01
Era mais um dia comum.
O final da tarde se aproximava e o céu do lado de fora das grandes janelas do consultório estava em um tom cremoso de laranja e rosa, cheio de nuvens fofas. Era um belo entardecer, daqueles que faziam qualquer pessoa parar para observar. Principalmente em uma cidade como Londres, onde raramente se via algo do tipo.
E assim como a tarde chegava ao fim, mais um expediente também estava quase se encerrando. Apenas mais um paciente precisava ser atendido e logo, a Dra. Verena Thullis poderia desfrutar de uma boa taça de vinho em sua casa, descansando os pés depois de passar horas com um salto nada confortável.
O paciente em questão chegou pontualmente. Algo incomum mesmo na terra da rainha. Alguns chegavam alguns minutos antes, outros alguns minutos depois, haviam até aqueles que nem apareciam. Mas não o paciente daquela tarde. Ele chegou no horário exato para o qual estava agendado.
Quando Verena o chamou na recepção, o homem de cabelos desgrenhados logo se pôs de pé, entrando no consultório com passos retos, porém tímidos. Ele sentou-se na poltrona em frente a de Verena e cruzando as mãos sobre o colo, manteve uma postura passiva, com os ombros encolhidos e olhar vagante, aguardando por uma deixa a qual seguir.
— Boa tarde. — se pronunciou a doutora ao perceber que o homem não tomaria a iniciativa. — Me chamo Verena Thullis.
— Olá! — respondeu o homem pousando os olhos castanhos brevemente sobre ela antes de desviarem mais uma vez. — Sou Steven Grant.
Percebendo que Steven Grant era uma pessoa tímida, Verena apenas sorriu em resposta de maneira amigável.
Naqueles poucos minutos em que Steven estava em sua sala, Verena pôde perceber algumas coisas sobre o homem.
Seu sotaque britânico era forte e carregado. Tanto que Verena sentiu que teria dificuldade em compreende-lo se decidisse falar com mais rapidez. Era tímido e aparentava estar na casa dos trinta anos, talvez próximo dos quarenta. Mas mesmo com a idade aparente, trazia uma curiosidade quase infantil em seu olhar inquieto. Talvez fosse essa atitude que o tivesse levado até ali, um consultório de psiquiatria e psicologia com especialização em distúrbios neurológicos. Quem sabe fosse uma síndrome de Peter Pan que o aflingisse.
Verena não conseguia fazer sua mente parar de questionar sobre as questões daquele paciente. Era um hábito que tentava mudar desde que era apenas uma universitária curiosa. Sabia que não podia avaliar cada pessoa que surgia a sua frente, supondo diagnósticos antes mesmo de conversar com alguém. Como psicóloga, aquela não era sua função, mas sim ouvir o que quer que o paciente decidisse trazer e discutir, e então, só depois de estudar e refletir sobre o caso, decidir o que colocar em uma ficha, que talvez pudesse levar um diagnóstico. Mas não antes. Mesmo que muitas vezes uma voz em sua cabeça pedisse que ela fosse em frente, falando coisas a pessoas desconhecidas.
— Bem, senhor Grant... — continuou Verena após poucos segundos de toda aquela deliberação. — O que trouxe aqui?
Observadora como era, a psicóloga notou a hesitação de Steven Grant. Foram poucos os indicativos, os olhos baixaram para o chão e os dedos das mãos se retorceram enquanto parecia se decidir o que falar.
Ela, por sua vez, apenas esperou enquanto o homem retorcia a própria mente em busca de explicações. Era comum aquele tipo de reação. Muitas pessoas demoravam a tomar coragem para buscar ajuda psicológica e quando o faziam, tendiam a perder a fala ao chegar no consultório. Durante seus dias de trabalho, já havia ocorrido vezes de pacientes saírem após o primeiro minuto de sessão. Alguns voltavam, outros simplesmente desapareciam. Mas não era papel dela julgar ou impedir que tais pacientes fizessem esse tipo de escolha.
— Eu... Eu vim, por que... — sua voz estava mais fraca, menos confiante do que quando falara pela primeira vez. Ainda assim ela aguardou em silêncio. Os primeiros passos eram sempre os mais difíceis.
Steven Grant pareceu fechar seus olhos e respirou fundo três vezes antes de a encarar com um olhar perdido. Verena já tinha visto aquele olhar muitas vezes em muitos rostos diferentes, mas mesmo assim, nunca deixava de a impactar. Era um olhar cheio de duvidas de alguém que já não confiava mais em sua própria mente, que desconfiava de sua sanidade e do que era real ou não.
