02. Penumbra
Debruçada no sofá da sala, observei um feixe de luz solar recuar pouco a pouco pelo chão do meu apartamento. Era segunda e o sol estava se pondo, contemplei a paisagem em silêncio profundo. Por alguns minutos, enquanto a penumbra se tornava escuridão, eu relaxei.
Aquele estágio intermediário - meio luminoso, meio sombrio -, me fez ficar a vontade dentro de mim.
Se o mundo inteiro vivesse em um eterno pôr-do-sol, se aqueles últimos minutos, antes do mundo ser engolido pela escuridão, perdurassem infindavelmente... acho que poderia ser feliz. Sim, eu poderia ser feliz. Não me sentiria mais sozinha, estaria com meu semelhante, o mundo seria meu igual.
"Quando sombra e luz se mesclam no céu" - esse era um dos poucos momentos em que eu não era uma estranha. Não era estrangeira dentro da minha pele.
Continuei deitada. Queixo apoiado no braço do sofá, pernas esticadas preguiçosamente por toda extensão do móvel, braços sob o peito e ouvidos ignorando o celular que tocava em cima do tapete.
Lancei um olhar para o ponto brilhante no chão, a única fonte de luminosidade no meu apartamento - desconsiderando a luz noturna dos prédios ao redor. Eu sabia quem era e não estava nem um pouco animada para atender.
O toque preencheu a sala por um tempo considerável e então parou. Me remexi e mudei de posição me deitando de lado, fechei os olhos. Estava meio letárgica por conta dos comprimidos que o médico receitou.
Após passar mal no trabalho, Yoon Min-ho me levou às pressas para o hospital na quinta-feira. Não questionei sua atitude exagerada, mesmo que eu soubesse que tinha condições de continuar na aula, fisicamente falando.
Segundo o doutor, meu corpo estava sob uma pressão e estresse muito grandes, por isso o vômito.
- O corpo fala. - Ele explicou. Não o contradisse, mas quis acrescentar no diagnóstico de causas: "revelações inesperadas e enjoativas".
Depois disso, recebi cinco dias de folga e um receituário de relaxantes musculares e calmantes. Aparentemente, o meu corpo gritava que estava a mais de um mês sem dormir direito e com alguns músculos inflamados.
O celular tocou novamente, pela oitava vez no dia. Não me dei ao trabalho de olhar.
A brisa fria, que entrava pela janela, me fez puxar o roupão que vestia para mais próximo do corpo, estávamos no meio do outono.
Eu adorava o outono, gostava das cores das árvores nessa época, da folhas amareladas caídas no chão e do clima que começava a esfriar, gradativamente, como prenúncio do inverno. A época me lembrava minha mãe, ela morreu num outono. Ela odiava o outono.
Escutei um barulho na entrada. O som da senha sendo digitada no painel externo e o clique de destravamento, então, a porta sendo aberta e fechada. Permaneci do mesmo jeito, nem sequer abri os olhos.
Ouvi passos suaves no chão de madeira que depois foram abafado pelo tapete felpudo. Ele estava diante de mim, provavelmente me encarava.
- Não deveria entrar sem bater, é falta de educação. - falei, ainda, sem olhá-lo.
- Por que não me atendeu? Te liguei três vezes hoje. - Três das oito; notável, considerando que Jimin quase nunca me ligava.
- Estava distraída e precisava descansar.
- Fiquei preocupado, vim direto do estúdio.
Não disse nada, mesmo que saber aquilo, fizesse meu coração se alegrar um pouco. Ele não era completamente insensível à mim.
Percebi uma luminosidade branda por trás das pálpebras, ele havia acendido a luz, provavelmente não a da sala, mas a de um abajur ou luminária próximo.
- Você passou o dia inteiro de roupão? Vai pegar um resfriado assim, Hye-su. - percebi ele subir no sofá e abri espaço para se deitar atrás de mim, suas mãos abraçaram minha cintura e senti sua respiração no meu pescoço. Estava cansado, o tom da sua voz e a tensão no seu abraço o denunciavam.
Ele acariciou minha perna nua e beijou minha nuca, parecia disperso, mergulhado em um mundo distante.
- Ye-jin perguntou sobre você, hoje. - falou após um período de silêncio - Disse que não estava atendendo as chamadas. - Ele havia ligado por causa de Ye-jin, conclui sem precisar refletir muito, três ligações eram demais para seu limitado hábito de me telefonar. - Você devia retornar depois.
Sua mão passeava pelo meu corpo lentamente, mordidinhas leves no pescoço me fizeram arrepiar. Nem a raiva mudava a reação do meu corpo diante dos seus toques.
