☪ .☆ ━━ FIFTY THREE ━━ ☪ .☆
"Não faça o demônio sair". Era isso que as garotas sussurravam pelos corredores sempre que alguém novo chegava. Um aviso, uma forma de fazer com que aquelas garotas novas e até mesmo as mais antigas ficassem espertas. Eu ainda lembrava a primeira vez que soltei o demônio, aquele que me fez ganhar um apelido e uma reputação, que me fez ser vista como alguém cujo você deve abaixar a cabeça quando passa ao lado. Lá dentro daquele inferno, ter isso havia salvo minha vida.
Eu ainda era considerada novata no reformatório. Estava lá há apenas três meses, sobre a meia proteção de Juju. Ela tinha me ensinado com quem eu deveria fazer amizade, quem deveria evitar e com quem, em hipótese alguma, deveria bater de frente. A pior de todas era Suyen. Socava garotas por apenas estarem respirando pesado demais, ou fazendo barulho enquanto comiam. Além disso, Suyen era alta e forte. Não havia uma pessoa que não temia ela, e com razão. Eu mesma tinha medo de Suyen, e agradecia por nunca ter sido pega no radar da garota que, naquela época, era quase três anos mais velha que eu.
Mas teve um dia que aquilo não fez mais a menor importância para mim. Porque Suyen estava abusando de uma das garotas novas ali, Jess.
Jess nunca havia sido um problema; era doce demais e bondosa demais para aquele lugar podre do caralho. Havia ido parar ali após roubar uma caixinha de remédio para ajudar a mãe doente. Como isso sequer era justo? Jess sempre tinha feito seu melhor para ficar longe de encrencas, e eu gostava dela. Ela fazia eu me sentir normal no meio daquele lugar cheio de demônios. E quando a vi implorando para que Suyen parasse, para que não a tocasse daquela forma e Suyen a forçando a aquilo... Tudo ficou vermelho. E eu não vi e nem senti mais nada. Foi como se eu tivesse desligado uma parte minha e uma nova assumisse o comando. Foi como se uma outra personalidade minha tivesse assumido meu lugar. Não; foi como se eu tivesse sido possuída, foi o que falaram durante meses e meses depois daquilo.
Sem nem mesmo saber como lutar, eu tinha agarrado Suyen pelo cabelo com tanta força que alguns fios tinham sido arrancados. E bati o nariz dela na mesa de metal, com força o suficiente para apagar uma pessoa.
Todo mundo tinha arfado em choque quando Suyen cambaleou para trás, largando Jess, o nariz jorrando sangue. Todo mundo tinha pensando "bem, é agora que Aiko Tanaka vai morrer". Até mesmo eu, por um lapso de sanidade, pensei que aquele seria mesmo o meu fim.
Você tá morta, sua arrombada. Foi o que Suyen gritou, o nariz fazendo um barulho estranho por estar completamente destruído. Ela precisou de uma cirurgia para colocar ele de volta no lugar. Mas quebrar o nariz dela nem foi a pior coisa que eu fiz.
Suyen veio, o punho erguido para acabar comigo. Ainda não sei como consegui desviar daquilo. Mas Suyen tampouco estava preocupada se acertava ou não porque o objetivo dela sempre havia sido cravar aquela faca feita com o cabo de uma escova de dentes no meu abdômen. Todo mundo tinha gritado quando viram o sangue jorrando, Juju mais do que todas. Suyen tinha sorrido, vitoriosa. E eu? Eu ri. Ri de uma forma assustadora que, segundo Juju, tinha feito ela ter pesadelos por uma semana.
Você acha que isso vai me matar? Não pode me matar, sua arrombada. Foi o que eu disse. Ou pelo menos o que me falaram que eu disse porque, sinceramente, eu estava colérica de raiva. Nem mesmo me lembro direito do que aconteceu depois.
Mas eu me lembro do como a cor sumiu do rosto Suyen. Do como o soco que dei na garganta dela a tirou fora do eixo. E que ela teve que levar pontos na cabeça quando bati com a cadeira de metal na testa dela, a fazendo cair no chão. E depois bati de novo, e de novo, e de novo. Eu podia ter matado ela; eu teria matado Suyen se os guardas não tivessem aparecido para nos separar. E eu nem mesmo estava me importando com a dor da ferida profunda em minha barriga e com o sangue jorrando. Aquilo podia ter me matado também. Eu fiquei duas semanas em recuperação e depois tomei uma punição. Mas não importava. E acho que isso era o que mais me assustava: a falta de sentimentos. O fato que estaria tudo bem cometer um assassinato se fosse para proteger uma pessoa que eu gostava.