Era difícil parar de acreditar em terceiros, na família ou em amigos. Perder a crença no externo era uma ferida grande, mas que se curava mais facilmente de certa forma. Já quando a crença posta a prova era aquela depositada em si mesmo, era uma história completamente diferente.
— Por favor, continue, Sr. Grant. — disse a psicóloga com uma voz calma e reconfortante. — Não há julgamento aqui.
— Eu vim... O m-museu me indicou... Essa clínica. — declarou ele ainda incerto e receoso.
Verena compreendeu de imediato a situação. Havia recebido uma ligação do Museu de História de Londres, questionando se poderiam receber um ex funcionário com possíveis inclinações a ter alucinações. Ela não havia prestado muita atenção quando sua secretária lhe passou o recado, mas pediu que a ela que se a pessoa em questão entrasse em contato, que agendasse um horário com ela em específico. Sabia que precisaria lidar com aquele caso pessoalmente e ficava feliz que Steven tivesse entrado em contato.
— Compreendo, Sr Grant. — Verena sorriu apoiando as mãos cruzadas em seu colo. — Mas gostaria de saber o motivo pelo qual decidiu nos procurar. Por que decidiu aceitar a indicação do museu?
Ele engoliu em seco, mais uma vez receoso enquanto a psicóloga esperava. Era importante dar tempo aos pacientes, mesmo quando o tic tac do relógio não parava de soar, indicando que os sessenta minutos de sessão continuavam correndo independente da pessoa a sua frente estar falando ou não.
Mais três minutos se passaram até que Steven tomasse coragem para falar mais uma vez.
— Vim porque escuto vozes. — sussurrou o homem, um dedo trêmulo apontado para a testa. — Escuto vozes dentro da minha cabeça que ninguém mais escuta.
— Poderia explicar melhor? — pediu ela ainda calma, sabendo que nada que ele falasse poderia mudar um traço se quer em sua expressão. — Saberia me dizer quando tudo começou?
— N-não. Não, não... E-eu... — mais uma pausa para fechar os olhos e tomar fôlego. — Eu apenas... Não consigo me lembrar quando foi a última vez que dormi uma noite completa. Tenho medo de dormir. Sempre que faço isso, eu... É como se vivesse tendo apagões! E eu sonhei com um homem de bengala que queria que o entregasse um escaravelho e caminhões carregando madeiras. Só que não parecia ser um sonho! Parecia ser muito real! Q-quando acordei, meu peixe tinha duas barbatanas e era domingo!
E mais uma vez ele se interrompeu, pelo que Verena quase agradeceu, pois Steven estava começando a falar rápido demais e entre uma palavra e outra ela mal conseguia o acompanhar. Os olhos não se fixavam nela, estavam arregalados e sempre se desviando. Era como se ele sentisse vergonha do que estava passando e Verena não se surpreendia com isso considerando que para muitas pessoas tudo o que ele dizia pareceria absurdo, mesmo que para ela parecesse completamente normal. Não era algo estranho ter sonhos muito realistas. Mesmo assim esperou, pois Steven parecia ter mais a falar.
— Eu vim aqui porque acho que estou perdendo o controle do meu próprio corpo! — disse Steven Grant de uma vez. — Eu fui trabalhar e o homem de bengala do meu sonho me encontrou falando sobre homens azuis e... e.... Tem esse monstro gigante com cabeça de pássaro... Sem falar do cara dos espelhos que me manda fazer coisas...
— Que tipo de coisas?
Steven pareceu se engasgar com as próprias palavras enquanto tentava responder. Sua boca abria e fechava por várias vezes sem que som algum saísse da mesma. Os olhos pela primeira vez se fixaram em um ponto, logo ao lado da cabeça de Verena. Ali, havia um espelho redondo e sútil, mas que refletia o rosto apavorado de Steven com perfeição. Ou ao menos foi o que pareceu por alguns segundos, até que toda a expressão do homem se transformou.
Porém, não foi apenas a expressão, mas toda a postura do homem mudou em um piscar de olhos. E Verena, de alguma forma, teve a intuição de que aquele sentado a sua frente não era mais Steven Grant, mesmo que seus traços fossem os mesmos.
A postura corporal de uma pessoa podia dizer muito sobre ela, sobre quem era e como via o mundo.
Aquele homem a sua frente parecia ver o mundo todo em tons de cinza. As sobrancelhas escuras agora estavam franzidas sobre os olhos que não carregavam nenhum traço da inocência de segundos antes. A boca estava franzida e os ombros, antes recurvados, agora estavam retos, em uma postura mais confiante e até mesmo intimidadora.
