✧12✧
Meus dedos formigam. Sinto como se estivesse acordando de um sonho, sem noção de localização ou tempo. Sem saber o que é real ou não. Mexo as mãos, recuperando meus sentidos, mas ainda sem força para abrir os olhos. Ouço bips e barulhos de prováveis monitores. A temperatura da sala parece baixa. Sinto cheiro de álcool e um perfume leve. E então a memória do cheiro de sangue me vem à mente, e tudo me atinge. A simulação da Ordem, meus amigos morrendo e minha vitória. Achei que seu gosto seria muito mais doce do que o amargor que sinto em meus lábios. Quando voltei à realidade, nada parecia fazer sentido ou ser real. Estive tão imersa no teste simulado que o choque ao voltar ao mundo real me nocauteou. Lembrar que existem tantos mundos diferentes, e pelo jeito eu não tenho noção do quanto são inimagináveis, me perturba. Descobrir coisas sobre mim mesma ate então enterradas me perturba. Quando acordei no ginásio, sentia como se tivesse acordado de um sonho muito vívido, daqueles que acordamos sem saber se foi real ou não. Sonho não, pesadelo. E incrivelmente real.
Reúno coragem para abrir os olhos, e a claridade me atinge mais uma vez. O quarto é bem iluminado, as janelas grandes dando vista para o jardim do instituto, hoje mais cinzento pelo tempo chuvoso. As gotas de água pintam os vidros como lágrimas molham um rosto descontente. Um acesso venoso ocupa minha mão, ligado ao que imagino ser uma espécie de soro. Logo presumo estar na enfermaria. Olho ao redor na busca de algo que me forneça as horas ou qualquer senso de localização temporal, e encontro um criado mudo ao meu lado. Um grande arranjo de flores roxas ocupa quase metade do móvel, seu perfume agora me atingindo com mais força. As flores são lindas, dispostas intercaladas com pequenos raminhos brancos e... dourados? Um pouco exagerado para o meu gosto. A porta do quarto se abre, e a garota de jaleco e cabelos enrolados entra com um sorriso.
―Ah! Você acordou! Já estava ficando preocupada― Ela aproxima-se, um prontuário em suas mãos.
Pergunto, ainda atonia
―O que aconteceu? ― Me sento um pouco mais ereta na cama.
―Você desmaiou depois que voltou da simulação, é bem comum nas primeiras― Primeiras? Isso realmente só piora cada dia mais― Parece que eles realmente gostaram de você― Ela olha para o arranjo de flores, ainda sorrindo.
Como essa garota consegue sorrir por tanto tempo? Não respondo, e fito o arranjo por mais alguns segundos. ELES. A Ordem. Meu coração acelera, e a imagem do objeto se torna um tanto sombria. Ouço sobre as ordens desde meus primeiros dias no instituto, todos os dias sendo bombardeada com pequenos detalhes que me tornam incapaz de criar uma imagem clara sobre o que quer que eles sejam. Lembro-me das figuras na galeria, seus olhares sobre mim. O aperto em meu peito. Os primeiros contatos com os lideres dessa sociedade maluca tem sido definitivamente perturbadores. Meu corpo estremece ao lembrar-se dos detalhes da simulação, e um peso adicional é colocado ao pensar que tudo foi assistido por essas pessoas misteriosas. Não me sinto triunfante com a aprovação deles, apenas curiosa com o que isso significa. A médica quebra o silencio
― Eu sou Claire, médica e cientista chefe do Instituto― Ela se apresenta, estendendo a mão docemente
―Lizzie― Aperto suas mãos quentes e macias, e não consigo pensar em uma definição da minha posição aqui. Acho que não tenho nenhuma. ― Por quanto tempo eu apaguei?
― O teste foi ontem de manha, e agora são.. ― Ela olha para o relógio de pulso, e o objeto me parece extremamente normal e mortal para o local. Quem diria que meus olhos se adaptariam tão rápido as diferenças entre os dois mundos― Quatro e meia da tarde. Você dormiu um bocadinho
A garota é extremamente doce e simpática, e pergunto-me se a sensação boa que sinto em sua companhia é por sua delicadeza ou fruto de algum feitiço Exponentium. A porta se abre novamente, agora trazendo três figuras que eu não gostaria de ver tão cedo. Maximus, Odera e Erion. Claire fecha o sorriso e assente levemente, dizendo antes de sair do quarto:
―Ela esta com alta, já pode ir para casa.
