5. Felizes Para Sempre É Para Otários
— Oni? — Repetiu a senhora Bárbara com uma expressão intrigada, seus olhos brilhando com curiosidade enquanto delicadamente colocava um prato fumegante de canja de galinha na mesa para sua hóspede.
— Sim, fui atacada por um Oni¹ nessa escola que citei — afirmou Regina com um tom de seriedade e, ao mesmo tempo, de fascínio. Enquanto a senhora Bárbara delicadamente servia um chá fumegante, a jovem continuou sua história com uma voz carregada de emoção. — O garoto que derrubou meus livros era um deles. Mas, o que eu disse agora há pouco foi sobre esse Autor onipresente e onisciente, que parece controlar tudo à nossa volta — Regina franziu levemente a testa, esperando a atenção de sua anfitriã, enquanto Bárbara, com um sorriso maroto, deixou escapar uma risada abafada. — Ora, a senhora é uma ótima contadora de histórias, mas não parece ser tão boa para escutar.
— Me desculpe, minha querida — Bárbara se sentou na cadeira ao lado de Regina naquela cozinha, permanecendo com seu sorriso habitual. — Mas é um pouco difícil de acreditar que somos personagens de um livro, que você veio de outro mundo e que esse suposto Autor sádico está brincando com sua cara sem um propósito.
A mais nova bufou, descontente com a situação, mas não pôde resistir ao aroma tentador da canja que repousava à sua frente. Com uma colherada, o sabor divino invadiu sua boca, fazendo-a fechar os olhos momentaneamente, rendendo-se à delícia reconfortante. Enquanto saboreava cada colherada, os pensamentos turbilhonavam em sua mente. Ela estava ciente de que a jornada para escapar das garras do nefasto Autor e buscar a saída do livro seria solitária e árdua. Ninguém parecia acreditar em sua história. No entanto, a presença afetuosa da senhora Bárbara trouxe um bálsamo à sua alma inquieta.
👵
Uma semana se passou desde então. Bárbara continuava preocupada com o sumiço repentino do seu cachorro. Regina se sentia mal em esconder o verdadeiro motivo do sumiço, mas não era como se a ex-cavaleira fosse acreditar que seu cachorro havia se tornado a Morte em pessoa. Ou melhor, a Morte em cachorro.
Ao despertar naquela manhã, Regina passou a descer as escadas, em direção ao primeiro andar da casa. À medida que descia, seu olhar curioso pousava nos quadros de sereias que adornavam as paredes ao redor da escadaria. Já havia algum tempo que sua curiosidade por esses quadros aumentava. A presença repetitiva de quadros de sereias pela casa da idosa provocava uma inquietação em Regina, fazendo-a questionar a razão por trás de tamanha adoração pelas figuras mitológicas. Seria apenas uma predileção estética ou haveria um significado mais profundo, uma história por trás daquelas telas que conectava a anfitriã com o mundo marinho?
Assim que chegou ao andar térreo, ela reparou que a anfitriã estava à porta, exibindo uma expressão aflita ao se deparar com as duas pessoas à sua frente.
— Algum problema, senhora Bárbara? — Regina questionou ao se juntar a ela.
— Minha querida, esses senhores... — Bárbara começou a falar receosa, mas um dos Soldadinhos de Chumbo diante dela a interrompeu.
— Regina Monroe, a senhorita está em custódia em nome da corte de Fantasia. A princesa Jasmine decretou um mandado imediato de sua captura.
Ambos os guardas reais exibiam grandes bigodes e se mantinham em pé com uma única perna, a fazendo se recordar do Saci. Vestiam chapéus vermelhos e altos, acompanhados por fardas da mesma cor. Em suas cinturas, carregavam carabinas presas por fivelas.
Regina arregalou os olhos, surpresa por mais uma vez estar sendo acusada injustamente. Antes que pudesse reagir ou dizer qualquer coisa, um deles a algemou, prendendo suas mãos nas costas e puxando-a pelos braços. Bárbara, preocupada, tentou intervir, mas a garota fez um sinal com a cabeça, tranquilizando-a com um olhar decidido que parecia dizer: "está tudo bem".
Mas "bem" era algo que não estava. Como poderia Regina convencer a princesa Jasmine de que nada teve a ver com a transformação do noivo dela em sapo? Com essa preocupação martelando em sua mente, a jovem foi bruscamente jogada na cabine traseira de uma carroça, dessa vez conduzida por um cavalo de verdade... Ou quase isso, uma vez que se tratava de um cavalo-marinho-terrestre.
