O Viajante - Capítulo LVIII - Mikael - Maio de 1973
Continuei sentado no chão da sala depois do Wolfgang se levantar e ir tomar um banho.
Meu braço doía muito, em pulsações que pareciam agulhas geladas perfurando a minha pele.
Era difícil digerir tudo o que aconteceu. Minha mente estava enevoada, sem conseguir acessar direito os pensamentos e as lembranças.
Nesse vazio, percebi que já havia passado um bom tempo desde que o Wolfgang foi ao banheiro. Levando em conta tudo o que aconteceu, eu senti medo que algo tivesse acontecido com ele.
Levantei, fui até a porta do banheiro e bati nela.
— Wolfgang? — Chamei.
Não houve resposta. O chuveiro estava ligado e, pensando na possibilidade dele não ter me ouvido, bati com mais força.
— Wolfgang, você tá bem?
Sem resposta.
Meu estômago gelou, toquei a maçaneta da porta e tomei coragem para a abrir.
Me deparei com ele, ainda vestido, debaixo do chuveiro. Os cabelos, encharcados, cobriam o rosto. O casaco pesava para baixo por conta da água. Os seus pés eram a única parte despida do seu corpo e, ao lado deles, haviam pequenas poças de sangue misturada com água, que escorreu de suas roupas.
— O que aconteceu? — Perguntei, assustado. E, mais uma vez, ele não respondeu.
Fui até o chuveiro e o desliguei. Meus pés empoeirados trouxeram barro às poças de sangue e o chão ficou imundo.
Eu só conseguia usar a mão esquerda, portanto meus movimentos estavam lentos. Ela foi até o rosto do Wolfgang e afastou os cabelos de sua face. Encontrei seus olhos perdidos repletos de horror.
O Wolfgang recostou na parede e deslizou até o chão, sentando-se e eu me agachei na frente dele.
— Mikael. — Ele sussurrou meu nome. — Eu não consigo sair daqui.
— Você tá se sentindo mal?
— Não. Eu só quero tirar o que eu fiz da minha cabeça e limpar esse sangue, mas ele não sai.
O Wolfgang estava estranho e seus olhos permaneciam distantes. Tudo o que ele viu o quebrou até à alma.
— Eu fiz tanta merda! — Ele arregalou os olhos e me olhou. — Eu tentei matar a Isabelle e o Levi! Que porra foi essa? — E sua voz se elevou. — E eu... Me desculpa!
— Para! — Eu não queria ter dito nada, não me era comum ser alguém que deixava palavras escaparem, porém, naquela situação, elas vieram como vômito. — Chega, Wolfgang! — Acabei falando alto.
O olhar dele passou de horror à confusão.
— Você já pensou em como é assistir isso tudo? — Eu não conseguia parar de falar e nem mesmo falar mais baixo. — Te ver apanhar pro Levi e depois ver você decidir, sozinho, que vai se matar? E você ainda pediu pra eu não interferir quando o Levi te estrangulou na minha frente!
Minha visão ficou enevoada, porque eu comecei a chorar. Meu coração estava acelerado, meu rosto quente e a respiração ofegante.
— Você me faz te ver se destruir! E se fosse ao contrário? Você já pensou nisso?
Quando falei isso, o Wolfgang franziu a testa em uma expressão que eu não sabia dizer se era de raiva ou tristeza.
— Você não precisa ver, porra! Eu vou embora. — E cuspiu as palavras. Eu sabia que ele iria sair dali e não queria isso. Não queria o perder.
— Que inferno! Eu amo você, eu não quero que você vá embora! — Arrisquei tocar o seu rosto e senti alívio ao ver que o Wolfgang não fugiu do meu toque. — Para de agir como se você fosse um... Um animal que tem que ser abatido!
— Mikael, eu matei. Passei dos limites! Eu brinquei com a vida das pessoas!
— Eu sei. — Deslizei os dedos sobre o seu rosto, sobre alguns respingos de sangue seco, que se soltaram ao toque úmido. — Mas você é um ser humano.
Eu me lembrei de que o Wolfgang me disse essas palavras quando me acolheu após Isaac me expulsar de casa.