Casa. Essa palavra deixou de ter significado há muito tempo. Assim que a porta fecha a suas costas, Odera começa
―Lizzie, que bom que já se recuperou― Ela diz com o tom serio, a voz firme como sempre. Ouço com atenção― A Ordem ficou extremamente satisfeita com seu desempenho na simulação, e transmite seus cumprimentos.
Ela olha para o arranjo, escandaloso no quarto claro e simples. Respondo, minha voz saindo mais tremida que o normal
―Eu não venci sozinha.
Ela inspira um pouco pesadamente, e continua, o queixo sempre levantado.
―Sim, nós sabemos. Mas digamos que você fez um bom trabalho em se destacar.
Olho para seus companheiros. Maximus mantém a expressão petrificada, a cicatriz destacada. Já Erion contém um sorriso no canto dos lábios, os olhos brilhosos, poderia até dizer que estava orgulhoso. O general completa
―Parece que a senhorita aprendeu com os erros― Ele diz, a voz trincando o ambiente. Reconheço que ele faz referencia a minha tática utilizada com Marvissa, o ensinamento que eu não havia prestado atenção em meu primeiro dia de treinamento.
Não respondo, apenas assinto com a cabeça. Sem dizer mais nada, os dois deixam o quarto, restando apenas a mim e a um Erion ansioso. As portas se fecham e Erion explode
―Lizzie! Você foi brilhante! Não acredito que derrotou os três, derrotou Marvissa!
Não consigo deixar de rir com a empolgação do homem. Erion é o instrutor mais próximo ao grupo no Instituto, quase como um guia. As últimas semanas mostraram que Erion não é só um professor extremamente inteligente e habilidoso, mas uma figura amigável e suportiva. Ele se aproxima da cama, transbordando empolgação.
―Você tinha que ver a cara deles quando morreram na simulação! Eu precisei me conter, mas no fundo estava delirante― Ele sorri, os olhos alegres contraste com a chuva ao lado de fora― Pronta para voltar para casa?
A referência de nossa ala no Instituto como casa ainda me perturba, mas não digo nada. Acredito que não é realmente possível estar preparada para alguma coisa nesse lugar.
✧✧✧
O ala Oeste estava vazia quando voltei, e agradeci mentalmente. Queria ter um momento sozinha antes de lidar com qualquer interação social. Erion me acompanhou, ensinando-me o caminho da enfermaria até a nossa parte do Instituto. A área de cuidados ficava no quinto andar da ala Leste, ocupando-o todo com quartos, alas cirúrgicas e todos os aparatos necessários para lidar com nós. Não consigo imaginar que tipo de equipamentos eles escondem para lidar com pessoas capazes de manipular a natureza. Acredito que vou descobrir com o tempo.
Erion me acompanha até a grande escada de mármore da entrada, e não consigo deixar de fitar o lustre. Os degraus parecem incrivelmente limpos e lustrosos. Nenhum rastro de sangue. A imagem do corpo de Rosie preso ao candelabro caído no corpo de Cohen me assombra enquanto subo os degraus, mais rápido que o necessário. Percorro os corredores afastando as lembranças da simulação, as paredes destruídas, luzes piscando e o véu da morte nos seguindo. Passo pelo ginásio, vazio. O dia parece pesado, além do temporal que toma forma ao lado de fora, o Instituto parece dormente, silencioso. Acredito que todos devem estar se recuperando, afinal, não é todo dia que se sente a morte tão próxima da realidade como eles sentiram na simulação. Chego ao meu quarto, a sensação de familiaridade me atingindo finalmente. Parece que é algo assim que se deve sentir quando se está em casa. Olho pela clarabóia, que projeta a sombra das gotas de chuva pelo quarto, tornando-o um pouco sombrio. Acendo as luzes, já necessárias devido à escuridão ao lado de fora, ainda que seja fim de tarde. Respiro fundo, fitando as nuvens cinzentas, e sinto que expressam tudo o que se passa em mim. Nuvens, um céu nublado. Sob a névoa da incerteza, o desejo de verdade. O desejo de passar a ver as coisas como elas realmente são, de encontrar o propósito disso tudo e, principalmente, entender meu caminho. Quais devem ser meus passos? Devo apenas deixar-me ir como as gotas de chuva deixam as nuvens, sem realmente saber seu destino? Ou devo ser como um raio, certeiro e mortal em seus objetivos? Acredito que tudo isso seja uma tempestade, e enquanto o céu chora, meu coração permanece chovendo.
