Capítulo 1
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Ano de 1627
O sol refletiu na bandeja de prata e quase cegou Eulália. Havia dias que toda a casa e tudo nela estavam sendo limpos completamente - até mesmo as peças e utensílios usados uma única vez - sem motivos aparentes, pelo menos para a jovem. Em sua posição como escrava, fazer algo não significava ter que saber o motivo. E isso irritava-a mais ainda por não ter quem xingar quando estivesse exaurida.
Eulália esfregou as marcas de água secas na taça de cristal que viera direto da Europa. O capitão já visitara algumas vezes o outro continente e trazia especiarias para sua esposa sempre que podia, motivo pelo qual a garota, às vezes, gostava de ter sido comprada por ele. Desejos sussurrantes dentro dela transpareciam a vontade de "descobrir" as novas terras. Queria ver com seus próprios olhos o que o mundo reservava, pois já estava cansada do seu ideal imaginário, afinal, nunca conhecera nada além do Forte da Barra¹ e da fazenda do capitão.
A garota não entendia porque os negros não podiam visitar o "outro mundo". Sua cabeça confusa era incapaz de achar uma resposta plausível e por vezes, quando ouvia a palavra liberdade achava que era mais uma lenda dos quilombolas. Mas estes, que diziam se reunir em uma comunidade de resistência contra a dominação branca, exercia a exploração sobre sua própria etnia, invalidando assim o ideal que defendiam.
O fato é que a única "autonomia" que Eulália tinha era escolher como deveria limpar o chão da cozinha - se com esfregão ou vassoura de palha. Nem mesmo saber suas origens lhe era permitido, pois sempre que a garota interrogava sua a madrinha que lhe criara, ou por vezes, ao Capitão, todos mantinham a boca fechada e se recusavam a dar informações que lhe eram de direito.
Jamais ouvira histórias de seus antepassados, ela nem sabia quem era seu pai, contaram-lhe somente que sua mãe desapareceu no mar após uma semana que deu à luz. Nunca souberem lhe explicar a procedência dos fatos. Uns diziam que ela fugia dos capitães do mato, capangas do senhorio, outros diziam que um jagunço a matou e jogou seu corpo nas águas para esconder o crime. Eulália achava tais teorias infundadas, pois duvidava que sua mãe fosse o tipo de fujona e militante da causa quilombola. Tampouco poderia ser alvo de um assassino da época, afinal, porque gastar réis como o sumiço de uma escrava que não valia nada? Se ela soubesse algo além da fatídica morte dela, poderia elaborar uma justificativa melhor.
Em virtude da ausência dos progenitores, a criação de Eulália foi confiada a uma madrinha, muito amiga de sua mãe. Era Luanda, a governanta da casa e primeira escrava da fazenda. Veio da região do Reino do Daomé, ainda com seus nove anos, trazida a força por um colono, no comércio transatlântico de pessoas. A princípio, o capitão lhe mandou para o engenho de açúcar, mas teve "piedade" da pobre escravinha e lhe trouxe para o casarão. Fez-lhe comandante da cozinha e posteriormente, de todos os outros.
Ainda que o capitão tivesse mais respeito por Luanda, entre todos os outros, era pouco para ela. Desejava constantemente sua antiga vida de volta. Em todos os seus anos como escrava, foi açoitada uma única vez por motivos que não vos cabe revelar. Ser chicoteada e humilhada gerou o estopim necessário para que ela defendesse a liberdade e sempre que podia, cochichava com os outros sobre isso, até mesmo com a enteada Eulália. Esta, por sua vez, deixava-se ser afetada pelos ideais da madrinha às vezes. Isto é, ela poderia estar carregando barris de pólvora ou limpando mosquetes², mas estava ali, limpando todo o inventário do armário. E esse era o motivo pelo qual Eulália odiava ter sido comprada. Estava limitada a uma vida de servidão e ausência de livre arbítrio. Se pudesse escolher, seria inteira e completamente dedicada ao Forte da Barra de forma que se tornaria parte dele, como uma pequena célula em um grande organismo, não como um uma máquina funcional.
- Droga de vidro que não limpa! - Choramingou Eulália baixinho.
De todo modo, essa era sua vida. E, naquele dia, os ideais de sua madrinha foram tão desejados por ela, ao som do seu apelido sendo chamado da cozinha.
Eulália apressou-se em dizer que tinha terminado a limpeza dos utensílios, consciente de que sempre deveria responder as perguntas silenciosas e subjetivas da madrinha. Luanda era assim, evasiva e inexpressiva. Eulália se perguntava todos os dias se o sofrimento lhe traria os mesmos moldes. Será que depois de ser chicoteada pela primeira vez, ela permanecerá a mesma?
