O Viajante - Capítulo LVI - Wolfgang - Maio de 1973
Retornei para 1966, no meu quarto. Lá estava minha versão mais jovem, sentado na cama, me encarando como quem acusava em silêncio.
Me aproximei e fiquei diante do garoto irritado.
- Você vai entrar no mesmo ônibus que o mauricinho do Colégio Presbiteriano. - Falei com firmeza e seriedade. - E acordar o motorista quando chegarem na rua 18.
- Três vidas. - O mais novo suspirou. - Eu vou me foder tanto por isso.
- Mas você vai ter orgulho.
Seus olhos encararam, profundamente, os meus.
- Se ama. - Repeti as palavras que minha mãe me disse antes de morrer. - Porque você vai salvar a vida de três pessoas.
Ele não respondeu, a escuridão tomou conta da minha consciência e interrompeu o meu diálogo com minha versão mais jovem.
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E lá estava eu, sentado no chão, apoiando o Mikael com um dos braços e com a Isabelle, moribunda, diante de mim.
Minhas entranhas pareciam congelar de tanta aflição, meus olhos não saíam dela e eu ainda tocava o seu rosto.
Ela e Levi pararam de gritar e se debater. Os olhos da jornalista não se moviam mais de forma anômala, as veias, aos poucos, se tornaram menos evidentes e sua respiração normalizou.
A jornalista soltou o meu casaco e piscou algumas vezes. Olhei para o Levi e o vi sentar no chão.
Isabelle também se ergueu e se afastou de mim, bruscamente. Ela ficou de pé e me encarou com pavor.
- Você tentou me matar? - Gritou, em um tom acusatório e eu senti o olhar de Mikael e Levi sobre mim. - Que merda foi essa, Wolfgang?
- Tentei. - Foi difícil me manter olhando nos olhos dela, porém, era o mínimo que eu podia fazer. - No meio dessa merda de confusão, eu voltei pra 66 e impedi só o Mikael de embarcar no ônibus.
- Eu sabia! - A voz de Levi estava fraca. A exaustão recaía sobre os quatro. - Sabia que, quando as coisas apertassem, você ia matar a gente!
- Você é doente! - Isabelle continuou a gritar. - Eu... Te defendi. Merda, eu confiei em você!
- Desculpa.
Ela negou com a cabeça, correu até o Levi e se sentou ao lado dele.
Delicadamente, o Mikael apoiou o queixo em meu ombro. Seu corpo estava fraco, como denunciava os braços trêmulos.
- Não precisava ter feito isso, Wolfgang. - Ele sussurrou.
- Desculpa. - Repeti. - Eu... - Cerrei os dentes para conter os soluços do choro. - Não tem perdão pro que eu fiz.
- Você sabe que eu te amo. - O enfermeiro falou baixo. - Em todos os caminhos possíveis. E isso inclui aqui e agora.
As palavras dele pesaram no meu peito e apertaram a minha garganta, me deixando incapacitado de falar.
Olhei para Levi e Isabelle com tristeza. Eu tinha acabado de perder dois amigos e a culpa estava me corroendo por dentro.
O mecânico se levantou e veio, em passos pesados, em minha direção, me agarrou pelos cabelos e me puxou, o que fez Mikael ter que desvencilhar, violentamente, de mim.
Levi me jogou contra o asfalto, se debruçou sobre mim e agarrou o meu pescoço com ambas as mãos.
- Filho da puta! - Ele gritou.
Com o canto dos olhos, vi Mikael ficar de pé e cambalear.
- Fica! Não chega perto, Mikael. - As minhas palavras saíram engasgadas, pois Levi apertou suas mãos no meu pescoço. - Eu preciso... Morrer.
- Você nunca mais vai tentar me matar! - O mecânico disse entredentes. Mikael, com seus passos vacilantes, se aproximou e desferiu um forte chute nas costelas do Levi.
Mas o mecânico não me soltou. Era como se a dor não existisse, pois perdia para sua fúria.
- Você não é Deus! Quem te deu o direito de decidir quem vive e quem morre, porra? - Levi gritou. - QUEM?
Vi seus olhos ressentidos, banhados em lágrimas. Pareciam mais tristes do que irritados. Ele cerrou a mandíbula, franziu a sobrancelha.
E, inesperadamente, soltou o meu pescoço e caiu sentado. Isabelle correu até ele, sentou ao seu lado e o abraçou.
Mikael fez o mesmo comigo. Seu abraço foi apertado, ele tocou minha cabeça e a colocou contra o seu peito, que subia e descia rapidamente pela respiração ofegante.
- Eu não... - Ouvi a voz embargada do Levi. - Não quero matar você, seu filho da puta imbecil. Que merda, eu não quero te machucar!
- Você é uma boa pessoa, Levi. É incapaz de matar alguém. - Isabelle falou apressadamente.
Afastei o rosto do corpo do Mikael, e encarei o rapaz e a moça sentados diante de mim.
- Desculpa. - Repeti, em uma súplica. - Eu... Fiz a maior burrada da minha vida.
- Quem garante que não vai fazer de novo? - Levi indagou. Ele não estava bravo ou com medo, aparentava apenas estar cansado.
- Eu vou dar um jeito nisso. - Respondi. - E vai ser agora.