✧✧✧
Sigo pelo corredor principal. Sinto-me melhor, meus músculos mais relaxados depois de um banho quente de longos minutos. Hoje tivemos o dia de folga a fim de recuperarmo-nos do dia anterior. Ainda não encontrei nenhum de meus amigos, e pergunto-me como será de fato esse reencontro. Amigos. A palavra soa estranha em meus pensamentos, mas ainda assim adequada. Desde que chegamos ao instituto, todos perdemos os caminhos que pensávamos seguir em nossas vidas, tivemos todas as rotas desviadas, e uma só em comum: O desconhecido. A incerteza nos uniu, e agora a luta contra verdades e mentiras nos mantém próximos. Depois do teste, sinto que estamos mais unidos como nunca, não sei se pela dor que não imaginávamos que sentiríamos ao perdermos uns aos outros, ou pela vontade de vencermos, ainda que não juntos até o fim. Lembro-me da comemoração de todos quando eu voltei, ainda que me recordasse de muito pouco. A felicidade de todos parecida genuína com nossa vitoria. A dele parecida. Não sei como lidar com Adack agora, depois de nossa imensa conexão no jogo, se é que podemos chamá-lo assim. Nossos pensamentos pareciam em perfeita sintonia, e quando ele deixou a simulação, os estilhaços cravados em seu corpo, senti que nossos corações também estavam. O Instituto parece mais vivo agora, acordado. Funcionários transitam pelos corredores, os olhares curiosos usuais agora com traços de admiração. As reações de todos até agora fazem com que eu sinta como se tivesse derrotado todo o mal que existe no mundo. Bem, Marvissa pode não ser todo o mal do mundo, mas com certeza é uma parte dele. Desço a escadaria principal, buscando algum sinal de vida de meu grupo. Sinto-me confortável em roupas diferentes do uniforme usual, mas não deixa de ser estranho andar por ai vestindo roupas tão normais como uma calça jeans e um cardigan branco de lã. Avisto Michael vindo da direção da cozinha segurando uma caixa de... cervejas? Ele me vê e diz, extremamente animado como sempre
―Olha só quem apareceu! Nossa vencedora― Ele celebra, se aproximando de mim e dando-me um abraço apertado. Sorrio com o carinho― Todos estão ansiosos para ver você, não tivemos tempo nem de te cumprimentar depois do teste já que você decidiu tirar uma sonequinha― Ele da um soquinho no meu ombro
Eu gargalho com a leveza com que Michael transforma coisas ruins em piada. Ele veste uma calça jeans e uma camiseta simples. Não consigo deixar de admirar sua beleza,e pergunto-me como seria conhecê-lo no mundo mortal, em um bar com os amigos.
―Onde estão todos? Não vi nenhum de vocês desde que voltei da enfermaria. E de onde diabos vieram essas cervejas?!
Ele gargalha junto comigo, a passa os braços por meus ombros, guiando-me pelo caminho.
―Digamos que essa tenha sido uma cortesia de Erion― Ele aponta para a caixa de cervejas― Venha, estão esperando por você― Nós caminhamos juntos
―Por mim? Para que exatamente? ― Pergunto, ligeiramente confusa
―Oras, bobinha! Para comemorar é claro!
Michael me guia ate uma sala grande de estar, não me lembro de ter visto-a antes. Musica ecoa pelo ambiente iluminado pela lareira e por luzes no teto, deixando o ambiente extremamente aconchegante. Um frio percorre minha barriga, mas dessa vez é diferente. Acho que é felicidade.
Assim que entramos todos olham para a porta, e quando me vêem, quase pulam das cadeiras e sofás espalhados pelo ambiente. Rosie é a primeira a me atacar com um abraço, quase me sufocando. Abraço-a de volta, agradecendo rapidamente por tudo isso ser real e não a imagem de seu corpo sobre o lustre.