Depois disso, fiquei conhecida como a garota demônio. Isso me fez ficar viva. Me fez ter pessoas ao meu lado para me ajudarem a sobreviver, e ninguém fazia algo lá dentro sem me pedir permissão. Como se eu fosse a porra de uma rainha. As vezes, pensar nisso, no como eu era, no que me tornei lá dentro, ainda embrulhava meu estômago.
Mas esse não é o ponto. O ponto é que eu tinha mantido meu demônio preso por tempo demais. Nem mesmo Kisaki Tetta havia feito o suficiente para me fazer liberta-lo, e Sam tinha toda razão do mundo quando dizia que eu não devia cutucar Kisaki. Então, agora, eu tinha que dar uma salva de palmas a Baji por conseguir solta-lo. Porque depois que meu desespero passou, minha dor passou, meu medo passou... Tudo o que restou por ele ter feito o que fez com Chifuyu foi raiva. Foda se se Chifuyu pensa que Baji fez isso para ajudar, se fez isso pela Toman. Eu... Tô pouco me fudedo. Eu não aceito e jamais aceitarei o que ele fez com Chifuyu. E estava na hora de deixar isso bem claro a Baji.
Acelerei a moto, não me importando com o vento batedo com tanta força que parecia estar rasgando minha pele. Minha visão estava vermelha de tanta raiva. Acelerei ainda mais; se eu fosse presa, bem, foda se. Eu ainda assim ia fazer aquilo. Podia morrer? Claro que sim, se eu perdesse o controle, na velocidade em que estava, eu certamente iria morrer. Mas eu não me importava. Eu não estava... Nem ai.
Ai eu o vi. Usando aquela merda de jaqueta da Valhalla, desfilando por ai como se fosse a porra de um Deus. Finalmente longe de Kazutora. Ótimo. Ótimo, porque agora ele vai me ouvir. Ou melhor, encontrar meu demônio interior.
Acelerei mais a moto, indo diretamente na direção de Baji. Ele se virou quando escutou o barulho, arregalando tanto os olhos que achei que fossem saltar para fora. Baji deu um pulo para trás quando joguei a moto na direção dele, a virando e parando, apoiando meu pé no chão e o olhando com pura irritação.
-Suba.- eu disse e não era um pedido. Uma ordem. O rosto dele estava sem nenhuma cor.
-Que merda, Aiko, podia ter me matado!- ele gritou com raiva. E ai ele se deu conta. -Essa é a minha moto! Como você...
-Eu roubei.- eu disse com um sorriso cruel, estendendo e balançando a chave dele na minha mão. -Você foi muito descuidado de manhã.
-Foi você que esbarrou em mim?- ele disse e eu ri, ri daquele mesmo jeito que tinha rido na cara de Suyen. -Sua ladrãzinha de merda.
-Sobe. Ou vou passar com essa moto por cima de você. - eu rosnei. Devo ter sido bem convincente, pois Keisuke grunhiu e subiu atrás de mim.
-O que você...- ele começou, mas arranquei com a moto, o fazendo se agarrar com força em mim.
Acelerei; acelerei e corri pelas ruas desertas, sem me importar com o cabelo balançando e fazendo Keisuke reclamar atrás de mim. Acelerei mais ainda. Não me importei quando ele deu um grito no meu ouvido, me mandando diminuir. Aquilo só me fez ir mais rápido ainda.
-Você ficou louca? - ele berrou. Ele me beliscou com força quando viu a curva logo a nossa frente.
Porque se eu não diminuísse, as chances de conseguir fazer aquela curva sem cair e morrer eram quase nulas. Mas eu acelerei mesmo assim.
-A gente vai morrer, porra!- Keisuke gritou no meu ouvido.
Tombei a moto um pouco para o lado, conseguindo equilíbrio o suficiente para virar e desacelerar. Apoiei o pé no chão e parei a moto bruscamente.
Keisuke saiu de trás de mim, caindo de quatro no asfalto, tremendo que nem um gato. Mole. Frouxo. Otário do caralho. Ele me olhou com pura irritação e parecia prestes a me lançar um belo de um xingamento, mas voltou para o chão e fechou os olhos com força, quase como se estivesse se controlando para não vomitar.
