Capítulo 1.
Ela era escrava do próprio medo, e ao mesmo tempo, a única que podia se salvar, e a todos ao seu redor. Mas como fazer isso?
Trabalhar. Essa era a vida que Kyara conhecia, todas as manhãs, de todos os dias desde que se lembrava, ela trabalhava no campo de trigo de umas das fazendas da região onde morava, no Distrito Felcia, por horas a fio.
Não havia vida fácil em Vência, seu país, não com os altos impostos que todos deviam pagar a ditadora Úmbra, não quando os mais ricos viviam de barriga cheia como porcos, enquanto os pobres, camponeses e mendigos, sofriam de barrigas vazias.
— Kyara, olha, vai chover. — Thomas cutucou a garota com o cotovelo — Quanto tempo acha que dura dessa vez?
Kyara olhou para o céu. Sua pele negra suava por baixo das roupas puídas, e os cabelos estavam amarrotados embaixo do lenço que usava na cabeça.
Estavam no meio do campo de trigo, colhendo o serial havia horas, brilhava como um mar de ouro, por toda parte.
Acima deles, nuvens escuras ameaçavam tempestade, e a meia dúzia de adolescentes, incluindo Kyara e o muito sardento Thomas, pararam seu trabalho para ver o céu.
— A última foi bem demorada. Não é estranho que a chuva negra esteja mais frequente que nunca nos últimos meses? — Cochichou ela em reposta — Sabe que ela nos espiona, né?
— Sei, e pelo amor de Deer*, não fale isso quando essas nuvens estiverem lá em cima. — Repreendeu o ruivo, em voz baixa — Quer ser morta?
— Que pergunta idiota, Thomas. —Kyara voltou a colher o trigo —Ninguém em sã consciência quer morrer.
— Eu sei. Mas você não tem consciência, muito menos sã.
Os olhos castanhos de Kyara fuzilaram o amigo, mas ela sorriu.
A chuva caiu como o prometido, uma hora depois, quando os trovões ficaram mais altos, a chuva negra desceu do céu com rapidez, e logo estava por toda parte.
Não era uma chuva como as outras. Cada gota escura que descia das nuvens espionava e relatava a vida e a rotina de todos em Vência para Úmbra, e os soldados de prata dela.
— Ainda bem que essa chuva não faz mal a plantação. — Thomas se agachou ao lado de Kyara.
— É, mas a nós ela faz. — A adolescente cruzou os braços.
Os dois, assim como os outros trabalhadores, esperavam a chuva passar embaixo de um toldo.
Nos limites da plantação, haviam três desses toldos, onde os trabalhadores se abrigavam enquanto a chuva não passava, ela caía ou menos duas vezes por dia.
— Como está sua mãe? — Thomas fixou a amiga com os olhos castanhos claros — A tosse melhorou?
Kyara suspirou, negando com um movimento de cabeça.
Todos da região trabalhavam nos campos desde muito novos, Felcia era o Distrito responsável pela agricultura, e muitos trabalhadores haviam adoecido graças a chuva negra que começara há duas décadas, e agora, apenas os jovens eram saudáveis o suficiente para trabalhar.
— Acho que os chás e remédios não estão funcionando como antigamente. — Kyara encolheu os ombros — Se tivessem descoberto os efeitos da chuva antes...
— Ei, shh! — Thomas tempou a boca dela com a mão calejada — Por Deer, Kyara! Olha lá o que vai dizer. Tem muita gente aqui.
A outra revirou os olhos, tirando a mão do amigo de sua boca, e falando antes que ele reclamasse, ou a interrompesse.
— Você precisa parar com esse medo idiota. — Ela franziu as sobrancelhas — Eu sei que não posso falar tudo que penso, e não ia falar nada que todos já não soubessem muito bem.
— Você é incorrigível. — Thomas revirou os olhos — Certas coisas, por mais que todos saibam, não podem ser ditas em voz alta.
— Sua mãe quem te disse isso? — Kyara abraçou os joelhos.
— Sim. — Thomas inclinou a cabeça para ver a chuva, que agora ficava mais fraca — Ela acha que você se parece com seu pai, e ele concordava com ela.
— Minha mãe não concorda. — Kyara passou a mão pelos cabelos cacheados e escuros — Ela acha que a verdade deve ser falada, não só pensada. E eu concordo com minha mãe.
