15
Por não ser o tipo de mulher que fecha os olhos em situações como aquela, Verena estava olhando diretamente nos olhos de seu carrasco, tanto o fudido quanto o bom, vendo sua morte se aproximar praticamente em câmera lenta na forma de garras e carne decomposta. Ela não estava pronta para morrer, mas preferia encarar isso com coragem do que as cegas, forma que não a permitiria saber quando o golpe chegaria e nem lhe daria tempo para se preparar.
Só que este fato de se manter de olhos abertos a permitiu ver não apenas o Corpo Seco se jogando na sua direção, mas também a fez testemunhar algo bem mais interessante.
Se por conta da adrenalina do momento ou por delírio mental, Verena pode ver com uma riqueza de detalhes absurda quando um homem vestido em um traje bem familiar se jogou entre ela e a fera, usando uma Khopesh* para cortar a coisa ao meio da cabeça aos pés.
O ato foi muito rápido. Em um momento o Vorpo Seco estava lá e no segundo as duas metades de seu corpo caiam para os lados com um baque estranho. Mas mesmo assim ela pode ver quando o herói egípcio chegou com sua capa esvoaçante e espada de foice para lhe salvar.
Por um momento, Verena achou que aquele pudesse ser Marc, mas logo descartou essa ideia quando viu que aquilo que no traje de Spector era branco e dourado, nos recém chegado era branco, prata e preto.
O peitoral ainda era coberto por bandagens, porém as mesmas eram tão escuras quanto o breu. A arma de meia lua que ficava no centro era prateada, assim os dois bracelete nos pulsos. Já sua capa continuava branca na parte externa, porém conforme a figura se movia, era possível ver que por dentro era completamente preta.
Aquele não era Marc nem fudendo!
Toda essa avaliação não demorou mais que dois segundos. Mal o corpo de seu quase algoz havia caído no chão e Verena já estava de pé olhando para o recém chegado com as sobrancelhas franzidas enquanto seu salvador se virava para ela e segurava seu rosto entre as mãos enluvadas, os olhos brilhantes da máscara preta percorrendo todo seu corpo.
— ¿Estas bien, hermosa? — o homem perguntou com um espanhol carregado parecendo preocupado.
— Estou! — resmungou se soltando das mãos do homem. — Seja lá quem você for, obrigada.
— Não há de que, cariño.— falou acariciando o rosto de Verena com a ponta dos dedos. A mulher podia apostar que por baixo daquela máscara o cara estava sorrindo. — Acho que terei que me apresentar oficialmente a todos agora.
— Ah, pode apostar que vamos querer saber da onde você surgiu. Mas esse papo fica para depois! Temos um assunto mais urgente para tratar agora.
— Estas falando da grande fera que parece querer quebrar o chão como um gran martillo*? É, ele parece ser um caso grave.
— Vai me ajudar ou vai ficar olhando pra ele como se fosse uma maldita obra da Tarsila do Amaral?
Verena nem esperou resposta antes de voltar a correr na direção da fera com sua arma mais uma vez em punho. Ela tinha o plano de atirar naquela coisa para chamar sua atenção e de alguma forma o afastar do chão que já apresentava rachaduras preocupantes. Se não fosse a maldita estrutura reforçada das paredes subterrâneas, aquele lugar teria sido soterrado a vários minutos atrás.
— O que pretende fazer, cariño? — o novato perguntou enquanto corria ao seu lado, a capa voando atrás dos dois como uma coisa viva.
— Se possível, separar a cabeça daquela coisa do corpo! — respondeu ignorando os apelidos em espanhol que ele não parava de falar. — Mas antes preciso chamar a atenção dele para que pare de martelar o chão.
— Acho que posso ajudar com isso.
Piscando um olho brilhante na direção de Verena, o novo cavaleiro disparou em uma corrida da qual ela nunca seria capaz de alcançar e empunhou a Khopesh mais uma vez, a erguendo acima da cabeça ao mesmo tempo que usava uma pedra no meio de seu caminho para pular e levantar seu corpo até a altura da cabeça do bicho.
