03. Inferno I
Glossário:
*Hyung: irmão mais velho (usado de um rapaz novo p/ um rapaz mais velho, sejam eles irmãos de sangue ou pessoas próximas);
*Ommŏni: mãe.
(Park Jimin)
- Você vai ficar bem? - Hye-su perguntou segurando minha mão.
Estávamos a 10 minutos parados em frente a nossa antiga escola em Busan, era possível ver os alunos praticando Educação Física no campo ao lado do prédio principal.
- Vou resolver o que preciso com Tae-soo e depois te encontro aqui. - Encarei seu rosto cansado, ela estava tão incomodada de estar aqui quanto eu. - Você encontra sua tia e eu o meu irmão, depois voltamos para o aeroporto e voamos para Seul. - Resumi nossos próximos passos; era como recitar um protocolo de fuga, um que fazíamos em todas as nossas visitas.
Ficar apenas o necessário e ir embora mais rápido possível, era o nosso plano, sempre fora nos últimos seis anos.
- Tudo bem, em três horas nos encontramos naquele banco - apontou com o dedo para o banco de madeira do parquinho que ficava na rua oposta a escola -, se for demorar, me avise. - Soltou minha mão e se virou para ir, sem despedidas, sem sorriso no rosto. Estar em Busan, na nossa antiga vila, era pesado demais para ela.
Segurei sua mão novamente e a puxei suavemente para mim. Corpos próximos, quase colados; uma visão incomum por ali, ainda mais por ser em frente a uma escola. Demonstrações de afetos eram olhadas como incômodas pela maior parte dos moradores da vila, inapropriadas, seria a palavra certa. Não me importei.
- Quando chegar na sua tia, mande um "oi" por mim. - Rocei minha mão em sua bochecha e toquei seu cabelhos castanhos que caíam em frente ao busto. Eu precisava de contato físico, era quase uma necessidade, um forma prática de me acalmar, me preparar para as horas seguintes. - Diga que vou visitá-la em breve.
- Melhor não - sua mão tocou meu pescoço; o toque era também sua forma de achar calma -, não quero fazer promessas que não vamos cumprir. Vou convidá-la para passar um fim de semana comigo, você pode aparecer casualmente e lhe dizer um "oi". - Concordei com a cabeça, ela estava certa, não deveria fazer promessas à senhora Han, ela era uma pessoa boa e sensível, criaria muitas expectativas.
- Vai falar que viemos juntos?
- Vou dizer que vim a trabalho e você me deu algumas horas livres para poder vê-la, assim não ficará tão desapontada. - Seus olhos encararam os meus e desceram para os lábios. - Preciso ir. - Ela estava quieta, um pouco mais distante que o normal; não era apenas Busan que a incomodava; naquele momento, eu também a incomodava.
Passei minha mão por trás do seu pescoço e, de forma lenta, à beijei. Um beijo simples, aconchegante, dizendo que o que precisávamos no momento era aquilo e nada mais. Ela retribuiu, mesmo distante.
- Ainda está brava? - perguntei, sabendo a resposta.
- Estou cansada, Jimin. Tudo fica mais intenso quando estou aqui. - Respirou forte. - Minha mente está uma bagunça e o aniversário de morte da minha mãe está chegando, eu só... deixa, não quero falar sobre isso agora. Você tem sua própria batalha para travar, não vamos nos sobrecarregar, ok?
O aniversário de morte da mãe, um período sensível para ela. Tudo ficava dez vezes mais pesado em sua mente quando a semana se aproximava. Eu era egoísta de por tê-la trazido comigo, eu sabia, mas acho que não conseguiria vir sem ela.
Não quis pensar muito em como eu estava sendo um imbecil, não agora, talvez depois.
- Sinto muito. - Foi a única coisa que consegui dizer; era sincero.
- Tudo bem. Sei que odeia aqui tanto quanto eu, até mais. - ela me abraçou, enterrando o rosto no meu peito - Você me acompanha quando eu preciso e eu te acompanho quando você precisa. É um acordo implícito, mas ainda assim um acordo. - murmurou, a voz sendo abafada pela minha camiseta.
- Vou resolver tudo rápido, prometo. - Beijei o topo da sua cabeça e nos separamos, lados opostos, cada um seguia rumo sua própria batalha pessoal, seu próprio inferno na terra.
***
Caminhei durante vinte minutos pela estrada montanhosa, a casa da minha família ficava fora da vila, distante da maioria das casas que existiam por perto. Era um trajeto tranquilo durante a maior parte do ano, mas quando o inverno chegava, era especialmente difícil caminhar por ali à pé.
Tae-soo costumava me levar de carro para escola nos dias de neve; pelo resto do ano, eu ia sozinho, caminhando. Eu gostava de ir com meu irmão, mas preferia a solidão das montanhas, era um dos momentos que eu mais ansiava durante os dias.