Thomas deu de ombros.
— Cada qual com seus ideais. Ah... a chuva parou, hora de voltar ao trabalho.
Quando Kyara parou de trabalhar, a tarde já estava no fim e o sol se escondia lentamente atrás das montanhas verdes que marcavam a fronteira do Distrito Felcia com Cruzades, o Distrito de mineração.
— Vai direto pra casa? — Thomas parou ao lado de Kyara.
A jovem se virou enquanto tirava o lenço dos cabelos.
Estavam na pequena construção onde os trabalhadores guardavam seus pertences, em torno deles, os outros jovens pegavam suas coisas e saiam em grupos pequenos pelas portas de ferro.
— Preciso pegar mais remédio com Welt. — Ela jogou o lenço numa bolsa de pano, junto com a camisa de manga longa que vestia, ficando com apenas com uma regata — Vem comigo?
— Tenho que passar no meu avô, foi mal. — Thomas pegou sua bolsa pendurada na parede e passou a alça pela pescoço — Quer que eu te busque amanhã?
Kyara passou a mão pelos cabelos, ajeitando-os.
— Vou ter que sair mais cedo amanhã, então não precisa. — A adolescente pendurou a bolsa no ombro — Manda um beijo pra sua irmã, aquela gracinha encapetada.
Thomas gargalhou acompanhando a amiga rumo a saída.
— Ela gosta de você, sabia? Só não criou juízo ainda. — O ruivo enfiou as mãos nos bolsos da calça surrada — E fez um escândalo essa manhã porque achou mais uma sarda no nariz. — Ele fez uma careta.
— Quando ela vai aceitar que ruivos têm sardas? — Kyara franziu as sobrancelhas, os dois deram a volta na construção, seguido por um estreito caminho de terra — Sério, ela precisa parar de esfregar limão no rosto.
— Ah, não adianta argumentar com ela, é teimosa feito uma mula. — Thomas balançou a cabeça — Por Deer, vai enlouquecer minha mãe qualquer hora!
Kyara riu, concordando. Ao fim da estrada de terra se abria um amplo pátio, e logo adiante os portões de entrada da fazenda. Um grupo de jovens se aglomerava em frente a eles, que se abriam lentamente.
Postes de luz altos estavam um de cada lado do portão, e iluminavam os rostos magros e fatigados dos adolescentes. O sol havia sumido.
Os jovens começaram a sair, aos poucos, e logo estavam numa estrada de cascalho que levava a uma das aldeias onde moravam.
— Meus braços doem. — Resmungou uma garota loira, não muito distante de Thomas e Kyara — Por que sábado não chega logo?
— Porque hoje é terça, e os dias bons sempre demoram a chegar. — Respondeu o garoto ao lado dela, era pelo menos uma cabeça mais baixo — Ao menos amanhã é dia de pagamento.
Kyara suspirou, apertando a alça puida da bolsa. O pagamento não era grande coisa, ainda mais quando se tinha uma mãe doente em casa.
Thomas a empurrou com o ombro.
— Ei, não precisa esquentar a cabeça com sua mãe. — Ele sorriu de leve, Kyara era uma cabeça mais baixa que ele — Ela vai ficar bem, e seu aniversário tá chegando.
— Não sei como estar um ano mais perto da morte pode ser motivo de comemoração, mas aceito os parabéns quando chegar o dia. — Brincou.
— Qual é, Kyara... — Resmungou Thomas, revirando os olhos e chutando o cascalho da estrada —
Podia ficar mais feliz com seu aniversário. É mais um ano viva, muita gente não tem a sorte de fazer vinte, sabia?
— Eu sei, e sinto muito por eles, de verdade. — A estrada se dividiu em dois caminhos, eles e outros dois garotos pegaram o da direita — Mas meu aniversário é só um dia como qualquer outro.
— Bem... — Thomas franziu as sobrancelhas, parando de andar — Não devia ser.
— Vamos mesmo discutir isso aqui? — Kyara parou de andar, a iluminação na estrada era precária e não estava necessariamente claro — Minha opinião não vai mudar com um discurso seu de dez minutos.
— Não parei para discutirmos isso. — Ele olhou por cima do ombro dela, para os dois garotos que sumiam numa curva, onde as casas começavam — Queria saber se ainda está vendo aquelas... sabe, aquelas coisas. — Ele encolheu os ombros.