A espada foi parar no ombro da fera, sendo enterrada até não ser possível ver nem um milímetro da lâmina escura entre os pelos espessos. E pendurado pelo cabo da mesma, estava o Cavaleiro da Lua, balançando de um lado para o outro parecendo tentar usar o peso de seu corpo para aumentar a gravidade da ferida.
A fera por sua vez ao sentir a picada dolorida da espada ergueu a cabeça e rugiu de dor, uma das mãos cheias de garra batendo no corpo balançante do Cavaleiro com tanta força que o homem voou longe.
Mas bem, ao menos ele agora parecia ter tirado sua atenção do que fazia antes para gritar com raiva para seus agressores. E mesmo tendo conseguido o que queria, Verena quase desejou que a coisa voltasse a baixar a cabeça apenas para não ver sua face revelada por completo.
Sua cabeça enorme era tão peluda quando o resto de seu corpo, dando espaço apenas para uma bolota redonda esbranquiçada e cheia de veias finas azuis e vermelhas. Demorou um pouco até a mercenária entender que aquela bola era um olho e que o mesmo estava fixado nela.
Mas essa nem era a parte mais assustadora.
Enquanto se colocava de pé, a criatura continuava rugindo raivosa com sua boca cheia de dentes afiados e tortos, alguns até mesmo se sobrepondo sobre o outro, que por incrível que pareça não estava localizada no rosto da fera e sim em sua barriga, a divindo na vertical de cima a baixo, perfeitamente grande para engolir um adulto em uma só mordida.
— Merda! — xingou Verena dando passos para trás, sabendo que se não começasse a correr logo, viraria comida de monstro. — Merda! Porra de buceta cabeluda! Por que resolveram abrir as portas do mundo bizarro? Será que não tenho um minuto de paz nesse caralho?
A fera gritou de novo e Verena começou a correr o mais rápido que conseguia com suas pernas doloridas e corpo ferido.
Não demorou muito para que ela ouvisse os pequenos estrondos dos pés da fera a seguindo. Cada passada daquela coisa deveria equivaler a umas trinta da dela. Saber disso apenas fez tentar correr mais rápido. Suas armas não iriam surtir efeito naquela coisa, afinal uma bala não parecia ser o suficiente para derrubar algo daquele tamanho. Ela precisava pensar, mas correr estava tomando toda sua concentração. Verena era apenas uma humana atrevida, pelo amor de Deus!
Não demorou muito para ela perceber que não seria capaz de fugir daquela coisa por mais rápido que pudesse correr. Em um momento tinha seus pés batendo e tropeçando no chão enquanto se movia e no outro suas pernas balançavam no vazio como um boneco de desenho animado. Uma mão grande e peluda havia envolvido seu tronco e a segurava firmemente, a fazendo prisioneira do monstro como a protagonista do King Kong.
Ao longe ela ouviu alguém gritando seu nome de maneira preocupada, mas Verena não se permitiu nem mesmo olhar para trás para ver quem foi. Precisava se manter concentrada ou começaria a dar voz ao medo quase paralisante que a tomava enquanto olhava o olho vidrado da fera a sua frente.
A mercenária engoliu em seco e passou a respirar pela boca de maneira ofegante. O cheiro da fera era quase sufocante de tão intenso e se precisasse descreve-lo, diria que parecia uma mistura de borracha queimada com corpos apodrecidos. E o tal não melhorou quando a boca bizarra se abriu na barriga da coisa para que ela rugisse mais uma vez, gotas espessas de saliva voando para todos os lados no processo.
Lá de baixo, junto aos gritos insistentes a chamando, Verena ouviu o som de tiros. Se tivesse olhado para baixo, a mercenária poderia ver Miquéias e mais três agentes da organização mirando na fera que a cada bala atingida, gritava e batia os pés no chão como se tentasse se livrar de um bando de formigas.
