Feliz Ano Novo de novo. E de novo...E de novo...
Terra.
Ninguém diria que aquele globo flutuando ali embaixo, parecendo um mar sereno de nuvens e luzes, tinha 4,5 bilhões de anos de reviravoltas, catástrofes e extinções em massa.
É estranho olhar o planeta de cima e não sentir a energia de caos e correria com a proximidade do fim do ano. Mal me lembro de como era.
Minha sobrinha, Ella, era apenas um bebê quando a vi pela última vez, agarrada à mãe como um macaquinho cheio de laços. Dentro de alguns dias, ela completaria dois anos.
"Uau. Dois anos? Deus, como o tempo passa! ", você deve estar pensando. É... É o que eu diria se ainda estivesse na Terra, na ceia de Ano Novo com a família, enquanto comia algumas batatas e um belo pedaço de torta de carne de Auntie Belle. Ah... quando fecho os olhos e lembro da suculência e da maciez da comida, minha boca enche de água. Mas faço um esforço para engolir a saliva e a saudade.
Conformo-me em dar uma mordida sem graça na barra de cereais ainda mais sem graça que tenho na mão enquanto olho pela janela redonda, fitando o globo azul e o infinito escuro além dele. Os cereais parecem areia na minha boca, e tenho vontade de largar aquela porcaria bem ali, no ar, dane-se! Mas aí me lembro de que da última vez que fiz isso, num momento de revolta, a barrinha saiu voando até alguém encontrá-la em algum lugar obscuro do módulo canadense, batendo no ombro de um dos pesquisadores. Um tanto constrangedor, eu diria. Isso aconteceu alguns dias atrás.
Quer dizer... alguns dias atrás meus, não seus, se é que você me entende.
Não?
*suspiro cansado*
Eu sou um dos afortunados astronautas à bordo da ISS, a Estação Espacial Internacional, e ela dá uma volta na Terra a cada uma hora e meia. Isso quer dizer que durante um dia seu, enquanto você vê o Sol nascer e se pôr uma única vez... bem... eu vi isso acontecer dezesseis vezes daqui do espaço.
Dezesseis pôres e nasceres do Sol em vinte e quatro horas suas. Deus... é enlouquecedor.
No começo, quando você chega na estação, ah! Tudo é tão surreal e empolgante! A Terra é a visão mais linda que você já teve em sua vida. E a baixa gravidade? É a sensação mais indescritível de todas, é como magia, tudo voando em torno de você, quase nenhum esforço para nada, nada pesa... Eu poderia até fazer uma metáfora com "livrar-se do peso da vida diária e manda-lo todo para o espaço".
Bem, todo novato se sente assim, eu acho. Mas depois de 10 meses terrestres enterrado (enterrado, rá, essa foi boa) neste lugar, vendo os dias passarem sem realmente terem passado, enquanto você vive para ser um experimento humano nessas condições, eu diria que o entusiasmo... hã... meio que vai para o espaço também, provavelmente junto com os dejetos do banheiro quando você precisa fazer cocô em baixa gravidade pela primeira vez.
Acontece que esses dejetos vão ser reciclados e renovados.
O seu entusiasmo não.
Estamos sobrevoando a Europa agora, onde já é noite. Mas eu sempre gosto de pensar que são cinco da tarde na Inglaterra. Em minha mente, minha irmã está tentando preparar o chá da tarde de uma muito exigente Ella, e Autie Belle está aprendendo alguma receita nova na tv para a ceia da Véspera de Ano Novo que se aproxima.
E de repente... lá se foi. Minha fantasia acabou junto com o girar do planeta lá embaixo. Mas tudo bem. Em alguns minutos será "hora do chá" em algum outro lugar de novo.
Dou um suspiro melancólico enquanto abro o canudo do meu suco e dou uma leve espremida no saquinho prateado. Leio a etiqueta meio sem vontade, enquanto uma bolha amarelada se forma na ponta. "Suco de Abacaxi". Certo. É. Tem gosto de abacaxi, pelo menos. Uma vez tomei um suco de acerola que tinha gosto de azeitonas pretas e tapete velho. Tenho receio de sucos desde então.
Logo acima de mim, vejo uma série de meias de Natal penduradas no teto (ou em qualquer lugar que você deseje que seja o teto, não faz diferença). Alguém achou que seria uma boa ideia trazer aquilo para cá. Inclusive, na Véspera de Natal, algum engraçadinho até colocou doces dentro das meias, devidamente fechadas, é claro. Ninguém gostaria de encontrar balas flutuando entre os cabos e pirulitos melecando os equipamentos dos laboratórios.