Kyara olhou para o chão, encolhendo os ombros ao fechar os olhos. Um suspiro frustrado saiu de seu peito antes de responder.
— As vezes eu vejo. Normalmente quando estou dormindo, você sabe. — Ela abriu os olhos castanhos — Mas estou com medo do que vi da última vez.
— Acha... acha que pode ser lembranças de uma outra vida?
— Quê? Não, não, isso não. — Ela balançou a cabeça, movendo os dedos cor de avelã para a clavícula — São apenas sonhos, bobagem.
Ela voltou a andar, o ruivo a acompanhou. A lua ainda não havia aparecido e as estrelas eram poucas aquela hora. As casas pequenas de janelas baixas começaram a aparecer, dos dois lados da estrada.
— Sabe muito bem que não é só isso. — Thomas coçou uma sarda no nariz — Mas não vou insistir.
— Jevir*. — Kyara pois a mão no ombro dele, sorrindo — Agora preciso mesmo ir até Welt.
— E eu vou ver meu avô antes que ele me deserde. Pela décima nona vez. — Riu o garoto.
Quando os dois se separaram, Thomas seguiu adiante pela estrada, agora mais estreita, e virou a esquerda para subir uma escadaria, enquanto Kyara virou a direita, por uma viela mal cheirosa entre casas de madeira e tijolos desbotadas.
A casa de Welt era uma das últimas, ficava no fundo da viela, mais afastada das outras e um poste com uma lâmpada velha, jogava sua luz amarelada sobre a fachada da casa.
Kyara parou na soleira, apertando a alça da bolsa antes de levar a mão fechada em punho para bater na madeira velha que era a porta, quando ela se abriu sozinha.
A jovem pulou de susto quando a figura atarrancada de um velho corcunda apareceu, apertando os olhos azuis na direção da garota, ele bufou, com irritação, tossindo em seguida.
— Sabia que viria hoje, entre logo, vamos, vamos, um velho como eu não pode pegar cereno. — Resmungou, acenando impaciente para que ela entrasse — Que diabos aquela fofoqueira está fazendo ali?
Kyara, que já estava a meio caminho de entrar na casa, se virou a tempo de ver a cabeça grisalha de uma senhora na janela de umas das casas.
— Sua fofoqueira do demônio! Vai cuidar da sua vida! — Berrou o velho, empurrando Kyara para dentro —
Você é pior que a chuva negra! — Acrescentou ao bater a porta.
Kyara piscou surpresa.
O velho a contornou, tossindo com a mão sobre o peito, começando andar pela sala, não que se parecesse com uma. Haviam diversos vasos pendurados e espalhados pela casa de madeira, com as mais diversas plantas e flores.
Além de prateleiras cheias de frascos com líquidos estranhos e coloridos.
— Aquela gralha velha... com os demônios, o que ela pensa? — Ele desviou de um vaso onde as folhas escuras de uma planta deslizavam para fora — Como se minha vida fosse um livro aberto... inferno.
— Ah... — Kyara abriu e fechou a boca, sem saber o que dizer.
Então a porta foi aberta mais uma vez e um rapaz entrou, era um pouco mais velho que Kyara, porém, mais baixo, os olhos azuis como os do velho que resmungava entre as plantas.
— Deixa eu adivinhar. — Ele cruzou os braços, parando ao lado da jovem e franzindo as sobrancelhas para o velho — A vizinha estava olhando pela janela?
— É, e ele a comparou com a chuva negra. — Kyara acresentou, o garoto riu, e o velho se virou pondo as mãos nos quadris — Uma comparação muito bem feita, a propósito.
— Jovens. — Ele saiu mancando para os fundos, onde sentou numa cadeira de balanço velha — Que Deer tenha pena de Vência!
Kyara olhou para o jovem ao seu lado de soslaio, ele ria com uma não na frente da boca, então respirou fundo e a encarou de volta.
— Veio buscar mais ervas para o chá da sua mãe? — Ele saltou os dois degraus que separavam o portal da sala.
Ao fundo o velho tossiu, uma tosse rouca, asmática, então começou a resmungar.
— Sim, mas... — Kyara apertou a alça da bolsa outra vez — Acho que não estão mais fazendo o efeito de antes.
— Então veio aqui pegar, por que? — Chiou o velho da cadeira.
Kyara sentiu o rosto esquentar de vergonha.
