O Viajante - Capítulo L - Mikael - Maio de 1973
Levi era mais forte do que eu e não foi difícil para o mecânico me subjugar após eu dar vários socos em sua cara até o sangue escorrer de seu nariz.
Eu estava caído no chão e Levi segurava o meu pescoço, olhando-me com raiva nos olhos.
— Filho da puta! — As palavras do meu oponente saíram carregadas de desprezo. — Lixo de merda que deixou minha mãe morrer...
Ele desferiu mais um soco na minha cara. Meu sangue estava quente e mal senti o peso de seu punho amassando a minha têmpora.
Não importava. Tolerar a dor de pancadas não era uma habilidade nova, a bem da verdade, eu era muito bom nisso.
Pensei no Wolfgang e no meu desejo de vê-lo mais uma vez e isso amenizou toda a angústia do meu corpo espancado.
— Eu fiz o que eu pude pela sua mãe... — Minha voz saiu fraca. O Isaac me ensinou a jogar sujo. Ele sempre buscava infligir o máximo de dor com o mínimo de esforço possível. Dignidade nunca foi o forte do meu genitor.
Lutei muito para não ser o filho dele, porém o seu sangue ardia em minhas veias quando eu percebi que, alguém que eu amava, estava correndo perigo. Foi assim quando vi Isaac ferir o Samuel e estava acontecendo de novo, ao ouvir o Levi ameaçar o Wolfgang.
Como eu não tinha força para afastar o mecânico, ergui o meu braço com esforço e, em um movimento rápido, levei o dedo indicador e médio em direção aos seus olhos e os afundei neles.
Levi gritou de dor e, nesse momento, tirei os meus dedos dos seus olhos e desferi um soco, vindo de baixo, contra o seu queixo. Eu sabia onde o corpo humano tinha mais terminações nervosas e, com as lições de Isaac, era um excelente covarde.
O rapaz se afastou, caiu para trás, sentado no chão, piscou os olhos e os limpou. O semblante confuso denunciava a tontura causada pelo soco. O queixo era um ponto sensível, uma pancada forte ali podia até mesmo causar um desmaio.
Levantei do chão com tanta pressa que meus joelhos doeram.
Senti alívio ao notar que os olhos do Levi estavam apenas vermelhos e eu não o ceguei, porém não era hora para compaixão. Ele se recuperou rapidamente e a fúria em seu semblante era assustadora.
Levi se levantou e veio em minha direção, pronto para vingar o meu ataque baixo.
Corri rumo à cozinha e fui até o balcão, onde estavam as gavetas com os utensílios domésticos. Apesar do cômodo estar ligeiramente diferente do que eu conhecia, consegui encontrar a gaveta que ficavam guardadas as facas. Abri-a com pressa e tirei, de lá, a maior lâmina.
O Levi arregalou os olhos ao ver a faca em minha mão, ele parou de correr e ficou estático, me encarando.
— Vai embora e deixa o Wolfgang em paz. — Empunhei a arma com firmeza. — Ou eu mato você.
— Você é louco.
— Sou. — Aceitei a acusação sem hesitar.
Ele recuou, sem tirar os olhos de mim e, ao chegar próximo da porta da casa, deu as costas e saiu correndo por ela.
–
Nada passava pela minha cabeça a não ser encontrar o Wolfgang. Se eu perdesse esse objetivo de vista, entraria em desespero.
Saí da casa dele e caminhei pela rua com a faca na mão. A neblina estava muito densa, o que deixava difícil enxergar o caminho.
Meu rosto estava começando a doer, uma vez que a adrenalina em meu sangue diminuiu. O supercílio latejava e a dor se espalhava por toda a face, que estava imunda de sangue seco.
Senti as lágrimas umedecerem minhas bochechas e, sem nenhuma ameaça para enfrentar, eu encontrei uma dor excruciante.
Eu não queria perder o Wolfgang. Nem mesmo sabia o que me assustava mais: a minha morte ou a dele.
Nasci da Sara e ela teve o Samuel treze anos depois de mim, eu o vi crescer e meu contato com os dois era inevitável. Eu os amava e daria minha vida por eles, porém eu não optei por isso, simplesmente foram as circunstâncias da vida.
Então eu conheci o Wolfgang e passei a amar alguém sem sua presença ter sido imposta. Desde o início, quando ainda o via apenas como um amigo, eu o buscava. Queria sua companhia tão constante quanto a da minha mãe e do meu irmão.
A dor que resultaria de sua ausência seria uma maldição.
Conforme caminhava, enxerguei um vulto na neblina. Parecia magro e não muito alto, o que me fez correr em sua direção.
Era o Wolfgang, eu conseguia o reconhecer de longe.
Mas quem eu vi se revelar na neblina não parecia o meu namorado. Era o Wolfgang, entretanto, estava diferente de como eu conhecia. Seu corpo estava extremamente magro, beirando ao esquelético, o cabelo estava preso em um rabo de cavalo e ele usava uma camisa social azul e folgada, que não parecia típica das roupas que ele costumava usar, se assemelhava mais a uma camisa minha.
