sala com pressa e ir até a varanda.
- Vai embora! - Escutei ele gritar, o que me assustou.
- Eu não admito que você faça isso comigo, Wilhelm! - Norma respondeu. - Papa e Mama não iam gostar!
- Eles tão mortos, Norma.
- Você deu o nome do Papa pra ele... - A voz da serpente saiu com desprezo.
- Pro meu filho! - O grito grave ecoou alto e meu tremor aumentou. Wilhelm estava discutindo com a irmã por minha causa. - E foi o nosso pai que me ensinou a honrar a própria família!
Mesmo assustado, me levantei. Eu nunca havia visto meu pai tão furioso. Em passos trêmulos, saí pela porta da frente.
Norma estava do outro lado do portão. Os olhos azuis e frios dela me encararam com ódio.
- Um filho sodomita. - O nojo em suas palavras reverberou.
Wilhelm me percebeu ali e se virou em minha direção.
- Entra, Wolfgang. - Ele ordenou com firmeza.
Neguei com a cabeça enquanto sentia minha carne tremer.
- Ele nem te respeita. - Norma continuou. - Trouxe o amante pra dentro da casa, dos nossos pais, de um jeito sujo.
A mão do meu pai foi até o parapeito muro baixo e ele a apertou com uma fúria assustadora nos olhos.
- Wolfgang. Pra dentro.
- Não. - Falei com firmeza e mágoa.
- Olha só... - A irmã dele continuou. - Esse é o filho que recebeu o nome do Papa.
- Eu não quero que você me veja assim, filho. - O rosto dele ainda tinha fúria estampada, mas as palavras estavam tristes.
- Ele não é nada parecido com a gente, Willi.
- Cala a boca, Norma. - O austríaco se voltou para a irmã e rebateu entredentes.
- Puxou a mãe! - Quando ouvi as palavras da minha tia, meu sangue ferveu.
Me recordei da Rosa em meus braços, agonizando. Do sacrifício que fez por mim e da súplica para eu me amar.
Eu abri a boca para ir até a Norma e gritar com ela, dizer coisas horríveis, desejar sua morte para toda a vizinhança ouvir - alguns curiosos saíam pelo portão ou abriam as janelas para ver o que estava acontecendo.
Porém, para minha surpresa, quem reagiu, com uma explosão, foi o meu pai.
- CALA A BOCA, SUA DESGRAÇADA! - O berro dele pareceu ecoar por todas as direções. Era alto, grave e terrivelmente medonho. Parecia a mais pura forma de fúria.
O rosto do Wilhelm estava vermelho, as veias do pescoço saltadas e ele arfava. A mão, que apertava o muro, tremia devido a força que ele colocava nela.
A Norma se encolheu com o grito e eu corri até o meu pai. Nunca o vi daquela maneira e senti medo. Não por mim, mas por ele.
- Pai! - Chamei-o e toquei o seu ombro. - Calma! - Pedi.
- Você encostou essa mão suja no meu filho... - Dessa vez, ele não gritou. O que dizia saía entredentes, quase sussurrando. Mas a expressão do seu corpo era a mesma, transparecia a mesma ira. - Você viu o Wolfgang nascer, ajudou a Rosa a cuidar dele, como você pode ser tão nojenta, Norma?
- Ela te abandonou, te largou. Era uma perdida, nunca se deu ao respeito. Você sabe muito bem disso!
- Cala a boca! - Gritei. - Você não sabe nada da minha mãe!
O Wilhelm permaneceu em silêncio, com toda aquela raiva contida e uma respiração pesada, quase bufante.
- Eu sei que você herdou toda a indecência dela!
- EU QUERIA QUE VOCÊ MORRESSE! - Bradi tão alto que a minha garganta doeu.
- E talvez fosse melhor que isso tivesse acontecido com você! - Ela murmurou.
- Norma, se você não sair da minha frente, eu não sei o que eu vou fazer. - Meu pai falou baixo.
- Willi...
- Eu só não desejo o mesmo pra Ana e pro Joaquim porque eles não têm culpa de serem seus filhos. Mas você merecia o que desejou, pro Wolfgang, agora. - Eu ainda tocava o ombro do meu pai e percebia o tremor que o acometia. Manter a calma, na voz, devia ser difícil para ele.
- Willi, eu... Falei sem pensar. Me perdoa.