(Esqueça o que eu disse. Alguns gostariam sim.)
Mas eu não consigo parar de me perguntar... por quê.
Por que se importar com isso aqui? Será que o lugar de onde viemos faz alguma diferença no espaço? Países, culturas... isso importa? Estamos aqui para desbravar o desconhecido! Então, para que se agarrar tanto a estes velhos costumes? Para que se prender às datas da Terra fora da Terra?
16 dias em um dia! 365 dias em 23 dias! Um ano na Terra, 23 dias aqui no espaço e...
— Ah!! Robinson! Aí está você outra vez, remoendo a vida no espaço. Cuidado, hein? Daqui a pouco, a depressão vai te puxar pra baixo! HÁ HÁ HÁ! Sacou? Puxar pra baixo?
Ah, droga. É Nickolai Petrov, o tripulante russo que chegou há pouco mais de três meses e cujo entusiasmo ainda não virou um pacotinho de merda para ser reciclado.
— Petrov, agora não, me deixe em pa...
— De jeito nenhum! Agora é hora do chá! Olhe só o horário lá fora! – e ele aponta animado para a janela – Um bom inglês não pode perder a hora do chá, não é mesmo? Mas se apresse! Nós temos apenas alguns minutos antes que ele termine!
Ele gargalha outra vez, e eu sinto uma veia saltando em minha testa e meu rosto ficando vermelho. É o efeito Camarão Raivoso, como chamava minha irmã.
Eu gostaria de dizer que Petrov me incomodava dia e noite, mas isso seria quase um pleonasmo. Eu poderia até dizer que o inferno ficava acima da Terra, e não embaixo. Porque, sim, ele infernizava todo mundo querendo comemorar todas as grandes celebrações de cada país de origem da tripulação a-cada-vinte-e-três-dias-terrestres!
Eu perdi as contas de quantas vezes fui lembrado da Páscoa e do quatro de julho, e também do Saint Patrick's e Dia de Los Muertos nos últimos três meses. Houve uma vez em que ele promoveu um correio elegante entre os membros da estação em todos os dias dos namorados comemorados em datas diferentes, e até mesmo quis comemorar a chegada da primavera japonesa!
PRIMAVERA!
NO ESPAÇO!
E o pior: o resto da tripulação começava a ser contaminada por ele! Watanabe, da equipe japonesa, um cara sério, compenetrado, de repente era visto fazendo rituais estranhos de tempos em tempos e comemorando alguma coisa que só ele entendia com algo que ele fingia ser saquê. (Sério, ele parecia acreditar mesmo que estava ficando bêbado).
Aliás, nada me irrita mais naquela bagunça que Petrov promovia do que suas comemorações efusivas de Ano Novo.
Certa vez, ele chegou ao ponto de agitar e espirrar uma bolsa inteira de suco no ar, com toda a tripulação reunida na cozinha gritando e batendo palmas, desejando uns aos outros um ano próspero e cheio de realizações (???).
Eu confesso que fiquei completamente estático, embasbacado, quase em pânico, olhando aquela bolha laranjada enorme flutuando bem na minha frente, enquanto os outros se divertiam tentando bebê-la antes que ela atingisse a algum componente eletrônico e... sei lá... causasse uma coisinha à toa, tipo um curto circuito que condenasse todos lá dentro à morte e ainda fizesse com que alguns bilhões de dólares se tornasse mero lixo espacial. Nada demais.
Dá pra imaginar isso?
Décadas atrás, a notícia que corria os jornais era: "Gemini 3: destruída por incêndio causado por migalhas de pão de sanduíche de astronauta". Então você pensa "puxa, que coisa terrível, mas acho que agora eles aprenderam a lição, não é?"
Aí, quando você menos espera, vem a notícia: "ISS: destruída por comemoração mensal de Ano Novo com suco de laranja na fiação".
Depois daquilo, comecei a evitar Petrov. Para mim, ele era um agente do caos na estação! Juro que me passou pela cabeça pedir socorro à Houston, igual a uma criança que chora no portão da escola chamando pela mãe e pedindo para ir para casa.
Eu já estava uma pilha de nervos quando Petrov toca no meu ombro bem na hora do Camarão Raivoso tomando conta de mim.