Sentou-se no chão e começou a descascar os legumes do almoço, enquanto a madrinha esquentava a barriga ao pé do fogão à lenha. Ocorreu a garota o lapso de memória do dia em que foi buscar itens na quitanda. A lista amaçada e desbotada na mão dela lhe perturbava todo o caminho, pois só entendia "batatas" da quantidade considerável de palavras. Os filhos do capitão tinham alguém que os ensinasse a ler. Será se, o capitão sendo tão bom, deixaria que ela participasse dessas aulas também?
- Eu gostaria de aprender a ler e escrever. - Afirmou Eulália para ninguém em específico.
- Hum, mas não lhe é insciente o que acontece com negros inteligentes. - Ditas palavras sombrias de Luanda. Era de se admirar tal pessimismo da aspirante à revolucionária, mas é que a vida de Eulália era mais importante que qualquer liberdade. Sabia das consequências de um negro inteligente e do jeito que a enteada não sabia ficar calada, arrumaria logo uma confusão. Luanda temia.
A ouvinte, por sua vez, remexeu-se no seu lugar, inquieta. Sabia que era verdade, presenciara várias vezes episódios que lhe desgastava a sanidade. Para os colonos, um negro saber ler era uma ameaça. Se ele incitasse os outros ao pensamento, era considerado um perigo que urgia proteção. As punições não ficavam nos açoites.
E ainda que soubesse disso, a vontade de ser letrada sequer lhe abandonava, porquanto desejava escrever sobre o Forte da Barra, desenhar suas estruturas e descrever o que acontecia todos os dias dentro delas. Vislumbrava quase todas as noites sentar-se na mesa do capitão e preencher inventários. Ninguém se preocupava em documentar e Eulália tinha a péssima impressão de que os anos passariam e ele seria esquecido completamente. O amor por aquele lugar, no coração da menina, era tão grande que mal lhe cabia no peito, vazava para a cabeça, para os sonhos, para suas ambições. Não importava quantas vezes lhe mandassem reconhecer seu lugar, ela sabia que seu imo almejava o Forte.
A madrinha dizia que chegaria um dia em que todos poderiam escolher o que quiser fazer e Eulália orava sempre que não era vencida pelo sono para que fosse logo, que ainda em sua vida pudesse ocorrer. Precisava estar lá para garantir a perpetuação daquela construção majestosa. Sua maior vontade era que o capitão também almejasse isso. Porém, pelo contrário, apesar do seu medo de sofrer um ataque eminente, ele não se preocupava em fortificar os muros, nem corrigir as falhas que deixavam desprotegido o Forte. Eulália compreendia que se houvesse uma outra invasão ou uma guerrilha, perderia o que mais amava na sua vida.
- Madrinha... - Chamou Eulália incapaz de continuar guardar os pensamentos para si - Não acha que alguém deveria escrever sobre o Forte?
- Porque achas isso, menina?
A resposta foi ponderada por ela na tentativa de organizar os pensamentos.
- Penso que ele não resistirá sequer um século em pé. O tempo o levará, como o mar leva a areia.
- Se preocupas tanto com o tempo, Eulália. Não entendo esse fascínio todo.
- Nem eu.
O silêncio reinou na cozinha. Luanda pensou nas inúmeras coisas que ainda precisava fazer antes do fim do dia. Eulália, no tempo e em como queria dominá-lo, ou melhor, conhecê-lo. E como desafio a esse pensamento, o capitão entrou na cozinha antes do esperado com um sorriso na ponta dos lábios.
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Ano de 2008
O sol também brilhava para Laura, no entanto, refletia nas águas do mar de São Luís, a Ilha do Amor, como assim lhe chamavam. A jovem secou o suor da testa e molhou a garganta naquela tarde quente de sábado. Os clientes multiplicavam-se como colônias de bactérias, dificultando o seu trabalho de meio período em um dos quiosques da praia. Havia poucos dias que o conseguira, mas foi o suficiente para descobrir que a capital era visitada por muitas pessoas, bem mais do que ela imaginava. Boa parte eram turistas, outros, navegantes que aportaram dos navios que nunca deixavam de beliscar a costa maranhense. A guria precisou conversar com estrangeiros uma ou duas vezes, mas nada que seu inglês mediano não desse conta.