- Pai, calma. - Pedi mais uma vez. - O senhor vai acabar passando mal. - Nem mesmo imaginava o que estava acontecendo dentro dele para que conseguisse se conter.
- Seu casamento fracassado te transformou numa mulher detestável. - Arregalei os olhos ao ouvir o austríaco. Eu sabia acerca do casamento infeliz da Norma, mas jamais imaginei que meu pai diria aquilo em voz alta. - O Roberto nunca amou você e seus filhos não te suportam. Ninguém te suporta, você faz questão disso.
- Você não... - Ela começou a falar, mas foi interrompida.
- Por isso você pegou raiva da Rosa. Eu amava e ainda amo ela. Minha Rosa não abaixava a cabeça pra mim e nem pra ninguém e, ainda assim, era amada de um jeito que você nunca foi pelo seu marido. Você fez tudo o que julgava ser certo e nada foi capaz de fazer o Roberto te amar. - Eu estava surpreso por meu pai falar da esposa e também apavorado. O caos daquela situação me atordoou.
- Meu filho puxou, sim, a mãe e eu tenho orgulho disso. Mas sempre foi uma lembrança dela, não é? Você olha pra ele e vê a Rosa. E isso te lembra que a sua vida é um fracasso e você sente inveja do que minha mulher foi.
- Eu não vou mais escutar isso! - A Norma rebateu. Seu rosto estava vermelho e os olhos marejados.
- E depois que você descobriu... sobre ele, arrumou um motivo pra atormentar o Wolfgang. Você calou o meu filho pelo medo, sua desgraçada.
- Chega! Eu vou embora! - A estrangeira disse entre lágrimas.
- Some! Desaparece dessa casa! Você morreu pra mim! - Wilhelm gritou e sua irmã, finalmente, o obedeceu. Ela deu as costas e foi embora.
Meu pai apoiou o outro braço no muro, abaixou a cabeça e respirou fundo. O silêncio se instaurou e escutei as portas e janelas, da vizinhança, se fechando.
- Pai, vem. - Chamei. Wilhelm ainda tinha o rosto vermelho e suas mãos trêmulas.
Ele me encarou com os olhos avermelhados e lacrimejando. Porém, meu pai era como um castelo de pedra, jamais se permitiria desmoronar.
O austríaco me acompanhou, em silêncio, para dentro da casa e se sentou no sofá da sala. Fui até à cozinha, trouxe um copo d'água para ele e me sentei ao seu lado.
A quietude, entre ele beber a água do copo e acender um cigarro, era desoladora. Também precisei fumar para aguentar aquela situação.
- O senhor tá bem? - Indaguei, sem jeito.
- Sim. - O olhar do meu pai era sempre triste. - E você?
Assenti com a cabeça.
- Eu devia ter feito isso há muito tempo... - Wilhelm disse com amargura.
- Ela é sua irmã. - Eu não queria defender a Norma, mas tinha consciência que logo iria morrer. Como meu pai ficaria? Ela seria a família restante. - Eu não queria ter... Separado vocês dois.
- Não fala besteira, Wolfgang. - A voz era sempre firme. - Sua tia levantou a mão pra você, eu nunca vou aceitar isso.
Tive que segurar as palavras que gritavam a minha morte prematura e meu coração doeu. Meu olhar ficou enevoado pelas lágrimas e algumas cederam.
- Eu pensei... Que o senhor concordava com ela...
Meu pai franziu o cenho com tamanha severidade que não tive coragem de continuar o olhando nos olhos.
- Wolfgang, por que você pensou isso de mim?
- Porque... - Observei o cigarro, em minha mão, se desfazer no cinzeiro, bem como a pressão dos dentes mordendo os meus lábios. - O senhor não falou nada. Pareceu decepcionado.
Novamente, o silêncio. Senti medo que ele aumentasse e me engolisse naquela frieza muda.
- Eu não soube o que dizer. - Confessou.
- O senhor tem nojo de mim?
- Não. - A resposta foi imediata. - Nunca!
- Eu não consigo imaginar um mundo em que o senhor me aceita, pai. - As lágrimas, quentes, banharam minha face.
Eu sabia que tinha a resposta, dessa questão, na vida que eu teria, caso tivesse poupado só o Mikael. Entretanto, as memórias dessa possibilidade sumiram, eu só me recordava vagamente de certos momentos.