- Vocês estão saindo juntos. - Uma confirmação, não uma pergunta. Era a primeira vez que tocava nesse assunto com ele desde que descobrira.
Seu polegar direito roçou na pele do meu abdômen, uma fenda no roupão se abriu aos poucos. O indicador esquerdo traçou uma linha por entre minha coxas, de baixo para cima. Abri meus olhos na tentativa de resguardar um pouco de consciência, não queria me deixar levar pelas sensações, não podia.
- Quando descobriu? - Sua voz saiu rouca, baixa, mas não culpada, nunca culpada.
- Dessa vez é sério? -Ignorei sua pergunta com outra; não queria falar sobre aquele dia e nem mostrar o quanto estava afetada.
Eu precisava ser firme e esconder meus cacos - os pequenos pedaços de mim que estavam jogados pelo tapete imaginário que era meu orgulho.
- Não sei, talvez. Nunca é sério no início. - Uma evasiva, um lembrete. Oito palavras dizem muito, dizem tudo.
- Não vamos mais nos ver. - Soltei da maneira mais direta que consegui. - Não desse jeito, não enquanto você dorme com ela.
Me desvencilhei dele e fiquei de pé, caminhei até a bancada que separava a sala da cozinha e me sentei em dos três bancos que ficavam dispostos em frente. Precisava de espaço, de distância, detestava admitir o quão vulnerável eu era perto de seu corpo.
Ele escorregou pelo estofado e tomou todo o espaço do móvel. Olhou para cima, encarando o teto branco e perguntou:
- Por que? - Não parecia surpreso, nem bravo, apenas cansado.
- Ela é minha amiga, não quero machucá-la - não quero me machucar; não completei a frase.
- Você tem certeza disso?
- Sim. - Senti uma queimação na garganta, foi difícil falar.
- Tudo bem, se você quer assim - uma exalação. - Devo ir embora agora ou posso ficar mais um pouco? - Seus olhos continuavam fixos no teto, como se lá estivessem todas as respostas que ele buscava.
- Fique o tempo que precisar. - Me levantei e passei por trás do sofá, a caminho do quarto - Vou tomar um banho e depois dormir; quando sair, apague a luz - apontei com a cabeça, mesmo que ele não visse, para a luminária em forma de bailarina em cima da mesinha de centro.
Arrastei os pés descalços para o corredor escuro, não precisava de luz para me localizar, já estava familiarizada com tudo no apartamento, principalmente a escuridão.
Do meu lado direito, na primeira porta, estava um pseudo quarto de hóspedes - não estava mobiliado e guardava algumas coisas que eu não sabia onde deixar, um perfeito quarto da bagunça. A segunda porta era a do banheiro das visitas, quase inutilizado por mim.
Do lado esquerdo, uma única porta dava para o quarto principal, meu quarto. Girei a maçaneta e entrei. A luz do prédio vizinho, um prédio comercial, iluminava suficiente o espaço através da janela.
Tirei o roupão e joguei na cama. Mesmo que tentasse parecer calma, distante, meu corpo tremia pela minha decisão. Por quase cinco dias, remoi que atitude deveria tomar. Por todo esse tempo, em que eu deveria descansar, pensei exaustivamente se deveria apenas aceitar o que acontecia entre Ye-jin e Jimin.
A realidade é que eu não tinha que aceitar nada. Ele e eu não tínhamos um relacionamento, não éramos nada um para outro além de corpos que se satisfaziam, mutuamente, para aplacar a solidão. Mesmo que para mim ele fosse mais que um corpo, mesmo que eu sentisse sua essência gravada em mim, em cada parte de mim - material ou imaterial do meu ser.
O vida era dele, o corpo era dele, eu não tinha nenhum direito sobre suas decisões. Mas tinha sobre as minhas.
Não queria ser uma péssima amiga para Ye-jin, não queria arrastá-la para essa bagunça que eram os meus sentimentos e os dele, ela não merecia. E, principalmente, eu não queria odiá-la - isso seria difícil de acontecer, mas não tão impossível, como percebi no decorrer dos dias.
Nua, fui para o banheiro da suíte, não me incomodei de fechar a porta. Abri o box de vidro e liguei o chuveiro na água mais quente que minha pele conseguia aguentar. Eu precisava de conforto, precisava ser aquecida e acalmada. Precisava que, ao menos, as gotas de água me dissessem que eu tinha feito o que era correto, que mesmo que doesse, isso passaria, que era temporário.
A água escorreu pelo meu corpo, o vapor começava a tomar conta das paredes de vidro; apoiei meu antebraço direito contra o azulejo e encostei minha testa ali.
