20. Estou carregando sua prole
Charlotte apoiou a cabeça nos braços cruzados, fechando os olhos sem resistência quando sentiu a névoa de sono começar a tomar conta de seu corpo. As vozes e risadas ao seu redor diminuíram ao passo que se entregava a inconsciência, seus músculos relaxando e sua boca abrindo-se levemente como sempre acontecia quando começava a dormir. Mais alguns segundos e nem lembraria mais de onde estava, na cozinha barulhenta do novo apartamento de Ray após um jantar espalhafatoso de ação de graças, porém seus planos foram frustrados quando sentiu algo ser jogado em seu rosto.
- Mas que...
Parou, levantando o rosto após o susto, levou a mão à bochecha sentindo algo grudento e quando olhou para os seus dedos encontrou resquícios do molho de framboesa de Piper. Olhou irritada para um Manchester que gargalhava abertamente, ele havia estragado seu sono e ainda tinha a audácia de rir!
- Estou literalmente vendo toda a sua vida agora passar diante dos meus olhos. - Piper comentou, balançando as pernas de onde estava sentada em cima do balcão. - E te adianto que não tem nada de interessante.
Henry se inclinou em direção à Charlotte e fingiu sussurrar.
- Você pode lançar um raio laser nele antes dele fugir.
- Ela consegue fazer isso? - Ray parou a risada, olhando meio receoso para a Page.
Charlotte suspirou irritada e se levantou da mesa, não conseguia compartilhar do humor deles quando seu corpo ainda pesava de cansaço. Jasper a encarou confuso, ela não era de deixar passar uma oportunidade de deixar Ray assustado.
- Você está bem?
- Estou, Jasp. - murmurou em resposta, se afastando do grupo em direção ao corredor dos quartos. - Só estou com sono.
- Você sempre está com sono nesses dias. - Piper afirmou, olhando-se na câmera frontal do celular. - Quase não saímos nesse recesso porque você não consegue ficar mais de dez minutos em um lugar sem dormir.
- Isso não é verdade. - cruzou os braços, sua voz soando muito defensiva.
- Ah, mas é, e você sabe disso.
Revirou os olhos para o tom prepotente da loira, então deu as costas aos seus amigos e foi à procura de um quarto vazio. Estavam todos reunidos para a ação de graças, havia chegado há poucos dias e só quando pisou os pés na cidade é que percebeu a imensa saudade que sentia da loucura de todos. Suas mães viajaram para uma nova lua de mel e ela estava hospedada na casa dos Hart onde eles levavam as festividades muito a sério, o Natal com toda a certeza seria grandioso.
Empurrou a porta atrás de si, retirando as botas e se jogando de barriga para baixo sobre o colchão, resmungou de dor quando sentiu o baque machucar seus seios. Virou de lado ainda os sentindo sensíveis, então resolveu deitar de costas e piscou lentamente quando o mundo dos sonhos veio puxá-la novamente. Porém antes que conseguisse dormir, uma batida tímida na porta a chamou a atenção, virou o rosto para o lado e encontrou a cabeça de Henry a observando.
- Posso entrar?
Assentiu em afirmação a pergunta do amigo, observando cada movimento dele enquanto o mesmo entrava e fechava a porta antes de se aproximar para deitar ao seu lado.
- Você está bem? - o Hart soou preocupado, seus olhos brilhavam pela luz da lua que entrava pela janela aberta.
- Por que todo mundo está perguntando isso? Eu só estou um pouco cansada e quero dormir, é algo normal depois do banquete que o Schwoz fez.
- Eu nunca vi você comer daquele jeito. - A provocou rindo, recebendo em troca um nariz franzido. - Sério mesmo, eu sei que você come muito, mas hoje parecia que estava na sua última refeição da vida.
- Eu não comi tanto assim. - se defendeu, mas não podia negar quando observava a barriga inchada. - Não tenho culpa do Schwoz ser um ótimo cozinheiro.
- Aquela torta de pêssego estava realmente muito boa.
Charlotte sentiu sua boca salivar ao lembrar da sobremesa, gemeu inconformada antes de beliscar o Hart no braço.
- Ai! Por que você fez isso?
- Porque agora eu estou com vontade de comer torta e a culpa é toda sua.
- É só você se levantar e não me beliscar. - falou indignado, massageando o local dolorido.
Charlotte riu para o drama dele, ela não possuía mais uma super força para que tenha machucado tanto, na verdade não possuía nem mais raios lasers para atirar porque havia desativado seu chip. A Bolton decidiu voltar a viver como sempre, claro que sentiria saudade das facilidades em ser metade robô, mas havia chegado tão longe sendo apenas humana e decidiu que ficaria assim por enquanto.