Aproveitei que ele já estava no chão e pressionei meu pé nas costas dele, o fazendo cair de vez. Keisuke rosnou para mim, mas sequer se mexeu. Como se ele soubesse o porque estava fazendo aquilo. E ele não era um completo animal.
-Você é um arrombado de merda!- eu gritei. -Eu confiei em você! Eu te contei tudo, eu te dei minha amizade e a porra do meu coração, e o que você faz? Você me traí dessa forma! Eu achei que você fosse diferente, achei que... Porra! Pela primeira vez na vida, achei que tivesse um amigo que prestava. Mas estava enganada. Você podia ter matado ele, sabia? Você acabou com o Chifuyu, e eu te odeio por isso!
Agora, eu estava chorando. O demônio já nem estava mais ali, só... Apenas a Aiko. A Aiko chorona e fodida que sempre está confiando demais em quem não deve e quebrando a cara no final.
-Você acha que eu tive escolhas?- Keisuke gritou e eu o olhei. Ele estava triste. Os olhos dele estavam profundamente tristes. -Acha que não me matou ter que fazer o que fiz com Chifuyu?- ele disse num sussurro. -Porra, toda vez que fecho os olhos, só vejo aquilo. Ele sangrando por minha causa, sua cara de decepção. Mas o que eu deveria fazer, hein, Aiko? Porque aquele merda do Kisaki está querendo foder com todos os meus amigos, com a Toman, e está acabando com sua vida. E você sequer pode fazer algo! Então, me diz! O que eu deveria ter feito? Ficado sentado, na minha, vendo um arrombado fuder com minha gangue e minha melhor amiga? Eu não sou assim. Sinto muito se não te contei nada, sinto muito por ter feito tudo isso! Mas eu faria de novo, se quer saber.
Eu tirei o pé das costas dele. Keisuke se levantou sem nenhuma dificuldade, me olhando nos olhos. Balancei a cabeça, passando a mão com força pelo meu rosto.
-Você é um burro do caralho. - eu disse, minha voz rasgando a garganta. Dei um soco no peito dele. -Não precisa fazer tudo sozinho.
-Eu digo o mesmo pra você. - ele murmurou. E ficamos ali, apenas nos encarando, por um bom, bom tempo.
No fim das contas, eu suspirei e encostei a testa no peito dele. Baji me puxou e me abraçou com força, meio receoso que talvez eu surtasse de novo e tentasse mata-lo.
-Você é louca pra caralho, sabia, sua perturbada?- ele murmurou contra meu cabelo. Dei um beliscão nele. -Nunca mais quero andar de moto com você.
-E você é um puta cuzão.
Não dissemos mais nada. E também não precisávamos.
Minha orelha estava pressionada contra o peito de Chifuyu, uma perna jogada por cima dele, e eu escutava atentamente o coração de Chifuyu bater, como se fosse parar a qualquer instante. Nós não falamos nada; ele não disse nada quando fui até a casa dele no fim da tarde, não disse nada antes de me levar até o quarto dele, não disse nada quando deitamos juntos em sua cama. Também não disse nada quando eu o abracei da forma mais delicada possível, como se eu pudesse machuca-lo. Chifuyu apenas tinha me puxado para mais perto de si, me apertando em seus braços.
Fechei os olhos quando senti a mão dele passando de leve pelo meu cabelo. Depois do dia de merda que eu tive, aquilo era tudo o que eu precisava; ficar agarradinha com Chifuyu, sem me preocupar com Kisaki, Hanma, Kazutora, Baji, Toman, Valhalla ou a puta que pariu. Nada disso importava naquele momento.
Me levantei um pouco, apenas o suficiente para olhar Chifuyu. Ele parecia melhor do que ontem. O rosto já não estava tão inchado, apesar de o olho direito ainda estar bem fodido. Passei a mão de leve pela bochecha de Chifuyu e ele suspirou.
-Você tá melhor?- eu perguntei e ele riu.
-Perfeitamente bem.- ele murmurou, me puxando para mais perto de si, como se isso sequer fosse possível. Ele entrelaçou os dedos no meu cabelo de leve e eu suspirei, me aproximando mais até que meus lábios estivessem contra os dele, suavemente.
Ele segurou meu rosto, a língua de Chifuyu envolvendo a minha com calma. Meu estômago sempre ia parar no teto quando ele me beijava assim, quando me segurava dessa forma.