"Ele nem sequer titubeou. Ele não demonstrou um pingo de tristeza. Ele não se desesperou como eu teria feito em seu lugar." - lágrimas escorreram com esses pensamentos.
"Mantenha o controle Hye-su". Uma parte perdida bem lá no fundo gritava; eu não consegui obedecer. Meu corpo convulsionava ao chorar, abafei uma parte do barulho mordendo com força os lábios e torci que a água fizesse o resto.
Me perdi no tempo e na dor do peito, parecia que nada passava, nada era temporário e me senti presa naquele instante, esquecida num espaço-temporal onde só havia sofrimento.
Não percebi quando ele entrou no box, atrás de mim, apenas de cueca. Só senti sua presença quando ele me abraçou pela cintura, me pressionou contra sua pele e alisou meus braços, me acalmando. Era como se me dissesse que estava tudo bem, tudo bem chorar, tudo bem doer.
Em um instante me senti puxada da dimensão da dor para outra dimensão, a nossa dimensão. E, então, existíamos apenas nós, Park Jimin e Lee Hye-su - os amigos da adolescência, os amantes descompromissados, os semelhantes que se atraíam.
Notei o quanto fui tola de achar que a água me confortaria, me aqueceria. Só o seu toque, sua respiração no meu pescoço, me fazia esquecer de tudo, me fazia esquecer até de mim. Ele beijou o topo da minha cabeça e então me virou para ele.
Nos encaramos e percebi seus olhos me analisarem, perscrutando cada linha do meu rosto.
- Por que faz coisas que te machucam, Hye-su? - Uma pergunta engraçada, já que estava fazendo aquilo, justamente, com a intenção de não me machucar, ou, pelo menos, diminuir o máximo possível os danos.
Não respondi, não conseguia; me concentrei em seus lábios. No inferior corria uma linha vermelha, em pouco de sangue. Não sei que emoção o levou a morder seu lábio até sangrar, mas agora sabia que ele não estava tão apático a toda a situação tanto quanto pensei.
- Perguntei se tinha certeza, perguntei... - ele fechou os olhos, mordeu o lábios com força de novo, suprimindo toda emoção que tentava irromper dele - perguntei e você respondeu que sim, e agora chora, chora como se tivesse perdido algo precioso. O que temos não é precioso Hye-su, você não deveria chorar por isso, não deveria gastar suas lágrimas.
- Não tenho mais direito de chorar? Não posso mais expressar minhas emoções dentro da minha casa, do meu banheiro? - venci a sensação de ferro quente sendo derramado na minha garganta.
- Você pode chorar onde quiser, na hora que quiser, mas não por mim. Eu nunca te dei esperanças de nada, nunca houveram regras no nosso envolvimento, uma palavra sua e tudo acaba. Sempre soube disso.
- Se tudo acaba com uma palavra minha, porque ainda está aqui? Por que está seminu no meu banheiro? Por que me confortou? Me diz! - Um misto de fúria e dor dominou minha mente, quem era ele para me dar bronca, me fazer sentir como uma criança que não sabe tomar decisões? - Eu te odeio Park Jimin! - disparei, raiva escorrendo pelos poros - Te odeio seu hipócrita egoísta, narcisista do inferno, eu te odeio!
Então, como se todas minhas palavras fossem faíscas para o que quer que estivesse sentindo, ele explodiu, eu explodi. Uma explosão feia de corpos e bocas, beijos e agarros. Em um momento eu queria matá-lo, fazê-lo engolir cada sílaba direcionada à mim; no outro, eu queria tê-lo em mim, em cada pedacinho de mim, do meu corpo, dentro de mim. Como se fôssemos um, como se quebrássemos as leis da física e sua alma, sua essência se mesclasse a minha.
Como a penumbra antes do sol se pôr. Luz e sombra, misturada - não importava quem fosse a luz, quem era a sombra -, por breves instantes, éramos um; completos, perfeitos. E era tudo que importava.
Minha mente estava confusa, bagunçada. Se algum dia me perguntassem o que fizemos naquele banheiro, eu diria, sem mentira alguma, que não sabia, não lembrava de nada, nenhum movimento, apenas da sensação.
Da queimação da sensação. Do ardor da sua pele na minha, do formigamento, da raiva entre nós dois, do ódio que nos consumia, que me alimentava. E, então do prazer. De cada gama de prazer, da sensação de plenitude, da felicidade após a dor.
Ele era a dor, mas também a cura. Veneno e antídoto. Cor e ausência.
Eu sabia que cada célula do meu corpo reagia a ele, se adaptava a ele, se sentia bem com ele. Com ele, eu não estava mais sozinha e assim, eu não era mais estrangeira na minha própria pele, pois minha pele era dele, amava e vibrava, com se encontrasse sua casa à tanto tempo perdida, à tanto tempo esquecida.