Estava se tornando um pouco mais claro para Verena que não se tratava de uma síndrome que tornava alguém incapaz de querer crescer, mas sim de mais de uma personalidade habitando e dividindo a mesma mente.
— Tenho a impressão de que preciso de uma nova introdução. — comentou Verena mantendo a postura inabalável. Ela já havia visto coisas piores que uma troca de personalidade para se assustar.
— Não acho que você é uma boa psicóloga se faz suposições desse tipo toda hora. — Até mesmo a voz era diferente. O sotaque britânico havia desaparecido por completo, deixando em seu lugar um tipico inglês americano, com seus "R" mais acentuados e voz mais anasalada.
— Sou apenas observadora. — respondeu a psicóloga. — E pelo que vejo, não posso mais lhe chamar de Steven. Ou possui o mesmo nome que seu amigo inglês?
O homem pareceu brevemente desconcertado pelo seu comentário. Verena imaginou que o tal não esperava que ela fosse tão direta. Mas posturas diferentes dos pacientes exigiam posturas diferentes de Verena. E ela sabia que aquele homem não precisava que fosse paciente e silenciosa, mas sim direta e objetiva. Se não fosse capaz de entender essas nuances, teria perdido muitos pacientes e poderia perder inclusive aquele ali.
— Isso não a interessa! — resmungou o homem ficando de pé. — Acredite em mim quando digo que é melhor não saber quem eu sou. E para o Steven também!
— Acredito que ele deva decidir isso e não você.
— A senhora acredita em muitas coisas.
— Pode me considerar uma pessoa de muitas crenças, se preferir.
Ele riu de maneira debochada enquanto levava uma das mãos aos olhos. A respiração do mesmo estava acelerada, como se antes de surgir ali no lugar de Steven, tivesse corrido uma maratona. Verena se perguntava se ele estava daquela maneira por estar ali com ela ou se havia outro motivo por trás de sua ansiedade. Seja o que fosse, o tal homem parecia tão desorientado quanto Steven.
Após alguns minutos de costas para Verena, o homem que parecia estar discutindo consigo mesmo se voltou para ela e caminhou em sua direção em um rompante. Quando estava a sua frente, apoiou ambas as mãos nos braços de sua poltrona e aproximou seu rosto contorcido por raiva do dela.
— Escute, vir até aqui foi um erro. — o homem praticamente rosnou para Verena, que se mantinha quieta, apenas olhando diretamente naqueles olhos escuros. — Estou saindo e se Steven voltar a vir aqui, o mande embora!
Verena não respondeu. Manteve uma expressão vazia e deixou seus olhos fixos nos dele, observando as pupilas dilatadas deixarem apenas um fino anel de castanho aparente quase sem piscar.
Parecendo notar que a mulher a sua frente não iria discordar e nem concordar com suas exigências, o homem se afastou e saiu do consultório batendo a porta atrás de si.
Inabalada, Verena apenas pegou uma ficha em branco e passou a fazer um relatório daquela consulta, como sempre fazia após cada uma delas. Mesmo que Steven e seu companheiro de mente não voltassem, aquele registro precisava ser feito. Afinal, nunca se sabia quando precisaria rever informações.
Marc sabia que precisava se acalmar o mais cedo que conseguisse. Mas mesmo que tentasse controlar sua respiração, pensar em lugares felizes e toda essa merda para dispersar a ansiedade que estava fazendo seu coração pular em seu peito, não conseguia.
Ele não esperava que Steven fosse tomar uma atitude daquelas. Era perfeitamente capaz de entender que ele estava se sentindo cada vez mais perdido enquanto suas vidas se misturavam. Mas tomar aquele tipo de decisão iria colocar tudo a perder! E Marc não podia deixar isso acontecer. Perder significava colocar Steven em perigo e não apenas ele...
Enquanto andava pelas ruas de Londres com pressa, sempre desviando de forma rude das pessoas que vinham do lado contrário, Marc tentava ignorar a presença que o seguia de cima dos prédios, mesmo que sua voz martelasse em sua mente com a força de uma marreta.
"Você prometeu que ele não seria um problema!"
Rugia a voz ancestral e cadavérica do deus ao qual por anos servia. Se Marc tivesse a capacidade de voltar no tempo e mudar seu passado, tinha certeza que a primeira mudança seria a de tomar a decisão de apertar aquele gatilho ao invés de dar ouvidos a um pássaro morto e gigante.