- Eu não quero levantar. - com a voz arrastada rolou para ficar de lado e de frente para ele. - Aqui está tão confortável e eu realmente estou com sono.
- Você não está bem.
A afirmação dele a irritou, desde que chegara dizia que estava bem, mas parecia que nenhum deles queria acreditar. Estava começando a pensar que deveria ter passado as festas de fim de ano em Harvard.
- Quantas vezes eu vou ter que dizer que estou bem? Eu não quero brigar, Hen. - afirmou, se aproximando dele e relaxando quando sentiu a mão do Hart em sua cintura. - Só estou cansada porque os últimos meses foram muito pesados, eu tive tanto pra fazer que nem lembrava de comer direito. A última folga que tive foi quando você foi me visitar.
Sussurrou a última parte, seus olhos já fechados a impedindo de ver a expressão do amigo. Os flashes de memória ainda vinham rápidos em sua mente toda vez que mencionava a visita; a festa, o jogo, as incontáveis bebidas experimentadas, um quarto escuro, mãos, pele, sussurros, gemidos, uma ressaca insuportável e uma vergonha que os acompanhou por semanas.
- Então, hum... - tossiu sem jeito, Charlotte riu ao escutá-lo. - Você fez isso de propósito, não foi?
Abriu os olhos para encontrá-lo a encarando de maneira acusadora, deu de ombros, um sorriso provocador ainda brincando em seus lábios.
- Você não quis me trazer um pedaço de torta.
Henry bufou e se afastou rapidamente, ela nem se moveu, sabia muito bem que ao sair do quarto arrastando os pés, ele iria buscar um pedaço para ela, não duvidava nada dele trazer tudo o que sobrara e foi exatamente o que aconteceu minutos depois.
¤ ¤ ¤ ¤ ¤
Henry observou Charlotte de longe, ela estava parada na porta da cozinha de sua casa, abanando-se com a mão enquanto respirava profundamente. Olhou ao redor notando que era o único que percebia algo de errado na Bolton, Piper ria da discussão de Jasper e Ray, seus pais conversavam com alguns amigos no sofá e Schwoz tateava os degraus da escada à procura de algo.
Andou apressado em direção à ela quando a viu correr para longe da vista de todos, a encontrou vomitando em um canteiro de flores. Se aproximou, porém Charlotte esticou a mão que ele parasse onde estava, iria continuar parado, mas desistiu quando a escutou soluçar e cair ajoelhada ao chão.
- Charlotte, o que está acontecendo?
A preocupação era perceptível em sua voz, ajoelhado ao lado da melhor amiga a puxou pelos ombros contra seu corpo, não se importando com a boca suja dela ou o cheiro de azedo que vinha das flores onde a mesma havia vomitado. Charlotte apertou sua blusa entre os dedos, escondendo o rosto em seu peito onde Henry podia sentir as lágrimas atravessando o tecido da blusa.
- Char. - a chamou, acariciando seus cachos enquanto a sentia tentar controlar o choro. - Estou aqui, não importa o que tenha acontecido, estou aqui com você.
Não soube o que pode ter falado de errado, porém no segundo seguinte ela o empurrou para longe e se pôs de pé. Obervou sem reação uma Charlotte sair pisando duro para longe dele em direção à lateral da casa, seu corpo reagiu antes dele e quando notou já corria atrás da amiga que se encontrava olhando para os dois lados da calçada como se estivesse se decidindo para onde ir.
- Charlotte!
Ela o encarou assustada e logo se pôs a correr para a direita, descendo a rua para longe dele. Henry acelerou a corrida, detestava ela ser mais rápida do que ele, a sorte era que a Page parecia estar tendo cuidado por onde andava e ele a alcançou mais rápido do que esperava.
- Charlotte Marie Page!
A segurou pelo braço, mas ela tentou se desvencilhar o desequilibrado, Henry caiu e a puxou junto, o gramado de algum vizinho suavizou a queda e Charlotte caiu por cima de seu corpo com os olhos fortemente fechados. Seus peitos subiam e desciam em um ritmo acelerado, a Page fez menção de rolar para longe, mas as mãos fortes de Henry a prenderam pela cintura contra seu corpo. Desde a marcante noite eles não haviam chegado tão perto um do outro, ter seus corpos colados daquela forma fez partes suas reagirem de maneiras que fizeram suas bochechas arderem.
- Me solta.
Ela pediu, não, praticamente suplicou e quando Hart notou os olhos castanhos tão brilhantes se encherem novamente de lágrimas, sentiu seu coração apertar por ela.