Avistei o portão de ferro adornado por uma extensa cerca viva de cada lado, uma visão impactante para um visitante desavisado. Ali - onde uma casa de dois pisos, feita de madeira estava - era um lugar tão distante que parecia ter sido esquecido pelo mundo.
Esquecido. Às vezes eu me sentia assim, acho que minha mãe também, tenho certeza que essa era a intenção do meu pai nos confinando naquela perfeita "casa dos sonhos". Um sonho que se tornou pesadelo.
Afastei o portão que estava entreaberto e entrei. O jardim continuava igual, apenas um pouco mais amarelado devido ao outono, e a mesa branca de metal continuava adornando o centro em meio as flores - que agora não estavam lá, mas floresciam na maior parte do ano.
Beleza e elegância, essa era a ideia que a propriedade transmitia.
Tudo estava aberto, desde o portão de ferro que eu havia passado, as janelas da frente e a porta de madeira entalhada da casa - algo incomum na minha adolescência.
Passei pela soleira da porta, não demorou muito para avistar meu irmão mais velho sentado na poltrona em frente a lareira. Ele digitava rapidamente em seu notebook.
- Cheguei - disse sem animo algum na voz. Tae-soo se virou instantaneamente para mim e se levantou, deixou o aparelho em cima da poltrona e veio me cumprimentar.
- Jimin! - O sorriso despontou dos lábios e me abraçou; um gesto de genuína saudade. - Estava te esperando mais tarde, pensei que viria após o trabalho. - Se afastou e me conduziu ao grande sofá marrom, ao lado de onde ele sentava a segundos atrás. - Como você está?
- Cansado - me resignei a falar e fui direto ao assunto principal. - Hyung*, você me disse que era urgente, que precisava estar aqui o mais rápido possível. O que aconteceu? - Tae-soo se remexeu no sofá e me lançou um olhar preocupado, parecia que só me olhava assim nos últimos tempos.
Ele se levantou, contornou a poltrona e entrou no escritório que ficava na porta atrás dela. Quando saiu, com alguns papéis em mãos, percebi o quanto Tae-soo aparentava estar fatigado, mais velho.
Nossa diferença de idade era de apenas cinco anos, porém ele parecia ter envelhecido mais rápido, não pela aparência diretamente dizendo - ele continuava com seu cabelos tão pretos quanto antes e a pele com poucos sinais de expressão -, mas o semblante... os olhos castanho claros tinham perdido a cor, o brilho estava apagado.
Ele me entregou as folhas, mas permaneceu de pé, comecei a ler prontamente.
- Chegou ontem pela manhã. É um pedido de retomada de bens, ele quer que devolvamos a casa e também está pedindo de volta o controle das Ações que estão nome da mãe. Alega que ela está insana e que nós somos irresponsáveis, que não cuidamos dela.
Passei a mão pelos cabelos com raiva; se o que eu tinha lido e o que Tae-soo disse eram de fato verdade, não uma pegadinha bem sem graça, aquele desgraçado tinha ido longe, muito longe.
- Eu sabia que ele estava parado demais, tempo demais sem atormentar nossas vidas. - Me levantei e comecei a andar de um lado para o outro, senti como se pudesse explodir, havia um tornado de ódio se contorcendo dentro de mim. - Aquele velho desgraçado tem a coragem de mandar um papel nos ameaçando. Tem coragem de nos chamar de irresponsáveis e dizer que a mãe está enlouquecida. Ele que atormentou a vida dela enquanto eram casados, ele que foi negligente, que a largou. - Taquei as folhas raivosamente em cima da mesa de centro.
- Eu sei, eu sei. Mas ficar nervoso não vai ajudar em nada agora Jimin. - Tae-soo parou na minha frente e segurou meus ombros. - Já falei com meu advogado, ele está analisando o caso e depois vai me dar um panorama geral do que podemos fazer. - Me desvencilhei dele e fui em direção a cozinha, precisava tomar alguma coisa para me acalmar; água, álcool, qualquer coisa. - Não te chamei aqui para te falar de mais uma das jogadas do nosso pai, já estou lidando com isso. - Ele me seguiu.
- Então me chamou para que? - Peguei um copo de água da torneira e tomei de uma vez; minha boca estava seca, eu estava ofegante.
- É a mãe, ela não está bem. - Fiquei ao lado da pia, dedos tamborilando na superfície de inox. - Tem uma semana que ela não sai do quarto, se comeu um pedaço de fruta, foi muito. - Seu olhar preocupado se intensificou.
Tae-soo era bastante calmo, mesmo em situações complicados como essa, ele não externalizava a raiva, mas a guardava no fundo de si e a única coisa que restava era preocupação. Um olhar consternado e abatido.