Então aquilo era ter um relacionamento com uma pessoa? Um relacionamento normal? Porque não acho que posso chamar os "namoros" que tive enquanto estava no reformatório de normais. Mas tudo com Chifuyu era completamente diferente. Inclusive eu mesma. Era como se ele conseguisse, de alguma forma, ver o melhor de mim e o trazer a tona.
-Você tá com fome?- ele perguntou beijando de leve meu pescoço, bem em cima da minha tatuagem.
-Um pouco.- admiti e ele deu risada. Talvez eu tivesse esquecido de comer o dia inteiro devido a minha imensa irritação.
Eu o segui para fora do quarto, e estávamos indo até a cozinha quando bateram na porta. Chifuyu apenas deu um suspiro e soltou minha mão para ir atender. Estava procurando um lugar para me enfiar quando escutei um grito horrorizado, um que conhecia bem.
-Ai meu Deus, o que aconteceu com você?- Sayuri disse, se jogando nos braços de Chifuyu e o apertando com força.
Pisquei. Mas que porra ela estava fazendo aqui? Ok. Tudo bem. Talvez ela e Chifuyu tivessem combinado algo, sei lá, eu que vim sem avisar. Eu deveria pegar meu tênis e ir embora, mas não. Fiquei ali, encostada na parede, apenas observando minha irmã apertando o garoto que eu gostava nos braços. A irmã que era mil vezes mais bonita e bem menos problemática do que eu.
-Eu tô bem, Sayuri, dá pra parar?- Chifuyu retrucou com uma careta, a afastando.
-Você...- ela começou, e ai me viu. Sayuri escancarou a boca. -Aiko? Porque você tá aqui? Você tem algo haver com o fato de Chifuyu estar todo machucado?
Ri com sarcasmo. É sério isso? Apenas balancei a cabeça, indignada, e comecei a colocar meu tênis. Foda se. Eles podem ficar os dois ai juntinhos fazendo só Deus sabe o que, eu quero que se foda.
-Eu tô indo embora, Chifuyu.- declarei, chegando até a porta, onde eles estavam. Eu ia passar reto, mas Chifuyu segurou minha mão. Ele me puxou com tanta força que me fez cair dentro dos braços dele.
-Você não ia comer?- ele disse fazendo cara feia. Revirei os olhos.
-Eu faço isso na minha casa, com minhas irmãs.- eu disse devolvendo a cara feia.
-Para com isso.- ele disse apertando meu nariz. Deu um tapa na mão dele.
-Aiko?- Sayuri me chamou. Eu bufei com irritação e me virei para ela.
-O que?- disse irritada. Ela ainda parecia esperar por uma resposta. -Puta que pariu, Sayuri, eu não te devo nenhuma expli...
-Aiko é minha namorada. - Chifuyu soltou. Parei até de respirar e me virei para ele. Ele sequer tinha dúvidas em relação ao que estava dizendo, apenas deu de ombros. -Por isso ela está aqui.
-Ah.- foi a única coisa que Sayuri disse, parecendo meio perplexa com o que estava escutando. Ela ficou olhando de mim para Chifuyu, como se tentasse entender o como aquilo funcionava. Bem, se nem ao menos eu entendia...
Chifuyu apenas segurou minha mão na dele e suspirou, dando uma encarada na minha irmã que dizia o suficiente: vai embora e para de atrapalhar. Eu quis rir.
-Acho que vou indo, então. - ela falou.
-É, depois a gente conversa.- Chifuyu disse, já doido pra fechar a porta na cara dela.
-Aiko.- ela me chamou e eu apenas arqueei uma sobrancelha. -Você podia ir jantar lá em casa amanhã.
-Nem fudendo. - eu disse com uma risada sarcástica. -Nem por todo o dinheiro do mundo!
-O que quer que eu faça pra me perdoar? Implore de joelhos?- ela sussurrou. Apenas balancei a cabeça.
-Só... Continua fingindo que eu não existo, Sayuri. Você se saiu muito bem nos últimos anos.
Ela apenas deu uma fungada antes de dar as costas e ir embora. Chifuyu fechou a porta e olhou para mim, como se esperando que eu começasse a, sei lá, surtar. Mas eu dei um sorriso para ele.
-Namorada, é?- provoquei e ele bufou, me puxando para perto de si.
-Você é uma maldita irritante, sabia?- ele murmurou, a boca contra a minha. Eu apenas sorri, como uma grande idiota.
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