- Filho... - Senti sua mão sobre o meu ombro. - Não! Meu Deus, não! - Disse com urgência.
- Sempre foi assim... - Tentei conter os soluços e o Wilhelm me puxou para um abraço.
- O que aquela desgraçada fez com você, Wolfgang? Eu nunca vou te rejeitar. Você é meu filho.
Eu sentia alívio, mas também uma dor, guardada há anos, que vinha como uma enxurrada. Todo o sofrimento contido e calado transbordou pelos meus olhos.
E meu pai permaneceu abraçado comigo, em silêncio.
Quando me afastei, meus olhos estavam inchados e a cabeça dolorida. Sequei as lágrimas, com as costas das mãos, e o olhei.
Wilhelm também chorava e aquilo me surpreendeu.
- Desculpa... - Falei.
Ele fungou e secou suas lágrimas.
- Não tem que se desculpar. - Wilhelm negou com a cabeça. - Eu que errei com você. Me perdoa, filho.
- Não é sua culpa, pai.
- É. Eu deixei você pensar que tá sozinho no mundo e deixei sua tia maltratar você.
Suspirei. Não adiantava discutir com o meu pai, ele não mudaria de ideia quanto a isso. Wilhelm era teimoso.
Eu não queria que meu pai carregasse culpa, embora não pudesse fazer nada para o tirar dele.
Decidi que eu deveria contar tudo. Ir até o fim. Meus últimos meses deveriam ser livres de segredos.
- Pai, tem outra coisa... - Sussurrei, tentando pensar que o mais difícil já tinha passado. - O Mikael... Ah, ele não é só meu amigo.
- Eu imaginei... - Respondeu com calma e seriedade. - Assim que me contou que... Você é homossexual.
- Mas o que a Norma falou é mentira. Quando eu ofereci abrigo pra ele, a gente era só amigo. Eu não...
- Tá tudo bem, meu filho. - A mão do meu pai foi até os meus cabelos e ele os bagunçou.
- O senhor tá decepcionado com ele?
- Não tem motivo para isso. Vocês dois são adultos e o Mikael gosta muito de você... - Meu pai hesitou e senti minhas entranhas gelarem.
- Pai...
- Eu só tenho medo, Wolfgang. Vocês dois são boas pessoas e que fazem bem um ao outro. Mas... O mundo, filho. O mundo é cruel com... Dois homens juntos.
Mais uma vez as lágrimas encheram os meus olhos.
- Eu não quero viver com medo do mundo. - Achei forças para falar aquilo sem hesitar.
O homem de meia idade respirou fundo e suspirou.
E, inesperadamente, sorriu.
- Você é tão parecido com a sua mãe, Wolfgang. - A sua voz soou distante. - Ela também enfrentava o mundo inteiro pra ser feliz.
Meu coração acelerou e senti meus olhos arregalarem ao encarar o austríaco. Era estranho e surpreendente ouvir o que ele disse.
- Só não fica mais sumindo com o Mikael por aí... - Ele me fitou. - Chama ele pra cá ou vai pra casa dele.
- Mas o senhor não se incomoda?
- Ele ficou mais de um mês aqui. Não tem sentido eu começar a me incomodar agora.
Sorri, embora tenha tentado me conter.
Outra coisa espetou o meu peito. Se eu queria desfazer todos os segredos, deveria contar ao Wilhelm sobre sua esposa.
Porém, como eu poderia o fazer acreditar em tudo aquilo? E quão cruel seria detalhar a perda dela? Eu tinha pesadelos e, às vezes, vomitava após acordar deles, de tão horrorizado que fiquei.
- Pai. - Chamei mais uma vez. Talvez pudesse contar uma meia verdade. Eu era um péssimo mentiroso e odiava mentir para o meu pai.
Entretanto, existiam omissões, que precisavam ser feitas, para que a vida fosse suportável.
- Eu... Sonhei com uma coisa. - Tentei resumir tudo o que passei na palavra sonho. - Mais de uma vez. Era sobre a minha mãe e... Eu sei que o senhor vai achar isso um absurdo, mas eu acho que eu vi ela.
- Do quê você tá falando? - A sua voz ficou mais severa, sem a leveza e ternura de antes.