"Esse idiota está se intrometendo em meus assuntos a muito tempo! E agora isso! Você tem ideia do que ele fez? Do que ele arrisca?"
Marc cerrou os dentes enquanto virava em uma esquina, entrando em uma rua menos movimentada.
Ele sabia perfeitamente o que havia sido colocado em risco. Por isso estava tão transtornado. Steven tinha tomado o controle e cometido um erro que colocava a vida de todos eles em risco. A existência de Marc estava em jogo, até a do deus que o perseguia nos telhados havia sido prejudicada. E se ele conhecia bem o mesmo, não iria deixar barato.
Mais uma coisa que ele precisava resolver.
Como se Marc não tivesse problemas o bastante por conta daquele maldito escaravelho e o maldito do Harrow.
Precisava esconder aquele escaravelho problemático, encontrar o maldito fanático antes que ele desse cabo de mais alguém ao mesmo tempo que tentava manter o equilíbrio entre sua vida e a de Steven. Isso enquanto tentava fugir de Layla e agora, impedir que o britânico fosse apagado de vez de sua história por um deus temperamental.
"Você tem que concertar toda essa bagunça! Não irei admitir mais interrupções desse parasita! Mais uma dessas e irei destrui-lo!"
Marc ignorou mais uma vez a voz do deus enquanto entrava no apartamento de Steven para pegar tudo o que precisava. A noite já estava caindo e logo a escuridão tomaria conta de tudo. Perfeito para sair na surdina até seu depósito onde poderia guardar sua mala e seus documentos, longe o bastante de Steven e seus dedos curiosos.
"Você precisa destruir esse escaravelho!"
— Khonshu, fique quieto! — rosnou Marc de volta tentando não olhar para o monstro quem seguia.
"É muito arriscado deixar isso em uma espelunca qualquer onde alguém pode encontrar facilmente! Destrua isso!"
Khonshu continuava exigindo em sua cabeça, falando tudo o que Marc já sabia. Porém, para destruir aquele besourinho dourado seria necessário uma viagem muito longa com a qual não poderia lidar naquela noite.
"Se você deixar que esse escaravelho caía nas mãos erradas..."
— Eu sei! — Marc gritou se virando para a janela.
Lá ele viu o grande deus egípcio da lua parado com seu cajado, o corpo enorme envolvido de faixas e bandagens. Mesmo com pouca oportunidade de se moldar uma expressão, Marc sabia que o deus estava irritado. Irado, se fosse mais verdadeiro. Ele odiava aquele crânio de pássaro flutuante quase tanto quanto odiava a si mesmo. Se não fosse por Steven e por Layla, já o teria abandonado a muito tempo.
— Acha que não sei os riscos envolvidos nisso tudo? — Marc continuou apontando o dedo para a forma agigantada de Kounshu. — Acha que não conheço as consequências que vão acontecer se eu falhar? Eu sei tudo que está em jogo aqui! Cada vida que pode ser prejudicada! Então só me deixa fazer o que tenho que fazer e me deixa em paz!
"Se você me deixasse apagar esse parasita, tudo seria mais fácil!"
— Não! — rosnou avançando para cima do deus. — Você não vai tocar no Steven! Nunca!
"Se tocarei ou não nele, só vai depender de você. "
Marc engoliu em seco o medo que gelou sua espinha e fez suas mãos soarem. Ele tinha plena noção de que aquela não era apenas uma ameaça vazia. Khonshu seria perfeitamente capaz de apagar Steven da existência apenas por capricho. E aquela era uma das cordas que o mantinham sendo um fantoche do deus.
Sem responder, Marc apenas pegou sua mala, o passaporte recém encontrado e saiu do apartamento. Até onde sabia, aquela era muito provavelmente uma missão suicida, mas não era essa parte que o assustava. Se no fim de tudo a morte chegasse, Marc achava que iria recebe-lá de braços abertos. Já estava cansado demais de sua vida. O que mais o assombrava era a solidão que rondava seus dias e a possibilidade de perder Steven apenas aumentava seu tormento.
Precisava resolver aquela última missão ou perderia tudo o que mais importava em seu mundo. E quem sabe depois de disso, pudesse levar Steven para a clínica mais uma vez para conversar com a médica engomadinha de olhar arrogante. Ela parecia ser alguém confiável o bastante para não manda-los direto para uma sala branca com direito a camisa de forças.
Se bem que eles poderiam precisar de uma no final daquilo tudo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro