O Viajante - Capítulo LXIV - Wolfgang - Maio de 1973
Uma semana após o resgate da família do Mikael e a partida da Isabelle, meu namorado me disse ter encontrado um lugar para nós dois ficarmos sozinhos e em paz.
Em um domingo, no meio da tarde, seguimos por um terreno baldio, nos arredores do quarteirão, até atingirmos um matagal, em uma trilha terrosa.
Minha saúde havia piorado nos últimos dias e, portanto, na metade do caminho, fiquei ofegante.
— Quer parar um pouco? — O loiro indagou ao me apoiar com o braço.
— Não, não precisa... — Falei sem fôlego.
O Mikael passou o meu braço ao redor do seu ombro e seguimos pela trilha até alcançarmos uma clareira.
Havia uma enorme árvore ali, com uma copa espessa que fazia muita sombra. Debaixo dela, a grama era baixa e coberta por folhas secas. As raízes das árvores eram grandes e cinzentas, uma pessoa cabia facilmente nos espaços entre elas.
E foi para um desses espaços que o loiro me levou. Ele se sentou e encostou no caule cinzento e eu fiz o mesmo ao seu lado. Ao levantar os olhos, vi frutos naquela árvore e os identifiquei. Eram figos.
— O que você achou daqui? — Ele indagou.
O Mikael estava particularmente bonito naquele dia, embora fosse belo sempre. Talvez se devesse ao semblante relaxado, os cabelos loiros, caídos sobre a testa, ou a camisa que, com o primeiro botão aberto, revelava parte do pescoço. Seus olhos castanhos atraíam minha atenção, assim como a linha da mandíbula, o nariz, o queixo. Era tudo perfeitamente desenhado. Os ferimentos no rosto não tiravam nada da beleza da sua face.
— Wolfgang? — O loiro arregalou os olhos e me chamou.
Saí daquela contemplação que me fez esquecer de responder a sua pergunta. Talvez eu só estivesse cada dia mais bobo e apaixonado por ele.
— Gostei. É muito bonito. — Olhei para o horizonte e tudo o que se estendia eram árvores e mato. — O melhor de tudo é que não tem ninguém pra encher o saco.
— Foi por isso que escolhi aqui. — Seu braço me puxou para si e eu recostei a cabeça em seu ombro.
O silêncio, que seguiu, foi reconfortante. Um beija-flor se aproximou de um arbusto de flores amarelas. Ele era rápido e batia suas asas, de penas azuis com nuances esverdeadas, com pressa.
Senti a mão do Mikael tocar minha bochecha, me virei em sua direção e seus lábios tocaram os meus.
O seu beijo era calmo, mas intenso. Eu retribuí a lentidão, queria aproveitar cada segundo ao seu lado, sabendo que meu tempo era curto.
Abracei os seus ombros e diminuí a distância entre nós, com cuidado para não apertar o braço engessado. O calor, do seu corpo, contrastava com a brisa fresca. Após o nosso fôlego acabar, encostei minha testa na dele, que acariciou o meu rosto.
— É bom ficar só com você... — Ouvi sua voz murmurar. — Eu tava com saudade disso.
— Eu também. É muito ruim ter que ficar me contendo e com medo das pessoas...
— Aqui a gente não precisa pensar nisso.
— Nem nisso, nem em nada. — Afastei o meu rosto e olhei para os olhos dele, que desde o que aconteceu, no mundo enevoado, carregava melancolia. Eu não era nada bom em ler o rosto das pessoas, mas sabia ler o do Mikael. — Então, não fica com essa cara triste. A gente não precisa pensar no futuro. Não agora.
Ele sorriu e eu o beijei mais uma vez. Sua mão foi até a minha nuca e um arrepio me percorreu. Envolvi sua cintura, com os meus braços, e o segurei. Eu não queria o soltar nunca.
A minha escolha não me trazia arrependimento. Eu preferia aqueles momentos fugazes a uma realidade longe do seu abraço.
Ouvi um som alto e, no susto, nos afastamos.
O Mikael me trouxe para perto dele e olhamos em direção ao barulho.
Era um figo que tinha caído da árvore. Ele estava verde, aparentemente despencou da figueira cedo demais.
— Que susto, porra. — As palavras me escaparam altas. — Achei que tivesse sido um bicho, uma cobra...
— Cobra? — O loiro estava atrás de mim, pois o fruto caiu ao meu lado. Me virei para o olhar.
— É...
— Eu achava que você gostava de cobras... — Ele falou com dificuldade de segurar a risada.
Eu não entendi a sua reação.
— Claro que não! De onde você tirou isso? Elas são venenosas...