— Wolfgang? — Indaguei, sem entender aquela figura ali. Ele não era o meu Wolfgang.
Seus olhos se arregalaram os ao me ver e ele se aproximou.
— Que porra é essa? O que aconteceu com você? — O rapaz ergueu a mão para tocar a minha têmpora suja de sangue, mas hesitou. — E essa faca?
— Foi... Uma briga com o Levi. Eu apanhei feio e quis dar um susto nele pra poder fugir... E pra te proteger.
Seus lábios esboçaram um breve sorriso triste que deu lugar à preocupação em suas feições.
— Tá sangrando. — Após o hesitação inicial, ele tocou o corte no supercílio e o pressionou.
Senti uma dor abrupta com o toque e um resmungo escapou da minha boca.
— Desculpa. Você que me ensinou que tem que apertar quando sangra... — O rapaz mordeu os lábios de forma apreensiva. — Não você... O outro Mikael.
— Outro Mikael?
— Uma versão sua de um futuro diferente.
Franzi o cenho confuso, tentando digerir a situação.
— Eu não tô entendendo... — Falei.
— Eu fiz... Merda. — Seus olhos desviaram dos meus e ele fitou o céu cor de esmeralda, sem tirar a mão do meu ferimento. — Fui um lixo egoísta.
— O que você fez?
— Salvei só você e vivi um pouco mais...
— Me explica direito... — Senti o meu coração acelerar e uma esperança cruel me aquecer.
— Aqui o tempo não obedece uma ordem e eu tô encarando as consequências de todas as escolhas. — O rapaz suspirou. — Uma das minhas opções foi te impedir de entrar naquela merda de ônibus. Salvar uma vida me mata mais devagar do que salvar três.
Ele realmente iria morrer? Eu não queria acreditar naquele futuro, tinha que existir uma alternativa.
— Não, você não vai morrer...
— Mikael, você sempre foi mais racional que eu, porra. — Seus olhos se encheram de lágrimas. — E sabe que eu vou.
— Eu não vou aceitar isso.
Novamente, aquele Wolfgang sorriu tristemente.
— Eu salvei você te sacaneando na estação de ônibus. Fingi que passei mal e enganei o mauricinho tonto.
O meu coração parecia ser esmagado por dentro do meu peito e eu quis o arrancar dali.
— A gente se conheceu e começou a sonhar um com o outro. Mas eram dois moleques, não lembro a idade... — Ele continuou.
— Se você tinha 12, eu tinha 16. — Me recordei de sua dificuldade com números e o ajudei.
— Isso. Então, eu fugi de você e você de mim, a gente ficou com medo dessa merda esquisita... Mas os sonhos nunca sumiram.
— A gente cresceu sonhando um com o outro?
— Foi. Eu te via crescer nos meus sonhos e o mesmo acontecia contigo.
Não consegui dizer nada, estava repassando todas as informações na minha cabeça.
— Até que a gente se encontrou naquele lixo de bar que eu trabalhava. — O Wolfgang me olhou. — A gente investigou o que tava acontecendo, mas não descobriu nada. E... Não tinha como eu não acabar me apaixonando por você.
— Foi recíproco...
— Sim. A gente se reencontrou em... 1973. E eu tô em 1978...
— Você tá no futuro?
— É. Quanto tempo passou de 73 a 78?
— 5 anos.
— Nesse destino, eu tô há 5 anos com você, a gente mora numa casa na saída da cidade e tem um cachorro. A vida é boa.
Desejei, de todo o meu coração, viver aquela vida.
E logo me arrepiei ao querê-la tanto, pois ela significava a morte da Isabelle e do Levi.
Percebi um filete de sangue escorrer do nariz do Wolfgang, ele se afastou de mim e pressionou as narinas, manchando o rosto com o meu próprio sangue, que havia ficado em sua mão após pressionar meu corte. Logo, nossos sangue se misturaram em seu rosto pálido.
Andei em direção à ele para o ajudar, porém o Wolfgang recuou.
— Não. Eu não sou o seu Wolfgang, não faço parte do seu mundo. — As lágrimas cederem e escorreram pelo seu rosto. — Eu vou morrer logo. Vou procurar o Mikael da minha própria realidade e morrer perto dele.
— Você não pode morrer... — Minha voz saiu trêmula, evidenciando toda a dor do meu coração. — Não dá pra... Te perder.
— Eu sinto muito... — O Wolfgang recuou mais um passo. O sangue já escorria com tanta intensidade que manchava a camisa azul. — Aproveita o tempo que falta pro seu... Wolfgang ir. E tenta ser feliz.
Ao dizer isso, ele virou as costas e sumiu em meio à neblina no horizonte.
E eu apenas o encarei partir, mortificado em um abismo frio e escuro, sem coragem para me mexer um único centímetro. Como eu poderia me preparar para ter parte de mim arrancada com violência? Era impossível.
O vazio tomou de mim todas as minhas forças, ele era irreversível.
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