— Ei, acho que já está na hora de você ir se deitar, velho. — O rapaz se virou nos calcanhares para encarar o idoso — Eu resolvo aqui.
O senhor saiu reclamando e tossindo, as costas curvadas pela corcunda, até que sumiu entre as plantas.
— Jevir, Welt. — Kyara suspirou — Que Deer me perdoe, mas seu avô é muito complicado.
— Eu estou velho, não surdo! — Gritou a voz rouca do idoso, vinda de algum lugar nos fundos.
Kyara encolheu os ombros, Welt riu outra vez, parecia a risada de uma criança.
— Ora, vamos, ele só é temperamental. — O jovem moveu os olhos azuis para os vasos pendurados em volta — Disse que o chá não estava fazendo efeito?
— As crises estão mais frequentes, e a tosse parece mais seca que antes. — Explicou, Welt cheirou algumas folhas — Que... que acha que pode ser?
— Bem... — Ele passou a mão por alguns vasos e andou até um que estava no chão — Não dá para saber o que os resíduos da chuva negra faz com as pessoas, varia muito de um para o outro, então não há um padrão para estudar.
— Mas, você acha que ela está piorando? — Kyara desceu os dois degraus e apertou as mãos — Que... que ela pode...
— Não sei. De verdade, não sei o que esperar. — Welt a interrompeu, arrancando três folhas da planta e a encarando — Sua mãe é forte, vamos tentar outro chá semana que vem, que acha?
— Parece uma ótima ideia. — Kyara suspirou, levando a mão ao peito — Sobre o pagamento... eu...
— Não esquenta. — Ele a interrompeu outra vez, diminuindo a distância com alguns passos — Se sua mãe melhorar, aí você me paga, nada de extras.
— Welt... — Começou Kyara.
--- Sem discussões! --- Ele pois as folhas na mão dela, os cabelos castanhos meio bagunçados --- Não vou cobrar por um remédio que não funciona.
--- Jevir. --- Ela guardou as folhas na bolsa --- Queria que todos fossem assim. --- Disse com sinceridade.
Welt riu, os olhos azuis quase sumiam devido aos cantos que se enrugavam quando ele sorria, então acariciou as folhas longas e vermelhas de uma planta a sua esquerda, seus cabelos eram grandes o suficiente para cobrir nuca, orelhas, e a testa.
— Quem sabe um dia. — Suspirou ele.
— É quem sabe. Bem, vou indo então, esta cada vez mais escuro, e não quero chegar tarde em casa.
Kyara rumou para a porta.
— Quer que eu te leve? — Welt a alcançou nos degraus — Não é muito seguro andar sozinha a noite, hoje tem patrulha.
— Oh, não precisa. — Ela balançou a cabeça, ele abriu a porta — Chego em casa antes, jevir pela gentileza.
— Que nada. — Eles saíram na soleira — Qualquer novidade com sua mãe, me avise.
— Pode deixar, eu...
Kyara sentiu-se tonta de repente.
Sua cabeça girou e ela teve a impressão de ouvir a voz de uma mulher a chamado. Então, quando piscou os olhos, viu o rosto pálido de uma mulher com cabelos da cor de fogo.
A voz a chamou de novo, mais nitidamente, um nome foi sussurrado, mas ela não conseguiu entende-lo.
A imagem sumiu depressa, ela sentiu a língua pesar como chumbo, e Welt a segurou pelo braço, para que não caísse.
Sua respiração ficou pesada e a voz ainda ressoava em sua mente quando conseguiu focar no que Welt lhe dizia.
— Sua pele está quente como brasa! — Exclamou o jovem, agora a segurando pelos ombros — Kyara! Está me ouvindo?!
Mas ela não respondeu, sentia como se fogo corresse em suas veias.
A mulher era a mesma que assombrava seus sonhos, que tantas vezes já havia aparecido. A mulher com cabelos de fogo e olhos de vidro, que tentava falar algo muito importante.
Mas Kyara não falava a língua do fogo. Ainda.
Olá, Herdeiros, tudo bem? O quê acharam desse primeiro capítulo?
* Jevir = Obrigada.
Eu decidi apresentar o Cast de acordo os personagens forem aparecendo na história, assim fica mais fácil para lembrarem deles. ♡
Kylie Bunbury como Kyara:
Timothée Chalamet como Welt:
Rupert Grint como Thomas:
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