- Eu sei que é difícil de acreditar... Era muito real. Ela tava aqui na sala, tinha um carrinho de bebê do lado do sofá e a foto, do casamento de vocês, tava ali, em cima de uma toalhinha de renda. - Acenei para a mesa de centro.
Os olhos arregalaram e sua pele empalideceu. A respiração ficou pesada e rápida e, nitidamente, ele tremia. Me senti mal por deixar o meu pai daquela maneira.
- O senhor tá bem? Desculpa! Eu não devia ter contado isso!
- Continua. - Pediu sem hesitação.
- Eu... - O gosto amargo, de não estar sendo totalmente sincero, me veio. - Vi ela me colocar, ainda bebê, no carrinho e ir pra varanda. Minha mãe não parecia bem... - Franzi o cenho.
Eu não deveria ter falado aquilo, deveria ter ficado de boca calada...
E deixar o meu pai viver, a vida toda, sem saber o que aconteceu com a esposa.
Todavia, parecia injusto.
- O nariz dela tava sangrando e ela fugiu pelo portão. - Preferi parar naquele ponto.
- Você sonhou com isso? Como?
- Não sei...
- Não tem como, você tinha só sete meses. - Seu olhar parecia assustado, incrédulo. - Como...?
Ele pareceu querer dizer algo, até abriu a boca, porém, engoliu seco.
- Ela me chamou de anjo várias vezes... - Falei, sem o olhar. Eu só queria que meu pai acreditasse para não se corroesse mais. Para que as palavras de Norma não o atingissem.
Diante de mim, Wilhelm desmoronou aos prantos. Os soluços dele me machucaram e, assim como ele fez quando deixei a minha dor sair, eu o abracei.
- Sinto muito, pai. - Falei sem o soltar, cedendo à minhas próprias lágrimas. - Eu sei que a saudade dele sempre doeu muito no senhor.
O choro percorreu sem nada dito. Sentia o peito vazio e isso me trazia dor e alívio. Eu estava livre dos meus segredos e medos, mas tudo aquilo doía.
Após eu desvencilhar do abraço, houve silêncio e fumamos vários cigarros sem dizer uma palavra. Nem mesmo o rádio estava ligado, tudo era pura quietude.
- Não consigo pensar em uma única explicação pro que você me contou. - Wilhelm quebrou o silêncio. - Mas você me descreveu, exatamente, como sua mãe arrumava a sala...
- Eu sei que foi real, pai. - Disse com convicção. Era real. Uma benção e uma maldição.
- E o sangue... Tinham respingos de sangue seco, no chão da varanda, quando eu cheguei em casa...
As lembranças fizeram minha cabeça doer. Eu não queria reviver aqueles momentos. Tentei pensar na figueira que Mikael e eu visitávamos para interromper aquelas imagens horríveis.
- Minha pequena... Eu sempre soube que alguma coisa ruim tinha acontecido. Ela nunca largaria a gente... - Ele esfregou o rosto com a mão e a passou por entre os cabelos castanhos-acobreados. - Wolfgang, eu prometo falar mais da Rosa pra você, mas não hoje.
- Tudo bem, pai. O senhor tem que descansar.
- Você também, rapaz. - Ele sorriu com tristeza e bagunçou os meus cabelos com a mão.
Retribuí o sorriso. Pela primeira vez, eu não temia ser algo ruim para o Wilhelm. Eu era o seu filho, sua família e essa era a melhor coisa do mundo.
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Nos dia seguinte, contei ao Mikael o que aconteceu. Ele ficou feliz por mim e disse que logo revelaria, sobre nós, para sua mãe. Isso me assustou, eu não queria que meu namorado tivesse problemas com a Sara.
O Mikael passou a ir com mais frequência em minha casa e dormir lá algumas noites. Nas primeiras vezes, foi constrangedor. Meu pai e ele trocavam um silêncio tenso que, aos poucos, foi se desfazendo e, com o passar dos dias, tudo voltou ao normal.
E logo virou uma parceria. Foi curioso observar aquele movimento, os dois adoravam dar palpites sobre a minha saúde.
Continuamos a visitar a figueira, mesmo com o pedido do Wilhelm. Era um lugar de paz e liberdade que eu dividia com o enfermeiro. Um santuário só nosso.