A mulher realmente não entendia qual era o plano de Miquéias, mas não precisava pensar muito para saber que não daria certo. Eles estavam longe demais para dar um tiro fatal e mesmo se estivessem, as balas não pareciam mais do que um incômodo para a fera. Tal noção só foi confirmada ainda mais quando uma das balas passou raspando na lateral de sua cabeça quase levando sua orelha junto no processo.
— Puta que pariu, Miquéias! Você vai me matar assim! — gritou Verena do alto de cara feia. — Não ta vendo que essa porra não vai funcionar?
Os tiros não pararam, mas parecendo ter visto seu erro, Miquéias ao menos passou a mirar em outros lugares.
Verena, agora mais irritada do que amedrontada, passou a olhar em volta em busca de alguma coisa, qualquer que fosse, para ajuda-la a se livrar daquela coisa.
Se balançando e se revirando de um lado ao outro, Verena demorou apenas alguns segundos para deixar seu olho se fixar no cabo prateado da Khopesh do cavaleiro ainda presa no ombro da fera. A arma estava um pouco longe, mas perto o bastante para ela alcançar se tivesse sorte.
A mercenária respirou fundo três vezes e se preparou.
Aproveitando a forma como a fera se mexia para afastar os tiros do quarteto, Verena usou a mãos livres para tentar se empurrar para fora do aperto em seu tronco. Tal ato a fez gemer de dor não apenas pela forma como seu corpo reclamava pela pressão em volta dele, mas também por seu braço e ombro feridos da disputa com os Corpos Secos.
O sangue voltou a fluir para fora das feridas, deixando seus dedos grudentos e escorregadios, dificultando não apenas seu trabalho, mas agradecidamente também o da fera de a segurar. A mercenária deveria ter ficado preocupada ao ver que sangrava o bastante para deixar os dedos daquela fera escorregadios, mas naquela situação foi uma verdadeira bênção. Logo ela conseguiu sair de dentro dos dedos que a aprisionavam e se agarrou nos pelos do braço da coisa para se segurar.
A partir desse momento Verena só pode agradecer pelos treinos de escalada que Camila a obrigou a fazer a alguns anos. Aquela maldita aula havia deixado seu corpo em frangalhos por vários dias, mas estava sendo bem útil enquanto ela se agarrava e se esgueirava pelo braço da criatura como um macaquinho até alcançar o ombro da mesma e puxar a Khopesh para fora.
A dor na ferida chamou atenção da fera para ela mais uma vez, que gritando irritada, agarrou seu corpo com a mãozona mais uma vez. Porém, isso era tudo o que Verena precisava. Ao ser erguida mais uma vez na mão da coisa, a mercenária ficou frente a frente ao grande e aterrorizante olho da mesma, um alvo perfeito para ser atingido por uma lâmina afiada.
Mordendo o lábio para manter os braços firmes, Verena os ergueu acima da cabeça e segurando a arma com as duas mãos, fincou a lâmina curva e afiada bem no centro da pupila esbranquiçada.
A fera gritou em agonia e soltou o corpo de Verena, deixando-a pendurava e agarrada ao cabo da Khopesh. O corpo da mercenária se balançava enquanto a criatura se debatia, as mãos cheias de garras arranhando o próprio rosto para tirar o que a machucava dali. Mesmo assim, Verena se manteve no lugar, rugindo de dor e cansaço enquanto usava o peso de seu corpo para fazer a lâmina se arrastar para baixo, rasgando o olho da fera no processo.
A arma chegou no limite da pálpebra da fera e Verena conseguiu por um momento apoiar seus pés na pele mole e frágil do local. Era um apoio precário, mas o suficiente para que a mercenária conseguisse puxar os braços para trás. Sua intenção era tirar a espada curva da bolota branca e a usar para escalar seu caminho corpo abaixo do monstrengo. Porém a curvatura da lâmina se prendeu a carne do olho e quando a mulher puxou, toda a córnea da fera veio junto.
A bola branca foi caindo para trás e junto com ela, o corpo de Verena.