Laura trabalhava em mais dois empregos e só aceitara aquele por causa da avó, Amélia, que teve de se ausentar dessa vida laboral. A idosa já não aguentava mais limpar chãos e servir mesas. Ainda tentou dedicar-se ao artesanato, mas sua saúde debilitada a obrigou ficar em casa. Laura precisava custear as despesas das duas, que dependiam uma da outra. Agora, ela estava sozinha.
Enquanto limpava o balcão, ouviu longe a conversa de um casal inglês vestidos demais para o lugar que estavam. Pensou que deveriam estar apenas conhecendo, sem intenções de banhar no mar, ou tivessem uma pele tão sensível que cinco minutos no sol fariam a epiderme deles se desmanchar. Laura riu consigo mesma, agradecendo a pele negra que tinha. Gostava dos nuances brasileiros, das várias etnias e características que toda a nossa gente tem. Mas quando via estrangeiros, quase sempre no mesmo "padrão", tentava imaginar como era o Brasil, antes de todos os colonizadores.
Atrás deles, o Forte da Barra cortava o céu azul em toda sua preponderância. Um ar de história e tradição exalava dele e a moça gostava daquilo. Não sabia explicar a estranha sensação de familiaridade que sentia quando o visitava. Chegou muitas vezes a questionar sua avó se, quando criança, visitara algum monumento que tivesse a mesma função que aquele. Amélia dizia que elas nunca saíram de São Luís e que tudo isso era loucura da neta.
- Alguém, por favor?
Um cliente chamava no caixa, que sempre estava vazio. Laura recebeu o dinheiro e guardou. Depois, voltou a observar o Forte e imagina-lo como seria se estivesse cumprindo suas verdadeiras funções ao invés de ter se tornado um museu. "Mais pólvora!", "Apontar... Atirar!" Fantasiou uma cena vaga e cinematográfica do dia a dia dos soldados. De repente, sentiu uma sensação estranha, como se não fosse uma ilusão, mas sim uma lembrança. Mas... lembrança de quê?
- Você está bem? - Uma funcionária perguntou.
- Estou, foi só um déjà vu. - Laura respondeu, mostrando seu belo sorrio alinhado.
Aquela não foi a primeira vez. Na verdade, para Laura já era normal essa conexão com o Forte. E se os pais dela tiverem alguma ligação com isso? Quero dizer, Laura não se lembrava deles, nem de suas vozes ou de seus rostos, pois ainda muito jovens partiram em uma viagem de férias ao Equador e nunca mais voltaram. Isso não se pode ser um bem, por assim dizer, pois ela se tivesse ido com seus pais, quem sabe o que teria lhe ocorrido, mas ter ficado com sua avó lhe deu algo muito pior: a incerteza. Não saber o que aconteceu com eles lhe gastava as últimas cédulas de sanidade.
Eram poucas as lembranças que tinha de seus pais, uma ou duas no máximo, já que ela era uma pequenina criança quando desapareceram. Entretanto, a sensação de familiaridade com o Forte existia, gerando, assim, a possibilidade de em algum momento de sua infância, tê-lo visitado junto com eles. Talvez esses ataques de memória repentina, fossem seu subconsciente gritando para que ela se lembrasse de uma coisa importante, mas esquecida.
- De quê? - Perguntou de novo a funcionária.
- Não sei... - Laura respondeu, evasiva.
Divagou até ter todas as mesas para atender de uma única vez antes de terminar o expediente. Logo após, esqueceu que tinha de encontrar a avó e bisbilhotou, novamente, o museu dedicado a história e o passado do Forte.
| G L O S S Á R I O |
¹ O Forte de Santo Antônio da Barra localiza-se na ponta de João Dias, atual Ponta da Areia, dominando a barra do canal de acesso ao porto de Itaqui, no litoral de São Luís, estado do Maranhão. A estrutura primitiva desta fortificação é atribuída aos franceses, durante os combates de 1614, sendo lícito presumir que, de campanha, tenha sido erguida em faxina e terra. [Fonte: Wikipédia]
² O mosquete é uma das primeiras usadas pela entre os séculos XVI e XVIII. Trata-se de uma evolução do "arcabuz", semelhante a uma espingarda, porém muito mais pesada, com o cano de até 1,5metros sobre a culatra integrada com a guarda-mão de madeira, coronha grande e geralmente munido de baioneta. [Fonte: Wikipédia]
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Finalmente saiu o primeiro capítulo aêeee! (barulho de confete estourando)
Eu sei que eu demorei, sorry rsrs Mas a pedidos de alguns leitores meus, me apressei em concluir a revisão pelo menos do primeiro capítulo. Então espero que tenham gostado! Não esqueça de deixar seu votinho e comentar!
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