Os dois Soldadinhos de Chumbo embarcaram na parte da frente da carroça. Com um galope vigoroso, o veículo adentrou o verdejante caminho da floresta Esmeralda. À medida que se afastavam da cidade faroeste, os olhares dos habitantes de Fantasia se voltavam curiosos para a carroça em movimento.
Nenhuma criatura obscura da floresta se atreveu a cruzar o caminho dos soldados do Reino, porém, apesar disso, a loira tinha a impressão de estar sob a vigilância de olhares ferozes observando a carroça do lado externo.
— Eu...!! Escuta!! Cuidado com a...!
Regina foi arrebatada pela audição de uma voz distante, um clamor que o vento transportava em sussurros. Inclinando-se com curiosidade, ela pressionou sua orelha contra o vidro da janela da carroça, ansiosa por vislumbrar a fonte daquele chamado, mas a distância mantinha o remetente enigmático. Entre os galopes ritmados do cavalo-marinho que impulsionava a carruagem, partes da mensagem se dissipavam, engolfadas pela distância e pelo incessante ritmo dos deslizes do cavalo pela terra, semelhante a uma ligação telefônica repleta de chiados e desconexões, fazendo com que as palavras se fragmentassem como ecos distantes, escapando da compreensão de Regina.
— Vá direto atrás da...!! Estará segura nas Páginas em Branco! E pode confiar em... Me solta! O que está fazendo?!
Uma onda de perplexidade atingiu Regina. A voz evocou mistério e confusão, deixando-a completamente desorientada. A fluência suave e carregada de urgência cessou abruptamente, deixando a prisioneira em um turbilhão de pensamentos. Enquanto tentava desvendar o enigma, questionou se a mensagem era dirigida a ela e quem poderia ser a emissora. Cada palavra capturada parecia um quebra-cabeça sem solução, envolta em um nevoeiro de ininteligibilidade.
Os minutos se passaram. E logo em seguida viraram horas. Até que a carroça finalmente parou. Um dos Soldadinhos de Chumbo foi até a parte de trás da carroça, despertando Regina de seu sono profundo. Foi ao despertar assustada que se deu conta que estava babando. A menina de calça de couro e jaqueta jeans foi levada para fora do veículo de tração animal.
Regina se deu conta que estava em um local repleto de uma neblina densa, mas a visibilidade do enorme castelo Alvarez diante dela era bem perceptível. Conforme ela e os Soldadinhos avançavam pela ponte de madeira que separava o local de onde estavam da entrada do castelo, a estrutura fortificada se tornava cada vez maior e mais próxima. Abaixo da ponte havia um lago com quatro crocodilos prontos para atacar o primeiro que tivesse a infelicidade de cair da ponte.
Para a sorte do grupo de Regina – E para o azar dos crocodilos –, apesar de velha a ponte sustentou perfeitamente a passagem do trio. Após passarem pelas imensas muralhas que fortificavam o enorme castelo os três adentraram a construção pelas suas enormes portas de madeira.
Logo no saguão principal do castelo Regina avistou um rosto reconhecido. Senhor Jerônimo, o gnomo mal-humorado do qual havia encontrado quando chegou em Fantasia, caminhava em direção ao jardim do castelo com sua enxada apoiada em suas costas. O pigmeu lhe lançou um olhar fuzilador, antes de sumir de sua vista.
Ainda no saguão, enquanto caminhava, a moça também notou a presença de alguns cavaleiros da realeza trajados com suas armaduras, dançando de um lado para o outro junto com uma bailarina de tutu rosa. Algo do qual Regina acreditou ser um ensaio para algum flash mob. Realmente a paz momentânea de Fantasia não estava fazendo bem para a cabeça dos cavaleiros.
Os Soldadinhos guiaram Regina escadarias acima, passando por um longo corredor de carpete vinho até que chegasse na sala da atual soberana. Adentrando a sala comtemplou o seu extenso tamanho, com lustres sobre sua cabeça. Estátuas de hienas e rinocerontes ao canto da sala, e ao seu fundo um enorme trono dourado.
Com as costas apoiadas no assento e as pernas estendidas sobre uma mesa de madeira ao seu lado, a princesa Jasmine emanava um olhar penetrante em direção a Regina, um olhar repleto de um poder letal contido. Com seus vinte e um anos, tonalidade de pele intermediária, com matizes de castanho e marrom, a beleza da jovem era realçada por brincos de diamantes, e apesar da aparência relaxada e despojada, a imponência não era disfarçada pelo seu olhar. Os Soldadinhos curvaram-se em cumprimento, empurraram as costas de Regina, que caiu de quatro no chão, e saíram da sala, fechando a porta às suas costas, deixando a princesa sozinha com a forasteira de um mundo desconhecido.