- Ela está lá em cima? - Mesmo que estivesse nervoso, obriguei meus sentimentos a descerem e se enterrarem bem no fundo do estômago junto com mais um copo de água.
- Sim. Te chamei para ver se você conseguia convencê-la a sair um pouco, tomar um ar e comer alguma coisa, qualquer coisa.
- Não sei se ela vai me escutar hyung, mas posso tentar.
- Não vá agora. - Colocou o braço na minha frente, me impedindo de passar. - Você está nervoso, se for agora até ela, vai assustá-la. Você sabe como as coisas são.
Eu sabia, entendia bem - demais - o que ele queria falar.
Não podia ficar nervoso perto da minha mãe, a não ser que eu quisesse que um botão de emergência soasse na mente dela e a fizesse ficar mais retraída ainda. Amaldiçoei mentalmente meu pai, amaldiçoei o dia que ele a conheceu, o dia que se casaram. Amaldiçoei toda abominável relação que eles tiveram.
Park Man-sik transformou Shin Mi-ran em um zumbi, um projeto de mulher que mal conseguia sobreviver, mal conseguia respirar.
- Tudo bem, - assenti com a cabeça - vou tomar um ar lá fora, quando estiver melhor eu subo.- então, ele retirou o braço; fui direto para o jardim.
***
Minha mãe estava deitada na cama, vestia um pijama desgastado e os cabelos curtos eram um pequeno emaranhado de nós rente ao couro cabeludo. Uma imagem de devastação. Era como se a vida tivesse sido roubada dela e só o corpo, a carcaça da alma, estivesse ali. Estava excessivamente magra e, como era pequena, por alguns segundos, pareceu uma criança.
- Ommŏni*, estou aqui. - Me aproximei dela, agachei ao lado da cama e peguei sua mão; estava fria, assim como seus olhos que me encaravam. - Estava com saudades. - Falei suavemente e beijei sua testa.
- Meu filho - sua voz saiu rouca, baixa, como se estivesse a dias sem pronunciar uma palavra -, meu filho. - Ela sorriu, não um sorriso genuíno, mas uma tentativa. - O que faz aqui?
- Vim ver Shin Mi-ran, a mulher mais linda de Busan. - Ela envolveu minha mão com afeto.
- Acho que veio ver a Shin Mi-ran errada. Talvez devesse procurar na vila, acho que ela está lá. - Escondi o golpe que aquelas palavras me deram, meu pai havia destruído ela de dentro para fora.
- Nada disso, vim ver a correta, esta que está bem na minha frente é a mulher mais linda.
- Você não muda mesmo, sempre conquistador.
- Só tento conquistar as mulhere mais lindas. Será que está funcionando? - Ela se remexeu na cama, a ajudei ficar sentada.
- Se irmão te ligou, não foi? - Passou as mãos no cabelo, um tentativa de arrumar os fios. - Ele é exagerado, fica te preocupando com coisas sem importância.
- Você não é sem importância, ommŏni, e comer é uma coisa essencial a vida. Já conversamos sobre isso.
- Eu não sinto fome. - Fixou o olhar em algum ponto invisível entre mim e o chão de madeira.
- Mesmo que não sinta, precisa comer. Você fica linda quando come. - Tentei convencê-la com elogios, sua autoestima estava quase inexistente, era doloroso vê-la definhar pouco a pouco.
- Não há mais nada de lindo em mim Jimin, tenho 50 anos, não tenho mais nada a oferecer.
- Não diga isso ommŏni, não é verdade. - a repreendi, mas não com grosseria; ela ficou calada. - Vamos andar um pouco lá fora. Você pode escolher entre ir até a vila, no carro do hyung, ou andar pelo jardim. Não aceito recusas.- Fiquei de pé e esperei a resposta; ela olhou demoradamente para o chão, tanto que pensei que ela estava encontrando uma desculpa para me dispensar. Acho que não encontrou.
- Jardim. - Disse apenas isso e se levantou vagarosamente. - Vou tomar um banho, desço daqui a pouco - e se foi em direção ao banheiro do quarto.
Respirei fundo quando ela se fechou no banheiro, uma pequena batalha vencida. Esperei até escutar o barulho do chuveiro e sai para esperá-la perto das escadas, encostado no corrimão.
Peguei meu celular e vi as horas, era início da tarde, eu não tinha almoçado, certamente, minha mãe também não.
Resolvi, assim, ficar mais tempo do que planejava - mesmo que precisasse comprar outras passagens de avião de volta para Seul -; minha mãe estava mal, eu teria que deixar qualquer desconforto de lado.
Estar em Busan era difícil, mas ver minha mãe se afundando na sua própria escuridão era muito pior.