- O que está errado, Char?
Charlotte negou com a cabeça, os lábios prensados e os olhos inquietos. Henry apertou levemente sua cintura a escutando soltar um trêmulo suspiro. A Bolton inspirou fundo e soltou o ar lentamente com o rosto virado para a esquerda, em seguida o encarou de uma maneira tão séria que Henry sentiu seu corpo tensionar.
- Estou grávida.
Piscou rapidamente, sua mente congelando antes de uma risada irromper por seus lábios. Charlotte fechou a cara, fazendo seu riso sumir lentamente até que um silêncio caísse pesado sobre os dois. O Hart abriu e fechou a boca, perdido em palavras que não conseguia formular em uma frase.
- Não é uma suposição ou um achismo, eu realmente, realmente, estou grávida.
As mãos de Henry soltaram a cintura de Charlotte, caindo moles ao lado de seu corpo, sua mente ficou em branco e o mundo pareceu girar ao seu redor, em poucos segundos escutava a voz de Charlotte ao longe e uma densa escuridão o puxou.
¤ ¤ ¤ ¤ ¤
Charlotte passou um algodão encharcado de álcool por baixo do nariz de Henry, ele estava deitado no sofá da sala de estar do dono da casa onde haviam caído no gramado. O Hart se remexeu inquieto, o olhar perdido quando finalmente abriu os olhos, Charlotte suspirou aliviada quando o viu recobrar os sentidos. Vinha fazendo muito isso, suspirar, detestava suspirar, porém as palavras lhe faltavam desde que havia feito os testes no dia anterior e comprovado a suspeita aterrorizante.
- Oi.
Disse quando os olhos de Henry dispararam para a sua barriga, pelo visto o inchasso da noite de ação de graças só iria aumentar. Seu amigo sentou lentamente, ela se colocou ao seu lado, cruzando as pernas e ficando de frente para ele. Henry apoiou o cotovelo no encosto do sofá, a lateral da cabeça apoiada na mão fechada em punho enquanto seus olhos desviavam de seu rosto para a sua barriga incontáveis vezes.
- Fala alguma coisa, Hen.
Pediu ansiosa, apertando sua mão e tentando não deixar a mágoa a dominar quando ele se afastou de seu toque, porém Henry esticou o braço e tocou hesitantemente sua barriga, os dedos adentrando a blusa e tocando a pele nua. Charlotte puxou a barra para cima permitindo que ele visualizasse melhor o pequeno inchaço que iria crescer bastante sob a pele escura.
- Tem um bebê aí dentro.
Uma risada incrédula escapou dela, pensou em inúmeros cenários onde ele teria incontáveis reações, mas era tão a cara de Henry reafirmar o óbvio que não conseguiu conter o riso. Baixou a blusa quando ele retirou a mão, a peça levemente folgada era bem diferente do que estava acostumada a usar, porém deveria se acostumar com peças mais leves por algum tempo. Franziu a testa meio decepcionada, o vestido lindo que usava em Distopya provavelmente não iria mais servir por um bom tempo.
- O que foi?
A voz preocupada de Henry a fez focar sua atenção nele, abanou a mão como se não fosse nada e levantou rapidamente do sofá. A velocidade com que ele seguiu seus passos e a segurou pela cintura foi surpreendente.
- Sua super velocidade voltou?
- Você tem que parar de pular desse jeito.
A clara exasperação dele a fez revirar os olhos dramaticamente.
- Não comece, não tem nem cinco minutos que você sabe da existência dessa criança e já quer ficar dando um de super protetor?
O Hart abriu a boca indignado e seus protestos foram impedidos quando o dono da casa apareceu na sala. Era um senhor de cabelos crespos e brancos, ele possuía um sorriso acolhedor e ao adentrar o cômodo com os braços abertos e uma óbvia alegria ao vê-los juntos, Charlotte sentiu uma vontade imensa de apertar suas bochechas.
- Fico feliz por vocês terem se acertado.
- Obrigada por nós deixar usar sua sala. - agradeceu, se afastando de Henry para apertar a mão do senhor.
- Não há problema algum, há tempos não ria tanto. - garantiu, soltando uma leve risada ao ver a confusão no rosto de Henry.
Após se despedirem do senhor Philip, começaram a fazer seu trajeto de volta para a casa dos Hart. Charlotte cruzou os braços, suas mãos passando por sua pele com o intuito de se esquentar quando um vento frio passou por eles. Os dois estavam calados, tinham tanto o que conversar e acertar, tantos planos e cronogramas para fazer e pessoas a quem contar que a Page sentiu como se estivesse submersa em um mar de confusão.