Até que me dei conta do duplo sentido de sua pergunta. O meu silêncio o fez rir ainda mais.
— Você é muito babaca! — Acabei rindo também. — Que merda de piada...
Não consegui continuar devido à risada. O Mikael fez cócegas na minha cintura, o que aumentou a intensidade da gargalhada.
— Babaca... — Repeti, recuperando o ar.
E, ofegante pelo riso, ele parou com as cócegas, se inclinou em minha direção, por trás, e beijou minha bochecha várias vezes.
Me virei para o meu namorado, tornei a envolvê-lo pelos ombros e nos beijamos. O toque macio, da sua boca, trouxe paz.
Os sons do vento nas árvores e o canto de pássaros me prendiam naquele momento e me faziam esquecer do resto do mundo.
O calor do nosso beijo se tornou mais forte. Curtos eram os espaços de tempo em que eu me permitia tomar fôlego. Como se eu quisesse destruir os obstáculos que nos delimitavam, encostei o meu tórax no dele e quase fui capaz de sentir o seu coração.
Com o peso do meu corpo, o Mikael me rodeou com o braço, se deitou no chão e eu recaí sobre ele.
Esse movimento fez com que nos afastássemos. Passei as pernas ao redor do seu quadril e contemplei seu rosto.
Os olhos estavam compenetrados nos meus. Debaixo deles, os hematomas apareciam em um roxo pálido. Na sobrancelha, havia um corte com pontos e um outro que estava cicatrizando lentamente, coberto por sangue seco. Esse foi causado pelo tiro do Isaac.
Eu não queria mais vê-lo se ferir daquela maneira. Toquei a maçã do rosto e a acariciei, buscando confortar, ao menos um pouco, a dor.
Os traços fortes, quase imponentes, eram fascinantes para mim. O polegar, da outra mão, tocou os seus lábios finos, com o queixo firme abaixo deles.
Por longos instantes, o silêncio bastou.
— Eu amo você, Mikael. — Tentei ser firme, embora tenha falado baixo, aos sussurros.
— Também amo você, Wolfgang. — Ele acariciou a mão que lhe tocava a maçã do rosto.
Voltei a contemplá-lo. O sorriso, o queixo, o pescoço, o peito, que se escondia debaixo da camisa.
Depositei um beijo em seus lábios. Depois, beijei seu queixo que eu admirava, na pele levemente áspera daquela região e desci para o pescoço. Me percebi desabotoando a sua camisa e, como resposta, o Mikael deslizou sua mão por debaixo da minha blusa e tocou minhas costas nuas.
Nossos corpos reagiam e o calor era compartilhado. Meu quadril estava sobre o dele, era impossível disfarçar isso.
Porém, eu não tinha pressa. Até mesmo aquelas rigidezes, tanto minha quanto dele, podiam esperar.
Eu queria o olhar e o sentir em minhas mãos. Também não notei pressa no Mikael, eu sabia que o meu namorado pensava o mesmo.
O que vi, ao abrir a sua camisa, era a continuação de sua beleza. O Mikael não era alguém forte, mas também não era magrelo feito eu. Como tudo nele, seu corpo parecia perfeitamente desenhado.
Absorto em fascinação, também tirei a minha camiseta.
O enfermeiro trouxe a mão, das costas, até o meu abdômen e a deslizou sobre ele, apertando-o levemente.
— Você é perfeito. — Murmurou.
O meu coração bateu, ainda mais forte, dentro do meu peito e o calor ardeu como fogo.
Aumentei a preensão dos nossos corpos, especialmente entre os quadris, o que arrancou um suspiro contido dele.
Inclinei-me sobre o loiro e nossas peles, do tronco, se encontraram. Os rostos, próximos, permitiam um sentir a respiração um do outro.
Ao tocar o seu braço esquerdo, que não estava machucado, o tateei. Os músculos eram firmes, o que me fez lembrar da sua constante coragem e minha admiração. Do braço, fui até sua mão e entrelacei nossos dedos.
— Eu quero aproveitar esse tempo. — Pedi em voz baixa.
— Eu também quero. Você faz eu me sentir vivo.
— Por isso eu não me arrependo, Mikael. Eu quero viver... de verdade. E eu só consigo com você.
Os beijos que vieram selaram nossas palavras. Cada movimento mais intenso, entre os quadris, fazia o calor e aquela pressão, abaixo do ventre, aumentarem.
Deitei ao lado do Mikael e o toquei íntima e lentamente, sem tirar de vista o seu olhar brilhante. Ele se perdeu em minha mão ao ponto de não conseguir conter os suspiros extasiados. Depois, recebi sua retribuição através dos lábios cuidadosos e até mesmo curiosos, já que era a primeira vez que o loiro me envolvia com sua boca intimamente. Minha perdição não foi muito diferente da dele.