— P-Princesa... Deixe que eu me explique... — Regina ergueu a cabeça, se ajoelhando no chão próxima a princesa.
— Cale-se, criatura! Então quer dizer que transformou meu noivo em sapo?!
— Não fui eu! Foram as bruxas! Pelo menos, eu acho...
— Não me importo! — Jasmine esbravejou. Regina se perguntou o que estaria havendo, afinal Jasmine era conhecida como uma princesa muito amável e compreensiva. Bem o oposto daquela mulher em sua frente. — E agora o que farei? Como roubarei o reino de Charles uma vez que ele não está aqui para assinar os papéis do casamento, onde eventualmente iria fazer com que parecesse um "acidente" quando eu o matasse?!
— Como disse?
A princesa deu um sorriso macabro. Ela tirou as pernas de cima da mesa, e então começou a girar seu trono dourado como uma criança hiperativa. Foi só então que a loira se deu conta de que o trono possuía rodinhas. Quando a descendente do trono das Arábias parou de girar, tornou a prosseguir com sua fala:
— Acredita em "felizes para sempre"? Pois eu não. Ao menos não no conceito que tentam pintar por aí. Acha que eu iria mesmo me submeter a casar com um filhinho de papai só pelo fato do meu reino das Arábias estar em colapso? Para os súditos eu estaria feliz da vida sendo a princesinha de Fantasia, estando sempre a sombra daquele idiota quando herdasse o trono dos pais dele. Mas eu quero bem mais do que isso. Quero Fantasia apenas para mim! Por isso planejei matá-lo após nos casarmos. Mas agora...
Jasmine ficou cabisbaixa, não por saudades de seu noivo que se tornou sapo, mas sim pelo fato de seus planos terem ido por água abaixo após ele desaparecer e ser transformado em sapo.
— Alguma bruxa colocou os pais de Charles, os atuais rei e rainha de Fantasia, em um sono profundo. Como soube que o único antidoto é um beijo de amor verdadeiro, e como um não pode despertar o outro por estarem ambos inconscientes, o reino precisa de um novo líder. Mas Charles não está aqui. E eu não tenho direito ao trono até nos casarmos.
"Irei pensar no que fazer. Porém, você pagará caro por ter entrado em meu caminho. Será sentenciada a pena de morte em uma execução pública amanhã ao meio-dia, sua filhote de bruxa".
Regina engoliu em seco. Não teria como persuadir a princesa para que a deixasse viver. Aquela vaca não possuía metade das virtudes que Regina acreditava que tivesse quando havia lido o livro. "Ao menos no universo de Fantasia a execução é feita pela guilhotina. Não sentirei nada. Ainda bem que não queimam as bruxas em uma fogueira como na Europa Medieval", pensou a garota, buscando um reconforto em meio a situação desesperadora. Teve que se apegar a isso para o desespero não tomasse conta de si, uma vez que achavam que era uma bruxa.
— Sabe, planejava lhe executar na guilhotina. Mas, me veio um lampejo na cabeça agora. Que tal se queimarmos você viva, querida? — A princesa deu um sorriso maligno, e então apertou um botão vermelho em cima da sua mesa.
Um Soldadinho adentrou a sala para levar Regina. A loira ficou apavorada. Esqueceu-se completamente da onisciência do Autor que podia ler os seus pensamentos, e dessa forma usou isso contra ela. Foi levada para fora da sala a força, enquanto a princesa continuava a gargalhar.
Regina foi direcionada até as masmorras do castelo, para que aguardasse sua sentença de morte no dia seguinte. Aquela prisão escura e tenebrosa, abrigada no subterrâneo do castelo, era composta de várias celas. Nas quais estavam todas preenchidas por mulheres que encaravam a menina de cabelo loiro. Olhares de bruxas maquiavélicas!
A jovem foi trancafiada em uma cela ao fundo da dungeon². O local estava bem escuro, mas ela notou que não estava sozinha naquela cela. A pessoa emergida na escuridão caminhou até próxima da grade.
— Nos encontramos novamente — A mulher misteriosa disse, no exato momento em que a pouca luminosidade que adentrava na prisão pelas frestas da parede iluminaram seu rosto em meio a penumbra.
— Bridge?! — Regina exclamou de surpresa.
Ora, a bruxa mais maquiavélica de Fantasia havia finalmente sido presa e estava diante dela! A mesma que supostamente teria transformado o príncipe Charles em sapo. Aquela que colocou o rei e a rainha em um sono profundo. A responsável por Regina estar presa.
— Um mero descuido meu e acabei sendo pega. Ao menos fico satisfeita de saber que não irei morrer sozinha — Bridge balançou os ombros, em relação as demais bruxas que haviam sido presas de igual forma.