De forma débil, quase instintiva, continuei a passar a mão, molhada, sobre os resquícios de sangue em sua face, que se soltavam da sua pele clara.
— Eu só não consigo mais te ver se acabar.
— Mas eu vou morrer, Mikael. Não tem outra saída.
— Morrer é diferente de se destruir. — A menção à sua morte me fez voltar a chorar. Eu sabia que perder o Wolfgang me causaria danos irreparáveis. Queria ser capaz de trocar de lugar com ele.
Os olhos, sempre perdidos, voltaram aos meus.
— Você não precisa mais se machucar por ninguém. — Respirei fundo para conter o choro que ameaçava me sufocar.
— E nem você. — O Wolfgang rebateu com tristeza e olhou para o meu braço ferido.
Ele tocou o meu rosto, com uma das mãos, que estavam molhadas, e as gotas de água escorreram pelas minhas bochechas. Com outra, segurou a minha nuca e me puxou para perto. Deixei os meus joelhos, cobertos pelo algodão das calças, tocarem o chão molhado.
Ficamos com os rostos próximos e me vi preso em seus olhos negros, que pareciam as sombras de uma noite escura. A sua respiração quente soprava em minha pele molhada e trazia conforto.
Eu queria implorar a Deus, ao destino, à qualquer divindade para não o perder.
— Não se machuca mais por minha causa. — Ele pediu sem tirar os olhos dos meus. — Eu já pedi isso pra você.
— É bem pior, pra mim, te ver se machucar e não fazer nada.
— Eu sei. Mas você vai me ver morrer se continuar comigo.
— Se eu continuar? — Minhas emoções estavam à flor da pele e me senti revoltado com o que o Wolfgang disse. — Depois de tudo, você ainda tem dúvida disso? Wolfgang, você me ofende.
— Eu não quero mais ver você sofrer, merda!
— Eu não pretendo sair do seu lado nunca. — O meu pranto era amargo e me senti completamente despido de qualquer armadura. Eu não conseguia mais me esconder do Wolfgang.
Sua face se tornou desesperada, com os olhos arregalados e lábios pálidos. As lágrimas explodiram em um choro intenso, que fazia o seu peito arfar.
— Desculpa! Merda, desculpa! — Ele soltou o meu rosto e o meu pescoço e me puxou para um abraço.
Os seus braços magros foram capazes de me acalentar e me envolveram por completo. Seus dedos acariciaram os meus cabelos e me permiti deixar as lágrimas escorrerem.
— Eu amo você. — Ouvi seu sussurro embargado.
Era estranho estar naquela posição, sendo consolado, frágil, com a alma nua. Nunca mostrei a minha fraqueza para ninguém, sempre tentei parecer firme, porém, nos braços do Wolfgang, eu desmoronei.
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Chorei por um longo período até sairmos daquela espiral de dor. Depois disso, fomos tomar um banho juntos.
Debaixo do chuveiro, percebi que o Wolfgang encarava o meu corpo com tristeza. Eu estava repleto de hematomas e escoriações que doíam e dificultavam os meus movimentos.
Ele se aproximou, ensaboou as mãos e as levou, hesitantemente, aos meu corte no supercílio. Acompanhei o seu movimento com o olhar e observei o seu rosto concentrado, com as sobrancelhas franzidas.
O toque no corte me fez sobressaltar e vi, em seus olhos inchados e cílios úmidos, um pedido de permissão para continuar.
Assenti com a cabeça. As pontas dos seus dedos finos deslizaram ao redor do ferimento, o que desfez as crostas de sangue seco que grudavam na minha pele.
No início, eu contive a dor. Entretanto, ela se transformou em alívio conforme a sujeira ia embora.
Ao terminar de limpar o corte, Wolfgang tocou o meu braço esquerdo e esfregou, com o sabão, sobre as escoriações.
Não me importei com a ardência inicial. Eu só conseguia parar de o observar e temia o interromper. Cada movimento dele me trazia conforto e uma ternura indescritível.
Ele segurou, com cuidado, o meu braço machucado. O mísero toque acionou a dor de agulhas geladas e deixei escapar um grunhido de dor.
O Wolfgang me olhou assustado.