Ao fim, ficamos lado a lado, relaxados e olhando o céu próximo do entardecer, com a brisa fresca e os pássaros que, vez ou outra, voavam com suas asas livres.
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Voltamos para minha casa perto do anoitecer, pois era perigoso caminhar pelo matagal no escuro.
Naquela noite, o Mikael dormiu em minha casa e demos continuidade ao desejo. Nossa urgência, um pelo outro, foi uma represa rompida após nos contermos tanto.
Meu namorado foi embora antes do meu pai acordar pela manhã. Fiquei aliviado, eu estava evitando o seu Wilhelm desde aquele inferno no meu limbo esverdeado.
Ele fez muitas perguntas sobre os meus machucados e meu estado, eu passei um dia inteiro sem conseguir conversar direito devido às coisas horríveis que vi e, todas as noites, eu acordava gritando após pesadelos.
Porém, me recusei a contar ao meu pai o que aconteceu. Era dor demais, ele não merecia detalhes sórdidos de algo que eu nem sabia se ele acreditaria. E ele parecia aflito com o meu silêncio.
Eu também estava irritado com o Wilhelm. Por mais que não fosse o que minha mãe gostaria, ver o seu fim tão cruel fez pesar o fato de que meu pai sempre se recusou a falar dela para mim.
Ele não sabia o que aconteceu com a esposa, decerto. Entretanto, a Rosa me amava incondicionalmente e o meu pai sabia disso. Era injusto esconder informações sobre a mulher que me deu a vida e me amou como ninguém.
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Os dias passaram. Eu percebia meu fôlego cada dia mais curto e a mágoa cada vez maior, como se crescessem inversamente.
Eu também tive alguns sangramentos nasais esporadicamente. E, a todo momento, o meu fim iminente era lembrado.
Tive longas conversas com o Mikael sobre meu ressentimento com o meu pai e, ao fim, decidi o confrontar. Eu não queria brigar com ele, pois o amava. Entretanto, não conseguia mais segurar o nó na garganta.
E foi em um sábado à noite que decidi colocar isso para fora, enquanto escutávamos o rádio sentados no sofá.
— Pai... — Chamei sem coragem de o olhar nos olhos. Ele se virou, para mim, e aguardou o que eu tinha a dizer.
— Eu quero te perguntar uma coisa.
— O que?
— Quero saber... Sobre a minha mãe.
O austríaco ficou em silêncio e senti um ar denso entre nós. Tomei coragem e o olhei nos olhos, no que percebi seu olhar duro sobre mim.
— Eu já te pedi pra não me perguntar sobre esse assunto. — Disse com aspereza.
— Eu tenho o direito de saber sobre a mulher que me colocou no mundo. — Eu não estava acostumado a desafiar o meu pai e, dizer aquelas palavras, foi difícil.
— O que tá acontecendo com você, Wolfgang?
— Não é justo o senhor não me deixar conhecer ela, pai.
Mais silêncio.
— Por que isso agora? — Ele indagou.
— O senhor não gosta quando eu te respondo com outra pergunta. — Falei com firmeza, embora doesse. — Eu aprendi a não gostar disso também.
— Não vou responder o que você tá perguntando e eu sou seu pai, Wolfgang. Me respeita. — A rispidez foi como uma navalha.
— O senhor sente muita falta dela, é por isso que não quer falar? — Fui gentil na pergunta, eu não queria discutir.
— Chega, Wolfgang! — Ele se levantou, bruscamente, do sofá. — Eu faço tudo por você e não tem nada que eu negaria pra te ver bem, mas eu não vou falar dela! E você sabe disso! — Eu vi lágrimas em seus olhos ao dizer essas palavras.
— É errado! — Me levantei também e percebi que minha voz aumentou. — Ela é minha mãe! O senhor tá sendo egoísta!
— Chega! — Ele gritou com sua voz de trovão. — Me respeita!
— Eu cresci sem mãe, a coisa mais próxima que tive disso foi a Norma e eu odeio ela!
— Não coloca sua tia no meio dessa história!
Me dei conta que meu pai e eu estávamos discutindo aos berros.
— Coloco, porque eu odeio ela! Odeio muito! E sempre aguentei aquela cobra por sua causa! — Havia um nó entalado na minha garganta e uma sensação desconfortante chegando.
— O que tá acontecendo com você? Wolfgang, eu não te ensinei a ser assim! E sua tia... Você vai respeitar ela! É uma ordem!