Nós também gostávamos de visitar o Levi. Eu acabei me afeiçoando a um dos gatos dele, o Ratinho. Ele era mirrado e magrelo, diferente dos seus irmãos, o que fazia o achar parecido comigo. Sempre que eu pegava um graveto, para brincar com ele, Rato ou Rateco o roubavam.
Eram dias calmos e felizes, um alívio doce para o fim da minha vida.
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Junho de 1973
Eu comecei a adoecer com mais frequência. Ficava febril toda semana e o nariz sangrava diariamente. Meu corpo tinha hematomas que eu não sabia de onde vinham e eu me sentia cansado a todo tempo.
Meu pai e o Mikael passaram a insistir para eu voltar ao hospital, ver o doutor Antônio e acabei cedendo. O médico pediu um exame doloroso, em que uma grande agulha foi enfiada no osso do meu quadril e extraíram um líquido de lá. Mikael e Wilhelm, contra a minha vontade, juntaram dinheiro para pagar aquele procedimento.
Também comecei a tomar mais remédios. Alguns deles deixavam um gosto metálico na minha boca. O meu namorado me explicou que eram suplementos de ferro e vitaminas, que me deixariam mais disposto.
Felizmente, eu ainda tinha forças, era capaz de fazer o que eu queria e podia aproveitar os momentos leves com o Mikael.
Sua presença ficou mais constante em minha casa. Quando não tinha plantões, ele dormia comigo.
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Em um domingo, estávamos sentados na cama, em silêncio. Eu estava pensativo e então, bruscamente, suas mãos alcançaram minha cintura.
E ele fez cócegas em mim, quando caí na cama, após ficar sem fôlego de tanto rir, Mikael me segurou pelos ombros e pressionou o meu corpo contra o colchão.
- Seu pai deixa você ir na figueira hoje? - A pergunta foi sarcástica.
- E ele precisa saber?
- Como você tá rebelde. - Disse, divertido.
- Cala a boca. - Retruquei, rindo.
- Suas asinhas tão crescendo.
- Babaca. - Falei de forma jocosa.
- Feito um passarinho... - Continuou a provocar com sarcasmo. - Um pardalzinho ranzinza.
- Idiota...
- Queria voar contigo... - E o sarcasmo deu lugar à uma tristeza na voz, uma das mãos, que seguravam o meu ombro, foi até o meu rosto e ele o acariciou. - Pra onde você for. Eu não quero ficar preso aqui sem você.
- Não fala isso...
- Desculpa. - Pediu, como quem voltava a si.
- Tonto.
O Mikael tornou a sorrir, embora os olhos estivessem tristes. Ele se inclinou sobre mim e me beijou.
- Então, vamos pra lá. - O rapaz se afastou. - Cara rebelde.
E, às escondidas, contra a ordem do meu aí de "não sumirmos por aí", passamos um dia, quase inteiro, lá.
O Mikael era taciturno com outras pessoas, mas comigo revelava o seu senso de humor e leveza, desde que éramos apenas amigos. Como eu o amava. Tinha sorte de experimentar um sentimento assim.
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Agosto de 1973
Minha saúde se deteriorou quase por completo. Eu tinha pego uma gripe há um mês e ela só fazia agravar. O resultado, do exame doloroso, saiu e indicou que meu sangue estava todo alterado. Doutor Antônio e os outros médicos, do hospital, não souberam explicar o que era aquilo. Vez ou outra, eu ia até lá para tomar soro e algumas injeções. Por intermédio do Mikael, eu era atendido com agilidade.
Pedi demissão do bar do Silva, pois já não era capaz de trabalhar. O patrão chorou quando isso aconteceu, foi uma reação inusitada. Silva era uma boa pessoa e um amigo. Eu trabalhava para ele desde os 14 anos, era impossível passarmos por aquela ruptura intactos, por mais que eu odiasse o meu trabalho.
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Com meu enfraquecimento, o Mikael arrumou uma bicicleta para passearmos, irmos da minha casa para dele e vice-e-versa. Também visitávamos o Levi e íamos para a figueira.
Ele contou, para a Sara, sobre nós. Sua mãe ficou uma semana distante do primogênito. Porém, logo as coisas voltaram ao normal. Sara gostava de mim e elogiava o meu nome. Ela me disse, várias vezes, que Wolfgang era o primeiro nome do Mozart. Eu soube, mais tarde, que a mulher tocava piano na juventude e gostava muito de tocar as canções do músico austríaco.