***
Acordei de madrugada. Jimin estava do meu lado, jogado entre os lençóis, nu e vulnerável. Uma visão bonita, trágica; trágica apesar da beleza. Ele parecia triste, com dor, uma leve careta se formou em seu traços. Possivelmente um pesadelo.
Afaguei sua mão, um gesto recorrente nas nossas piores noites. Por vezes, me pegava perguntando quem tinha mais demônios para aplacar, eu ou ele? Era difícil saber, ainda mais quando certos assuntos eram completamente vetados em nossas conversas.
Após sua expressão se suavizar, me levantei para buscar um copo de água na cozinha. Bebi lentamente, enquanto ponderava em que ponto estava nossa relação. Minha cabeça doeu.
Cinco dias de agonia reflexiva, para ficar assim.
Eu estava de volta à estaca zero e não conseguia decidir mais nada. Resolvi deixar de lado, esconder a sujeira embaixo do tapete.
Quando retornei ao quarto, ele estava acordado, com braços cruzados atrás da nuca e encarando, novamente, o teto. Ao notar minha presença, se deitou de lado e ergueu a cabeça, apoiando-a em um dos braços. Me juntei ao seu lado.
- Sonhei com Busan. - Me confessou e logo compreendi o porquê da careta de minutos atrás, ele sonhou com a lembrança feia da nossa cidade natal. - Tae-soo me ligou hoje, assim que saí do estúdio. Preciso ir à Busan amanhã.
- Volto ao trabalho amanhã, mas posso faltar, se quiser que eu te acompanhe. - notei que o cansaço de mais cedo era por causa disso.
Ir à Busan nunca era fácil, tanto para mim, quanto para ele.
- Não é inteligente contar ao seu chefe que pretende faltar - mostrou uma tentativa de sorriso. - Mas, não vai precisar fazer isso, já tinha informado à administração para te darem a semana toda de folga, se tivesse atendido o telefone, saberia. - Tocou me rosto com a mão livre. - Seria ótimo se você me acompanhasse.
Seus dedos passaram do meu rosto para o pescoço, e, então, de volta ao rosto. O polegar contornou meu lábios.
- Me desculpe por mais cedo, eu fui um idiota - seus olhos brilhavam e a voz não passava de um cochicho. - Quando você falou que não queria mais nada, eu entendi; esperava por este momento a tempos. - Colocou uma mecha do meu cabelo castanho atrás da orelha. - Deitado no sofá, aos poucos, me senti estranho. Não pensei direito quando fui parar no seu quarto, acho que queria uma despedida, não podíamos acabar assim, de forma tão seca... não sei.
Talvez fosse o pesadelo, talvez fosse a briga ou até mesmo o telefonema do irmão, Jimin falou mais do que costumava. Parecia disposto a se confessar, a me contar o que se passava por dentro, mesmo que fosse o mínimo.
- Quando te vi chorando, fiquei com raiva. Raiva de você, muita raiva de mim. - Seus olhos fitaram o espaço entre meus seios, olhei também; uma marca roxa decorava o lugar. Sua boca, eventualmente, deveria ter passado por lá, eu não me lembrava.
- Prefiro que me odeie, Hye-su. - Ele se projetou para frente, seu rosto a milímetros do meu. - Seu ódio é melhor do que o choro, lembre-se disso. - Beijou no canto da minha boca. - E você fica sexy quando está com raiva, bem selvagem. - Sussurrou ao meu ouvido e depois mordeu o lóbulo da minha orelha.
Eu sabia onde isso iria parar, eu sabia o que ele queria e eu sabia que também desejava - era nosso loop infinito.
Sabia, igualmente, que aqueles olhos brilhantes - agora fechados, enquanto me beijava com ferocidade - estavam vazios, famintos e ansiosos. Ansiosos por preenchimento, pelo sentimento de totalidade, pela vontade de estar em casa.
Não era simplesmente sexo - como nós mesmos tentamos classificar a relação - era outra coisa; mais profunda, menos corporal, mais desesperadora.
Ele se sentia tão estrangeiro em sua pele quanto eu, e o "momento" que tivemos horas atrás deu a impressão que, por algum tempo, talvez, ele pudesse ser completo, ser inteiro, ser curado.
Enquanto ele me agarrava, enquanto eu subia em cima dele, resolvi ser tudo o que ele quisesse, ser tudo o que ele precisasse.
E, assim como Jimin era para mim, eu fui para ele.
Fui cura, antídoto e cor.
Fui penumbra.
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