- O que você vai fazer? - Mikael perguntou, com os olhos assustados. - Wolfgang, não me pede mais pra te deixar morrer, eu tô implorando isso.
- Não. Você não vai ter que ver nada. - Garanti e me afastei dos seus braços.
- O que você vai fazer? - Isabelle repetiu a pergunta do Mikael.
- Eu vou matar a minha contraparte, que salvou só o Mikael, e apagar essa realidade.
- Não! Você não... Vai carregar um fardo desse! - O enfermeiro protestou. - Wolfgang, isso vai acabar contigo.
Isabelle abriu a boca, como se fosse falar algo, mas se calou. Levi, por sua vezes, apenas me encarava com os olhos assustados.
- Vou. Eu tomei uma porra de uma decisão egoísta e preciso pagar por isso. - Fitei o Mikael, que tentou se levantar, mas suas pernas cederam. - Não tenta me impedir, Mikael. Eu preciso fazer isso e preciso te ver bem quando a gente sair daqui. Então, não se machuca mais.
Os seus olhos castanhos foram banhados por lágrimas, que logo cederam e deslizaram por suas bochechas.
Procurei, com os olhos, o meu canivete, pois Isabelle o deixou cair quando começou agonizar. Assim que o encontrei, o catei o chão e segui o caminho do meu calvário.
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Estar naquele meu mundo verde e enevoado significava estar conectado, comigo mesmo, em várias versões de diferentes tempos.
Portanto, sabia onde encontrar o Wolfgang de 12 anos, prestes a ir para a estação de ônibus, alcançar o quarteirão do bar do Silva e impedir o Mikael de embarcar no veículo que lhe traria a morte.
Vi aquela versão púbere caminhando pela rua. Minhas mãos começaram a tremer e eu não resisti ao pranto doloroso.
Tirei a lâmina do canivete de dentro da empunhadura e corri até ele, que olhava confuso para o limbo ao seu redor.
Nesse instante, minha mente se desconectou do mundo. Fiquei alheio ao ato monstruoso que cometia, sem sentir meus braços, nem minhas pernas. Me afundei nas lembranças da minha vida para suportar o que eu estava fazendo.
Me recordei de quando eu era bem pequeno e me sentei no sofá, ao lado do meu pai, com um livro nas mãos. Li três páginas para ele e seu Wilhelm sorriu para mim, com orgulho, e bagunçou os meus cabelos.
Outra memória que me acalentava era de um dia que caí, ao brincar na rua, e meu pai me socorreu. Ele passou um remédio sobre os meus joelhos e mãos raladas, que ardeu e me fez chorar. A reação do meu pai foi secar minhas lágrimas com os dedos e, embora não tenha dito nada, eu sabia que era sua maneira de demonstrar que estava tudo bem.
Pude reviver um momento em que observei o Mikael rir de algo que conversávamos e me sentir feliz, admirar seus traços e contemplar sua beleza até ele notar que eu o fitava com uma cara de idiota.
O conforto me veio também ao resgatar os momentos em que conversei assuntos triviais com a Isabelle, Levi e Mikael e rimos.
Eu queria viver nas minhas lembranças. Escapar do meu tormento e reviver aqueles momentos em que fui, verdadeiramente, feliz.
Porém, a realidade me puxou, para o presente, sem piedade alguma e me vi ali, sujo de sangue, com uma lâmina ensopada do líquido rubro e minha versão mais jovem morta, caída no chão.
Era impossível esboçar uma reação àquela cena dantesca. Eu apenas saí andando, lentamente, até o lugar que estava antes.
Como era possível continuar?
Redimi meus pecados, salvei vidas e aniquilei, sem hesitação, a possibilidade de voltar atrás.
Fiz o que era certo, mas sujei as mãos com o meu próprio sangue. Por mais que eu fosse digno, por que eu me sentia como um pedaço de merda?
Dei-me conta que não existia conforto para mim, todas as decisões me trariam dor. Entretanto, algumas poderiam me causar orgulho também.
Minhas pernas não se firmaram no chão, a cada passo, os meus joelhos quase cediam e ameaçavam me derrubar.
Os movimentos eram lentos e penosos, tal como os caminhos de minhas escolhas. Porém, com resignação, andei devagar, sem cair.
E cambaleei até onde Mikael, Isabelle e Levi estavam. Ouvi suas vozes alteradas ao me verem sujo de sangue. O Mikael ficou de pé, veio até mim e tirou o canivete, ensanguentado, da minha mão.
Ele falou algo, mas sua voz estava distante. Nada disso importou quando senti seu braço me puxar contra o seu corpo, mas não consegui reagir ao abraço.
O verde, que cintilava do céu, desapareceu. A neblina cinzenta e o barulho doloroso também se foram e nos encontramos em uma rua escura, deserta e sem iluminação.
Uma decisão sem volta foi tomada. A partir daquele ponto, minha vida se tornaria uma contagem regressiva para o fim.
Me permiti fechar os olhos, contra o corpo do Mikael, e relaxar os meus músculos. Não havia mais nada para resolver, nada para descobrir...
Eu tinha tempo curto, o calendário marcava o meu fim, pois, em poucos meses, eu iria morrer.
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