Porém, havia algo ruim: Sara acreditava que o Mikael e eu estávamos confundindo os nossos sentimentos e que, na realidade, éramos bons amigos e nossa solidão prévia nos causou essa confusão.
Eu tentava relevar isso, pois ela não falava essa opinião diretamente para mim e me recebia muito bem em sua casa.
O Samuel não sabia sobre nós, ele ainda era novo demais. Porém, percebia que eu era muito próximo do seu irmão e demonstrava certo ciúmes, dizendo que o Mikael gostava de passar mais tempo comigo do que com ele.
Em muitos momentos, levavamos a criança para passear em um campo de futebol e eu observava os dois irmãos jogarem bola.
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Meu pai contou sobre a Rosa para mim. Ele me mostrou o baú, com as coisas dela, que guardava no seu armário. Wilhelm narrou como os dois se conheceram e como foi difícil ficarem juntos.
Eu pude o entender, do fundo do coração. Depois de tanto lutar para formarem uma família, a sua esposa desapareceu.
Como um coração poderia suportar tanta dor?
Essa pergunta, acerca do meu pai, aumentava a cada dia que passava. Ele iria me perder também e, tudo o que eu queria, era que ele ficasse bem.
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Minha gripe foi piorando. Comecei a ter febres fortes e, aos poucos, perdi as forças para ficar de pé.
O Mikael conseguiu alguns remédios e injeções no hospital, em segredo, com a influência do doutor Antônio. O médico parecia ter muita consideração pelo meu namorado.
Portanto, eu pude ser cuidado em casa e, vez ou outra, recebia soro em minha veia.
Comecei a sentir dores pelo corpo e algumas queimaduras, semelhantes ao aspecto da pele da minha mãe, antes de se desfazer, apareceram.
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Em certa noite, eu não conseguia dormir. Cada centímetro do meu corpo queimava e aquela maldita febre não diminuía.
O Mikael aplicou várias injeções no soro ao lado da cama, mas nada adiantou. Pensei ter dormido por alguns minutos, pois a consciência se desfez por um período de tempo.
Senti uma mão envolvendo os meus dedos e, ao abrir os olhos, encarei o enfermeiro, sentado ao chão, ao lado da cama, exausto e com os olhos marcados por lágrimas.
- Eu tô aqui, meu amor. - Sussurrou como um recado reconfortante, do qual não pude responder pela ausência de forças.
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Por passar tantos dias deitado, perdi a noção do tempo. E também a dormir muito, mesmo com dor. Eu não sabia dizer se eram as medicações ou a minha vida deixando o meu corpo.
O doutor Antônio me fazia visitas esporádicas. O Mikael ficava ao lado da minha cama, por horas. E o meu pai me dava banho e me levava ao banheiro, o que era constrangedor para mim.
Em algum momento, que julguei ser noite pelas luzes acesas, acordei escutando alguns soluços de choro.
Era o meu pai, debruçado sobre mim. Suas lágrimas estavam tão intensas, que pingavam nos lençóis.
- Não faz isso comigo, Wolfgang... - Ouvi ele murmurar e meus próprios olhos se encheram de lágrimas.
Porém, minha voz não saiu.
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Na manhã seguinte, acordei com a luz verde, entrando pela janela, e o ruído intenso. Soube, prontamente, que seria o dia da minha morte.
Quando tudo voltou ao normal, eu me senti disposto. Consegui abrir os olhos e recostar na cabeceira da cama, mas aquela merda de acesso não permitiu movimentos maiores.
Meu pai entrou no quarto e, ao me ver, arregalou os olhos. Havia uma cadeira, ao lado da cama, e rapidamente ele foi até ela e se sentou.
- Wolfgang! - Disse com surpresa. - Você tá melhor?
- Acordei mais disposto hoje. - Aquele momento era uma chance para dizer adeus.
Ele tocou a minha testa.
- Sem febre...
- Eu tô bem. - Dei o meu melhor para sorrir.
- Eu tava tão preocupado com você.
Aquilo doeu. Meu pai ainda tinha esperanças.
Como aquele coração poderia suportar tanta dor?