Mandei mensagem para Hye-su informando que demoraria e avisando que ligaria assim que estivesse prestes a sair. Ela não visualizou imediatamente e, então, pensei o quanto era ruim para ela estar aqui por mais tempo.
Fechei meus olhos. Este era definitivamente um dia horrível. Minha cabeça latejava.
Imagens da noite anterior novamente tomaram minha mente - já tinha acontecido várias vezes durante o voo, enquanto Hye-su cochilava ao meu lado. Afastei-as o quanto pude de mim, pelo período que foi possível. Porém, um pedaço especial daquela briga me vinha com frequência à cabeça:
"Eu te odeio Park Jimin! Te odeio seu hipócrita egoísta, narcisista do inferno, eu te odeio!"
Ela falou isso em meio a socos descontrolados em meu peito, acredito que nem havia percebido que se debatia contra mim, estava com raiva, transtornada. E de algum jeito, não me senti machucado por aquela atitude, nem pelas palavras. Eu merecia, merecia infinitamente mais.
Massageei minhas têmporas.
Ela estava certa. Eu era mesmo um egoísta, hipócrita, narcisista. Ela estava certa, pois mesmo sabendo que para ela, estar aqui era uma tortura, eu não pensei duas vezes antes de decidir ficar mais.
E, eu também não me repreendi quando meus pensamentos flutuaram por horas - naquele jardim, antes de ver minha minha mãe - até ela, até a sensação que eu me lembrava do seu corpo no meu, do seu beijo. Um calmante para minha alma.
Lee Hye-su era como um calmante, uma droga entorpecente. Lembrar dela, dos sentimentos que ela me despertava, me trazia tranquilidade, me desviava da consciência que era o mundo ruído à minha volta. Mas também doía, machucava a sua ausência.
Como um tolo, deixei minha mente revisitar as recordações novamente; memórias dos sorrisos, das brincadeiras, dos nossos encontros, até das brigas. E então, principalmente das brigas.
Eu era um canalha - um egoísta, hipócrita, narcisista - e eu queria que ela me odiasse, notei isso, como uma verdade já verbalizada, mas nunca aceita por completo.
Queria que ela me odiasse ao ponto de me deixar sem olhar para trás, eu não a merecia, mas... mas também queria que ela me amasse, e ficasse.
Egoísta, hipócrita, narcisista, egoísta, hipócrita, narcisista.
"Eu te odeio Park Jimin! Te odeio seu hipócrita egoísta, narcisista do inferno, eu te odeio!"
Fiz questão de relembrar dessas palavras, dessa frase, várias e várias vezes.
Era minha punição.
Enquanto esperava minha mãe, tentei excluir todas as boas sensações que as memórias de Hye-su me traziam.
Montando com precisão minha própria tortura - uma tortura maior do que estar naquela casa, em Busan. Juntei a imagem desvanecida de minha mãe no quarto, aos flashes da noite anterior.
Egoísta, hipócrita, narcisista, egoísta, hipócrita, narcisista.
"Não há mais nada de lindo em mim Jimin, tenho 50 anos, não tenho mais nada a oferecer."
"Eu te odeio Park Jimin! Te odeio seu hipócrita egoísta, narcisista do inferno, eu te odeio!"
"Eu não sinto fome."
Montei meu inferno pessoal e me vi sendo consumido por dentro, sem poder fazer nada, sem ajuda.
Eu merecia.
***
Olá!!!
Obrigado por lerem "Feito fumaça e nuvens". Espero que estejam gostando da história. Ela não é uma história muito bonita, eu pelo menos não a vejo assim, acho que o principal dela é a intensidade e a contradição, esse era o meu desejo ao escrevê-la. Mas não significa que não terão capítulos mais doces e suaves, não desistam dela ainda kkkk
*Haverá alguns erros de ortografia e pontuação que vou corrigir no futuro.*
Essa é uma fanfic que aborda temas sensíveis, coisas que podem incomodar alguns leitores, então, vou tentar deixar alguns avisos de gatilhos no início dos capítulos, se assim for necessário.
A história é narrada em primeira pessoa, mas não teremos um único narrador, como já perceberam. Porque limitaria a visão e compreensão de vocês .
Eu adoro quando vocês comentam e votam, sinto que meu trabalho está sendo valorizado e me estimula a continuar. Fora que me ajuda a sentir se vocês estão gostando ou não da fic. "Um livro não serve pra nada se não tiver quem o leia."
(Frase clichê, mas super real)
Enfim, só queria deixar alguns recadinhos mesmo (sei que é um recado muito grande kkk), já que não fiz isso nos primeiro capítulos, e agradecer de coração por lerem essa história que é uma sementinha ainda, mas que vai florescer com o tempo.
Muitos beijos de cereja e I purple you ( como nosso Tae sempre fala).
Até a próxima!!!
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