Segurei sua mão e a guiei até os ferimentos daquele braço, de modo a amenizar o peso do seu toque. Ainda doía, mas era suportável. Ele os lavou com enorme paciência e leveza.
Fitei a sua mão e vi as unhas machucadas, sangue debaixo delas. Com o polegar, acariciei as costas daquela mão.
Me inclinei em direção ao mais baixo e beijei sua testa coberta de cabelos molhados.
Ao me afastar, o vi sorrir.
Era um sorriso de verdade, com as covinhas evidentes e, apesar de tudo, um olhar feliz. O rapaz retribuiu meu gesto com um beijo rápido nos meus lábios e eu me senti tão feliz quanto ele aparentava estar.
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Nos deitamos no colchão depois do banho. Emprestei minhas roupas para o Wolfgang, que ficaram grandes nele.
Eu estava exausto, mas provavelmente não conseguiria dormir por causa da dor em meu braço. Entretanto, queria ficar ao lado do Wolfgang, sentindo o calor do seu corpo e o seu cheiro, para que eu pudesse aproveitar cada segundo da sua presença.
Era excruciante pensar na possibilidade de nunca mais sentir a sua presença.
— Mikael. — Ele me chamou de forma sonolenta. Seu rosto estava próximo ao meu e, com o seu chamado, o olhei. — O que eu lembro, da nossa vida quando escolhi salvar só você, tá desaparecendo. Muita coisa, parecida com a nossa realidade, aconteceu...
O Wolfgang mordeu os lábios de forma aflita e virou o corpo para o lado, em minha direção.
— O Isaac também te colocou pra fora de casa. Você conseguiu resgatar a sua mãe e o seu irmão. — Disse, por fim. — Mas o filho da puta do Isaac veio atrás de vocês e te machucou.
Senti as minhas entranhas frias e meu coração acelerou. O fato de que eu tinha combinado, com a minha mãe, de a buscar, dali um dia, dilareceu meu peito por dentro.
Como eu faria isso com um braço quebrado e o corpo todo ferido?
— Wolfgang... — Eu não queria o envolver naquilo, mas também não conseguia mais esconder as coisas do Wolfgang. — Eu tenho que contar uma coisa.
Hesitei entre o alívio e o desespero ao contar. Desde que fui expulso de casa, tive a convicção que não envolveria o Wolfgang naquele conflito.
Vi seu olhar aguardar minha confissão. Eu não podia voltar atrás.
— Eu prometi, pra minha mãe, que vou buscar ela na noite de amanhã pra sexta-feira. — As palavras saíram com o ar pesado que escapou dos meus pulmões.
Seu semblante se tornou surpreso e, em seguida, as sobrancelhas franziram.
— Eu vou com você. — Se prontificou. Eu conhecia o seu olhar e sabia que estava revoltado por eu ter escondido aquilo. — Vou chamar o Levi e a Isabelle também.
Fiquei com medo do Wolfgang ir ao resgate. Sua saúde não estava boa e eu temia que Isaac o machucasse.
O meu genitor era um homem sem escrúpulos, ele não teria nenhuma misericórdia do meu namorado. Nem mesmo sei o que eu seria capaz de fazer caso o visse machucar o Wolfgang.
— Depois de tudo o que aconteceu? — Eu queria negar para não o colocar em perigo, porém, era irracional pensar que eu conseguiria resgatar Sara e Samuel sozinho.
— Eles têm motivos pra ficarem putos comigo, não com você.
— O Isaac é doente. Se ele pegar a gente, eu não sei o que vai acontecer.
O Wolfgang tocou minha bochecha e olhou, profundamente, nos meus olhos.
— Ele não vai pegar ninguém. — Abri a boca para o contestar, porém ele me interrompeu. — Confia em mim.
Minhas mãos estavam frias e trêmulas. Eu estava apavorado, porém não era capaz de encontrar outra alternativa.
— Confio. — Respondi num murmúrio contido.
O Wolfgang tocou a testa na minha e os meus músculos tensos relaxaram. Eu estava disposto a me deixar em suas mãos.
Era bom confiar em alguém e fechar os meus olhos, sabendo que poderia descansar, sem correr perigo, nos braços dessa pessoa.
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