Cuidadosamente, para não soltar o acesso em minha veia, toquei sua mão calejada. O Wilhelm e eu não costumávamos demonstrar carinhos físicos, mas eu queria que ele soubesse o quanto eu o amava.
O austríaco me olhou surpreso e, então, segurou minha mão com firmeza.
- Pai, eu te amo. - Eu nem me lembrava se algum dia tinha dito isso a ele, com aquelas exatas palavras.
Ele sorriu para mim com aquele olhar triste.
- Eu também te amo, meu filho.
- É bom ser seu filho. Eu tenho muita sorte.
O Wilhelm acariciou os meus cabelos, com a outra mão e notei as lágrimas, discretas, cederem.
- Sua mãe te chamava de anjo... - Os dedos bagunçaram as madeixas. - Ela tava certa. Você é nossa benção, meu filho. Um presente de felicidade que sua minha pequena me deu.
Eu também chorei discretamente. Me permiti recostar em seu ombro e deixar o silêncio e as lágrimas dizerem o que não se era capaz de colocar em palavras.
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O Mikael chegou mais tarde. Ele veio, com o semblante sério e aqueles produtos melindrosos, tirar o acesso da minha veia. Sinalizou para que eu esperasse enquanto retirava a agulha e depositava um algodão embebido em álcool onde ela feriu.
Ao fim, ele deixou tudo, o que usou, em uma tigela de metal e a colocou no colchão, ao lado dos meus pés.
- Eu tô feliz que você tá melhor. - A seriedade se desfez e seu lugar à ternura é à tristeza.
- Mikael, eu fui pra aquele mundo hoje. - Os olhos do loiro brilharam em uma dor intensa. - Chegou o meu dia de ir embora.
- Não! - Ele exclamou em desespero. - Por favor, Wolfgang!
- Eu sinto muito.
Meu namorado estava desesperado. Seus olhos estavam ligeiramente arregalados e ele soluçava em meio ao pranto.
- Eu não quero te perder... - Sussurrou, sem forças para dizer aquilo em voz alta. - Tá cedo demais... Eu não quero ficar longe de você...
Toquei o rosto dele e limpei suas lágrimas com os dedos, sentindo o coração doer por vê-lo tão desesperado.
- Não quero te perder... - Repetiu, trêmulo. - Eu te amo, Wolfgang. Muito.
- Eu também amo muito você. - Toquei minha testa na dele. - Me promete que vai ser feliz, Mikael.
- Eu não posso te prometer isso. Não tem como...
- Mas vai tentar?
O loiro ficou em silêncio e deixou suas lágrimas virem.
- Não sei... - Disse com sinceridade.
Beijei sua testa e o puxei para perto de mim, em um abraço. Ele agarrou a minha blusa folgada com desespero, incapaz de me soltar.
- Obrigado, meu amor. - Falei com a voz embargada pelas minhas próprias lágrimas. - Nunca amei ninguém como amo você.
- Nem eu. E nunca vou amar... Eu não vou te esquecer nunca...
Ele me apertou em um abraço e permanecemos assim por o tempo que foi necessário para nos despedirmos. Tentei capturar cada segundo do calor do seu corpo, do seu cheiro, do toque da sua pele.
E, quando nos afastamos, com os olhos inchados e rostos vermelhos de tanto chorar, fiz um último pedido ao Mikael.
- Cuida do meu pai.
O Mikael assentiu e respirou fundo, procurando forças para responder.
- Vou cuidar.
Eu já não o beijava nos lábios há algumas semanas, por causa da minha saúde. O enfermeiro queria evitar me passar algum germe que nele era inofensivo, mas, em mim, poderia causar uma complicação mais grave.
Porém, eu não tinha mais nada a perder. Portanto, depositei um beijo leve em seus lábios e o loiro os acalentou com leveza. Foi um mísero toque entre as bocas, mas que durou algum tempo.
- O tempo não vai acabar com o que a gente viveu. - Falei para ele.
- Nada vai acabar com o que a gente viveu.
Ele beijou a minha testa e, após o beijo, me deitei na cama.
-
Meus olhos se fecharam em um cansaço intenso e só se abriram horas depois. Meu pai estava ao lado da cama, segurando a minha mão com força e o Mikael permanecia parado ao lado dele.
Eu sorri. Tive forças para sorrir por ser tão amado.
E então, minhas pálpebras se fecharam pela última vez.
FIM.
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