―Ah! Sua doida! Como você some assim depois de dar um coro nos mimadinhos reais?! ― Ela pergunta dramaticamente, e rio da referencia a Cohen, Alliot e Marvissa. ― Eu não acredito que você literalmente jogou fogo na cabeça de pimenta.
O entusiasmo da loira me contagia, e logo me vejo cercada por todos, felizes e ligeiramente já bêbados. Todos me abraçam, e consigo sentir o carinho de todos. Azra parece não conseguir se conter, repetindo varias vezes o quanto foi genial a ideia de eletrizar o brutamontes de Alliot. Comprimento todos, mas vejo que falta alguém. O grupo logo passa a focar nas cervejas trazidas por Michael, e o encaro encostado na lareira com uma garrafa na mão. Ele traja uma jaqueta de couro, a mesma do trem, e o sorriso no canto dos lábios como de costume. Caminho até ele, ainda contagiada com a animação do grupo.
―Veja só quem está viva― Ele alarga o sorriso.
―Eu poderia dizer o mesmo, sabia? ―Solto uma risada fraca, tirando um pouco do peso da lembrança de Adack morto. Ele da de ombros.
―Não foi tão ruim assim, foi?
Balanço a cabeça, negando. Ele arqueia as sobrancelhas, o tom brincalhão
―Suas lágrimas disseram o contrário.
Meu rosto queima, e a imagem do telão me vem à mente. Ele viu minha reação a sua morte na simulação. Ok, acho que é a hora de ir embora e não voltar nunca mais.
―Em minha defesa, eu estava bem triste por Rosie ter quebrado o lustre lindo do saguão― Digo tentando disfarçar minha vergonha, e ele gargalha.
Não havia ouvido a risada de Adack antes. Acredito que até então não éramos próximos o bastante para isso. Parece que lutar contra pessoas empenhadas em te matar realmente aproxima as pessoas. Sua postura é leve, mas seus olhos continuam intensos. Nos encaramos por alguns segundos, e a tempestade que até então percorria meu corpo parece ter ganhado alguns raios extras. Não consigo deixar de ficar um pouco sem graça com nossa proximidade repentina, e ele parece um pouco perdido também.
―Cerveja? ― Ele pergunta, indicando a garrafa já vazia em suas mãos.
―Claro! ― Digo, agradecendo pela iniciativa de quebrar um possível clima entre nós.
Ele sorri. Se raios me percorriam antes, não tenho ideia do que passa por meu sangue no momento.
―Lizzie Andromedi― Sinto que meu coração para por um milésimo de segundo ao ouvir meu nome. Ele me entrega uma garrafa, e pega uma para si. O sorriso se alarga, e brindamos― Parece que nós realmente fazemos uma boa dupla.
✧✧✧
Não me lembro de ter rido tantas vezes em tão pouco tempo. O ambiente é animado e leve. Estamos todos sentados nos sofás ao redor de uma mesinha de centro, já abarrotada de garrafas vazias e salgadinhos contrabandeados por Erion e Michael. Zara descrevia sua visão da simulação na cozinha, e chegava a ser cômico ouvir palavras violentas de uma garota tão doce. Parece que eles realmente se divertiram com o teste. Depois, é claro. Michael e Rosie sentam próximos, e discutem sobre quando enfrentamos Cohen
―Fala sério! Vocês nunca venceriam sem minha dica! ― Ele fala, quase como se ofendido. Rosie gargalha
―Ah! Qual é! Se não fosse sua morte extremamente dramática teríamos ganhado tempo! ― A loira contra-argumenta, claramente tentando irritá-lo
―Tempo para que? Pular em mais um lustre no teto?
Ela desiste e ri junto com todos. Entre risadas e brindes, não consigo deixar de encará-lo. Não sei o
que sentir da minha relação com Adack. Desde o primeiro dia, ele sempre se mostrou tranqüilo e confiante, enquanto eu passava vergonha em sua frente repetidas vezes. Adack é quieto e observador, mas ainda assim sabe ser divertido quando necessário. Sua personalidade para mim é um mistério. Nunca fui boa em decifrar pessoas, mas ele parece um desafio a mais. Como quando olhamos para o escuro, nunca sabemos o que estamos vendo, ou se realmente vemos alguma coisa, mas sabemos que tem algo ali. Adack é como a escuridão, intimidador por um lado, mas instigante por outro. Estrelas só brilham no escuro.
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