As bruxas a escutaram, lançando murmúrios de xingamentos de dentro de suas respectivas celas. Não era atoa que odiavam Bridge e ela era uma bruxa renegada.
— Você pode usar os seus poderes para escapar. Por que não faz isso? — Regina questionou, sem se importar o quão assustadora e perigosa Bridge soava. Afinal, na atual situação ela era o menor de suas preocupações.
— Essas algemas drenam os nossos poderes — Bridge ergueu os pulsos, mostrando a Regina as algemas das quais prendiam suas mãos. Apesar disso, para a loira pareciam apenas algemas comuns. — São feitas de um composto extremamente tóxico para as bruxas.
— Qual?
— Cacau. O mesmo composto utilizado para fazer chocolate. Sim, o maior veneno para as bruxas é o chocolate, afinal todas sabemos que ele é feito de amor. Aquilo do qual mais odiamos.
— Por que está contando para ela nosso ponto fraco Bridge?! — Uma bruxa gritou de sua cela.
— Ora, se por acaso ela conseguir escapar, é crucial garantir que alguém esteja preparado para eliminar as outras bruxas que ainda estão em liberdade —, proferiu Bridge, suas palavras mergulhadas em sarcasmo. No entanto, sua gargalhada logo se desvaneceu em meio a uma tosse intensa, interrompendo o fluir do momento. A ausência da bombinha de asma, tão necessária para Bridge, tornava-se visivelmente perceptível.
— Sei que não temos nada em comum, mas eles planejam nos matar amanhã. Todas nós! — Disse Regina, encarando a bruxa diante de si. — Podemos nos unir e tentarmos escapar. Ou podemos ficar sentadas aguardando a morte nos levar. O que me diz?
Com um gesto decidido, Regina estendeu a mão em direção a Bridge, cujo olhar juvenil a estudou por breves momentos, examinando as entrelinhas das possibilidades. Um sorriso enigmático curvou os lábios da bruxa, enquanto ela correspondia ao gesto, apertando a mão de Regina. No exato instante em que seus dedos se encontraram, Regina percebeu o tamanho impressionante das unhas da bruxa, um detalhe que até então havia escapado de sua atenção.
— Simpatizei com você. Quando escaparmos, irei te matar por último — Falou Bridge em meio a sorrisos. — Vamos sair daqui juntas.
Entretanto, justamente nesse momento, um guarda de semblante sério penetrou na masmorra, sua armadura ressoando com cada passo determinado enquanto percorria o corredor da prisão com propósito, rumo à cela que Bridge e Regina ocupavam. Com a destreza de quem conhecia cada trincheira das passagens, o homem manipulou as chaves e abriu a porta da cela, arrancando Regina do torpor de confusão que a dominava, deixando-a perplexa diante do desenrolar súbito dos eventos.
— Bridge, você está solta. Venha comigo.
Com olhos arregalados de apreensão, Regina fixou seu olhar assustado na bruxa. Bridge, por sua vez, estreitou levemente os olhos antes de avançar na direção da jovem, seus braços se estendendo em um abraço firme e acolhedor. A surpresa de Regina transformou-se em um calmo alívio quando ela sentiu o calor reconfortante desse abraço, um sorriso imenso desabrochando em seu rosto diante desse gesto inesperado. De repente, as complexas nuances da situação se desdobraram: talvez Jasmine fosse uma princesa mais sombria do que ela imaginava, mas, em contrapartida, Bridge não era tão malévola quanto parecia. A certeza de que Bridge não a abandonaria, especialmente depois de terem concordado em enfrentar juntas àquela situação, tomou forma e trouxe um fio de esperança no turbilhão de incertezas que as envolvia...
— Se fode aí, otária — Bridge sussurrou no ouvido da garota, soltando-a e saindo da cela em seguida.
Bridge começou a gargalhar, enquanto as demais bruxas a olhavam com desprezo e inveja. A cela de Regina foi trancafiada novamente, deixando-a sozinha no local. Bridge foi se afastando, acompanhada do guarda, onde aos poucos foi desaparecendo na escuridão da masmorra. Ao ponto que Regina só conseguiu escutar a risada da bruxa se distanciando, seguida por uma tosse incessante.
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¹ Oni: Criatura da mitologia Japonesa. Normalmente possuem chifres e pele vermelha. Frequentemente torturam pecadores no inferno, mas também ameaçam pecadores nesse mundo. O garoto que Regina encontrou na escola no capítulo anterior possuía a forma de um Oni.
² Dungeon: Palavra inglesa que tem por significado Calabouço ou Masmorra.
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