Parou seus passos, fechando os olhos e apertando os próprios braços, o silêncio de Henry a deixava insegura, a situação toda a deixava insegura, estava tudo tão fora de seu controle e isso não era o seu normal. Sentiu um nó se formar em sua garganta, o nariz pinicando em prelúdio a novas lágrimas, acreditava que nunca chorou tanto em sua vida, talvez só quando pensou que Henry estava morto. A possibilidade de ter que passar por tudo sozinha caso algo acontecesse com seu melhor amigo foi o estopim, em milésimos seu rosto era molhado novamente por lágrimas e foi puxada para os braços do Hart.
- Você não está sozinha. - sussurrou em seu ouvido, em momentos como aquele era reconfortante ter alguém que a conhecesse tão bem. - Eu estou aqui, Char, não importa que eu tenha que repetir durante todos os dias pelo resto de nossas vidas. Eu não vou sair do seu lado, na verdade eu acho que você vai ter que implorar pra eu sumir. - a risada veio abafada e embargada, porém foi o suficiente para se sentir mais leve. - Ei.
Afastou a cabeça do pescoço dele, o encarando nos olhos, levou a mão ao coração de Henry, as batidas constante a confirmando de sua presença. Um sorriso carinhoso surgiu em seu rosto quando sentiu os lábios do Hart em sua testa.
- Ei.
- Vamos conseguir. - garantiu, parecendo curiosamente animado.
- Vai ser uma loucura.
- Não seríamos nós sem um pouco de loucura.
Riu quando ele lhe mandou uma piscadela.
- Não, não seríamos nós.
Teve que concordar, se afastando para que voltassem a caminhar, tentou não focar em como seu coração acelerou quando Henry pegou sua mão na dele e entrelaçou seus dedos.
- Temos uma família imensamente barulhenta e dramática pra contar a novidade.
O olhou de soslaio, Henry parecia prestes a pular enquanto andava, resolveu deixar para conversar sobre tudo o que iria acontecer durante e depois da gravidez para mais tarde. A animação dele a deixava mais calma.
- Podemos deixar pra outro dia? - pediu, sentia novamente seu corpo pesar em cansaço. - Eu tive que ficar do lado de fora porque o perfume da sua mãe é muito enjoativo.
- Por isso que você vomitou.
- E eu quero dormir, mas primeiro comer porque estou morrendo de fome.
- Acabamos de comer. - a lembrou, um pouco assustado. - E você não comeu pouco. Na verdade comeu por todo mundo.
- Estou carregando seu filho e se ele for igual a você vai ser um esfomeado. - rebateu impaciente, o vendo levantar a mão livre em rendição.
- Então vamos pra sua casa e eu faço algo. - propôs, soltando suas mãos e passando o braço por sombseusros antes de dar meia volta e seguir por outro caminho. - Que tal uma torta?
- Não quero mais comer nenhuma torta doce. - torceu o nariz tentando nem lembrar do gosto do doce. - Quero batatas fritas.
- Batata frita não é jantar, Charlotte.
- É claro que é! - exclamou indignada o fazendo gargalhar. - Com vários molhos e pra não dizer que não sou saudável podemos tomar um suco.
- Só vou aceitar porque...
- Estou carregando sua prole. - completou, com um sorriso excessivamente doce que o fez rir.
- Você vai usar isso como desculpa por meses, não vai?
- Não entendo porque você está insinuando isso, nunca tiraria vantagem de você. - fingiu não notar quando ele se engasgou levemente e continuou sua fala. - Além do mais eu estou sendo praticamente uma incubadora, nem preciso tirar uma vantagem que já tenho.
- Escutou, meu bebê? Sua mãe é um pouco...
- Olha o que vai falar. - tentou parecer ameaçadora, mas era impossível quando escutava Henry falar com a cabeça inclinada em direção à sua barriga.
Não escutou o que ele falou já que percebeu que eles nem chegaram a falar sobre os prós e contras de ter um bebê, principalmente quando ela estava morando em Massachusetts e ele se encontrava em Delaware no início de um curso de Botânica. Suas vidas já estavam virando de cabeça para baixo, mas tentaria deixar as preocupações para depois, naquela noite ela iria se entupir de batatas fritas tentando não escutar as reclamações de Henry enquanto os dois assistiam comédias românticas baratas.
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Chegamos no 20! Amo números pares...
Olá, pessoas, sumida estou, mas bateu inspiração e saudade e quis trazer algo para vocês. Obrigada a todos que ainda estão lendo, se cuidem muito e ignorem os ignorantes.
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