— Não vou! A Norma fez muita merda comigo! Ela já bateu na minha cara várias vezes! — Com o sangue quente, deixei escapar. — O senhor vai fazer isso também? Vai me bater pra eu calar a boca?
No momento em que as últimas palavras saíram da minha boca, todo o corpo do meu pai ficou rígido e imóvel. Os olhos azuis se arregalaram e os lábios ficaram pálidos.
— A Norma... Fez o quê?
Uma sensação gélida alastrou-se pela minha barriga e as minhas palmas ficaram pegajosas de suor. Eu não devia ter falado aquilo.
— Nada, deixa isso, pai. — Sussurrei.
— Wolfgang. — Ele se aproximou de mim e eu abaixei os olhos. Não conseguiria o encarar. — Repete o que você disse.
Eu não consegui falar nada. A cada segundo que se arrastava, percebia os meus batimentos cardíacos aumentarem e a fui tomado pela náusea.
Senti um toque suave em meu queixo e meu pai levantou o meu rosto, para o olhar nos olhos, como ele fazia quando eu era criança.
— Me fala a verdade. — Pediu com firmeza, mas também a ternura oculta na voz, que eu sabia reconhecer após 19 anos de convivência. — Sua tia já te bateu?
O repentino pavor de tê-lo decepcionado rastejou para o meu peito e me deixou mais nervoso.
— Já.
— Por que você nunca me contou?
Abri a boca, mas nada saiu.
Coragem.
Fechei os olhos e lembrei das palavras da minha mãe e, de algum modo, dos resquícios das lembranças do que eu poderia ter vivido ao lado do Mikael.
Coragem. Coragem. Coragem...
— Porque eu não queria que o senhor descobrisse.
— Wolfgang... — Ele me olhou com certa incredulidade. — Você chegou a pensar que eu ia deixar ela te bater?
— Eu não queria que o senhor se afastasse dela, ela é sua irmã.
— E você é o meu filho. Sangue do meu sangue, eu te criei, te vi crescer. Eu não admito que ela te machuque! A Norma não vai mais pisar nessa casa! — Wilhelm disse com raiva.
Respirei fundo de novo.
Coragem.
— Ela... Fez isso porque ela sabe de uma coisa...
O pavor de, finalmente, revelar a verdade me deixou com falta de ar. Respirei fundo para conter as lágrimas e escondi as mãos trêmulas atrás das minhas costas.
— Que coisa?
Coragem.
Abri a boca mais uma vez, mas nada saiu.
— Fala, Wolfgang.
Coragem.
— Pai, eu sou homossexual. — Deixei sair como vômito. — A Norma descobriu isso e passou a me odiar.
Quando o fitei, vi os olhos petrificados e uma expressão confusa em seu rosto.
E tive, como resposta, um silêncio ensurdecedor.
Os segundos se arrastaram como se fossem semanas. Ele tinha nojo de mim? A náusea aumentou e tive que cerrar os lábios para não vomitar. Eu quase conseguia ouvir o som do meu coração batendo.
— O senhor não vai falar nada? — Perguntei ao sentir o meu coração apertar dentro do meu peito. Era melhor ouvir gritos cruéis dele a encarar aquele silêncio.
— Entendi... — Só isso. Aquela foi a única palavra que ele soltou.
Wilhelm virou as costas, foi até a cozinha e me deixou parado ali, sem reação.
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Passei a noite toda sentado no sofá, fumando.
Meu pai não disse mais nada sobre o assunto e simplesmente agiu como se não tivesse acontecido.
Se o Mikael dissesse que nunca me amou ou se Norma me humilhasse em praça pública, eu sentiria menos dor no coração do o que o Wilhelm fez.
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Logo cedo, fui até à casa do Mikael. Eu nem sabia se ele estava acordado, simplesmente recostei no muro baixo de sua casa e fumei vários cigarros.
Não tardou para a minha presença ser notada - o enfermeiro era uma pessoa atenta - e ele foi até mim. E ao saber o que aconteceu, seguimos para aquele nosso lugar tranquilo, debaixo da figueira.
Catamos alguns figos e ficamos sentados, na sombra da copa da árvore, encostados um no corpo do outro.
Era cedo e eu não havia dormido nada naquela noite. O conforto de me apoiar no Mikael pesou meus olhos e adormeci.
Acordei algumas horas mais tarde com a cabeça sobre as pernas do enfermeiro, que cochilava, recostado no tronco da árvore. Não demorou para os seus olhos se abrirem e sua mão acariciar os meus cabelos, em um recado silencioso de que estava ali.
Almoçamos figos naquele dia e tudo o que se seguiu foi a tranquilidade de duas pessoas alheias ao mundo que precisaram voltar à realidade ao pôr do sol.
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