A gravidade a puxou para baixo e a boca da mercenária se abriu enquanto ela caía. Pelo menos uma morte por queda era uma opção melhor do que a de ser devorada.
Verena fechou os olhos e esperou o baque de seu corpo no chão, mas ele nunca veio. Antes de se quebrar inteira na grama, braços envolveram seu corpo e a salvaram da morte por impacto. Ao abrir seus olhos, não ficou nada surpresa ao encontrar uma máscara preta de olhos brilhantes a encarando.
— Peguei você, cariño! — disse a voz com sotaque espanhol.
— Obrigada! Mas agora já pode me soltar.
Verena pulou fora dos braços do cavaleiro e mesmo de pernas bambas, girou seu corpo até encontrar o corpo da fera caído no chão ainda aos berros e com os braços se debatendo no rosto. Ainda parecia perigosa, mas naquela situação vulnerável, não demorou muito para que os outros agentes dessem conta do recado.
— Estas bien?
— Você pergunta muito isso, né?
— Não é culpa minha se é necessário!
Verena encarou o rosto máscarado e bufou. Tinha mais aquela questão para cuidar agora. Só Deus podia dizer o que a descoberta de mais uma personalidade não causaria a Marc Spector e a Steven Grant.
Seu nome foi chamado mais uma vez as suas costas e Verena se colocou o lado do Cavaleiro para ver a fonte, ao mesmo tempo sem querer perde-lo de vista. A poucos metros Miquéias corria em sua direção seguido por Layla, que parecia preocupada e felizmente, pouco ferida.
— Você está bem? — Miquéias questionou, os olhos castanhos arregalados avaliando seu corpo estrupiado.
— Por que todo mundo ta me perguntando isso quando a resposta obvia é que não? — questionou a mercenária.
— Talvez porque você estava quase virando comida de Pé Grande? — Layla respondeu. — Aliás, mandou bem lá em cima com aquela espada!
— Obrigada! — agradeceu com um sorriso amarelo.
Quanto mais o tempo passava, mais fraca se sentia. A perda de sangue exagerada estava começando a cobrar seu preço, assim como os vários ferimentos obtidos. Não ficaria surpresa se estivesse quebrado algum osso.
— Qual a situação? — voltou a perguntar tentando esconder a careta de dor.
— Está controlada. Depois que o Mapinguari caiu, as outras feras se foram, assim como o Luison. — Miquéias respondeu olhando rapidamente para o olho gigante ao lado deles. — Temos alguns feridos e três mortos. Considerando os outros ataques, esse não foi o pior.
— Espera, aquela coisa era o Mapinguari? Tipo, O Mapinguari?
— Sim! Não é a primeira vez que vemos um, mas é a primeira que um deles cai.
Verena passou a mão manchada se sangue em seu rosto, logo em seguida fazendo outro careta ao sentir o cheiro fétido que havia se empreguinado na mesma. Precisava urgentemente de um banho. E de remendos por várias partes do corpo. Quem sabe depois disso pudesse dormir por um dia inteiro.
Porém, entretando, contudo, toda via, antes disso Verena precisava resolver outra coisa.
Antes mesmo de abrir a boca, Verena agarrou o tecido da capa esvoaçante o seu lado e puxou o corpo do cavaleiro para baixo ao mesmo tempo que lhe dava uma rasteira. O mesmo caiu de joelhos no chão e Verena se pôs a frente do mesmo enquanto as suas costas Layla e Miquéias arquejavam surpreso.
A mercenária ignorou os questionamentos de ambos as suas costas e agarrou o capuz do traje até que apenas a máscara escura ficasse a mostra, mas logo nem mesmo ela estava a vista, já que o cavaleiro pareceu se livrar dela para olhar em direção a mulher a sua frente sorrindo perigosamente.
— Agora que estamos parcialmente seguros... — Verena começou a falar e segurou os cabelos escuros do homem entre seus dedos, os puxando para trás. — Você vai nos contar direitinho quem é você.
*Khopesh:
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