— NÃO ME ENCOSTA, NICKOLAI!
— Uau, calma lá, amigo, eu só...
— CALMA NADA! E NÃO SOU SEU AMIGO! – fecho meus punhos e me viro no ar, bufando – Eu não aguento mais, EU NÃO AGUENTO MAIS AS SUAS COMEMORAÇÕES! POR DEUS, MINHA VONTADE É DE MANDAR VOCÊ PARA LONGE DAQUI JUNTO COM O LIXO DA ESTAÇÃO!
A minha voz exaltada começa a chamar a atenção dos outros tripulantes e, de repente, há uma pequena reunião acontecendo em torno de nós.
— Robinson, o que é isso? Olha, acho que você só está um pouco...
— Não estou nada! Chega de Dia do Trabalho e de Finados! De Ação de Graças e de comemorar o Ano Novo! AQUI NÃO É A TERRA, POR TUDO QUE É MAIS SAGRADO! NÃO EXISTE "ANO NOVO AQUI"!
Um silêncio sepulcral tomou conta do módulo. A única coisa audível era a minha respiração entrecortada. Por um longo minuto (ou algumas horas aí da Terra) parece que nem os cabelos compridos e rebeldes da canadense Campbell se atrevem a se mexer.
— Mas... e se eu disser que... pelas minhas contas... É ANO BISSEXTO PESSOAL?? – Petrov de repente fala, e uma onda de agitação e alegria percorre os outros astronautas. – FESTA EM DOBRO!!
Só que em mim, percorre só raiva mesmo.
— Petrov... EU VOU... ACABAR... COM VOCÊ!
Tomo um impulso em um cabo com enormes letras reluzentes com a frase "FELIZ NATAL" e me atiro com os dois pés contra aquela cara sorridente e odiosa de Petrov.
Campbell reage rápido o suficiente e puxa o homem antes que eu o acerte bem no meio daquele nariz enorme e vermelho. Ele sai batendo os braços feito um sapo, se agarrando a qualquer coisa que puesse alcançar para ganhar impulso.
Eu faço o mesmo e aproveito para atirar potes plásticos, cabos soltos, parafusos e ferramentas que encontrei no caminho. Ele é esperto, aquele desgraçado, voando em espiral e desviando de tudo em movimentos dignos de Matrix. Enquanto isso, os outros tripulantes vêm em nosso encalço, tentando apaziguar os ânimos e salvar as instalações.
No exato momento em que consigo agarrá-lo...
...um bip ecoa por toda a estação, e sabemos se tratar de uma mensagem do centro de comando na Terra. Todo mundo paralisa no ar, literalmente.
— Houston para ISS! De acordo com os seus relógios sintonizados com Greenwich, faltam apenas 10 segundos para o Ano Novo! Peguem seus sucos especiais na despensa (cuidado para não confundir o suco de acerola com a pasta de azeitona) e vamos fazer a contagem regressiva, pessoal! 10, 9, 8...
E a tripulação vem a baixo (quer dizer, depende). Fico tão confuso que me esqueço completamente de Petrov.
...7, 6, 5...
E tinha me esquecido de que era MESMO Ano Novo na Terra!
...4, 3, 2...
— E não se esqueçam, pessoal! — a voz maligna de Petrov ecoa em algum lugar — É ANO BISSEXTO! COMEMORAÇÃO EM DOBRO!
***
— Auntie Belle, pode me ajuda com Ella? Só queria terminar de ler uma notícia aqui no jornal. Pode ter algo a ver com John.
— Claro, querida! O que diz aí?
— É sobre um tal de Nickolai Petrov que ganhou uma espécie de prêmio por seus estudos da psicologia humana durante longos períodos no espaço.
— Oh! Parece complexo!
— Sim! Aqui diz que, infelizmente, um dos colegas dele, não citaram nomes, vai ter que voltar às pressas para a Terra porque não aguentou a pressão e surtou, coitado. Mas que graças a ele, Petrov pode concluir estudos decisivos e importantes. Ele é um herói da ciência!
— Ah querida, que notícia ótima! Quer mais um pedaço de bolo de carne, meu bem?
— Claro, obrigada tia. Só espero que Johnny esteja bem.
— Ah, ele deve estar se divertindo muito com os amiguinhos dele! Imagina a farra que não foi a virada do ano no espaço, hein?
***
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