02. Também não queria que você tivesse me perdido
Charlotte olhava por trás das cortinas, dentro das caixas e panelas, deitava no chão para procurar embaixo do sofá e dos outros móveis, colocava a cabeça para fora da janela a fim de ver pelo parapeito, mas por fim concluiu que ele não devia estar em nenhum lugar daquele apartamento. Se jogou sentada no sofá, levando às mãos ao rosto e tentando abafar um grito de frustração, seu gato ingrato havia sumido. Tinha voltado a poucas horas do veterinário com ele, onde ele havia feito uma pequena cirurgia para retirar um clipe que havia engolido, até o momento a Page não fazia ideia de como ele havia conseguido aquele feito. O caso era que eles voltaram para casa e ela foi dormir um pouco, seu gatinho estava ainda sob efeito de anestesia então deveria demorar um pouco para voltar ao normal, mas ele voltou antes dela acordar e pelo visto achou uma ótima ideia dar uma volta longa sem avisar sua dona. Não que ela esperasse que ele avisasse, afinal, ele era um gato, mas podia ter tido pelo menos a consideração de ter esperado que ela acordasse antes de sumir pelo mundo.
- Gato ingrato, faço tudo por ele e ele some na primeira oportunidade.
Resmungou irritada, mas seu coração apertava ao pensar na possibilidade dele ter sumido ainda em fase de recuperação, ele poderia estar machucado, morto, ter sido sequestrado ou ter fugido com uma gangue de gatos de rua que pretendem dominar o mundo escravizando os humanos através de planos malignos. Ok, ela estava passando tempo de mais com Jasper, as teorias loucas dele estavam começando a impregna-lá. Charlotte tombou a cabeça para trás, sentiu o encosto duro de seu sofá velho apertar sua nuca, olhava para o teto que começava a dar sinais de infiltração e tentou não pensar no quanto aquilo iria custar. Era muita sorte ter encontrado um bom apartamento, sendo bastante otimista, naquela região, perto de seu emprego e do centro artístico da cidade. Soltou o ar de forma ruidosa pela boca e se pôs a pensar por onde seu gatinho andaria, não duvidava nada de que ele estaria roubando a comida de alguém ou se fazendo de pobre coitado para conseguir um carinho. Ele sabia ser bem manipulador quando queria, o que era a todo momento.
- Só volta pra casa, Felix. Não me faz ter que te procurar pelas ruas, por favor.
Pediu, a voz em um tom lamentoso que ela sabia que não iria servir de nada. Esperou por mais alguns minutos e como viu que ele não iria aparecer, resolveu sair para procurá-lo. A rua de seu prédio era bastante movimentado, o que tornava ainda mais perigoso a fuga de seu gato. O chamava alto, procurando em cada lata de lixo, espaços escondidos entre prédios, becos estranhos e por baixo de bancos pelos pontos de ônibus que passava. Andou por mais de duas horas, a blusa já grudando em suas costas por conta do suor, que por sinal escorria por seu pescoço. Se sentia suja e extremamente cansada, a vontade que tinha era mandar o felino para passar férias com sua mãe em Ioha. Estava quase desistindo quando avistou um gato cor caramelo com patinhas brancas, deitado no colo de alguém que ela nem fez questão de olhar o rosto, em uma parte da grade de incêndio que dava entrada para a janela de um apartamento no terceiro andar. Abriu um imenso sorriso de alívio quando viu a manchinha branca que rodeava o olho direito do gato, era mesmo Felix.
Entrou no beco entre os prédios e se pôs a subir os degraus da escada de ferro o mais rápido que pôde, quando chegou ao terceiro andar, deu de cara com a última pessoa que queria ver pelo resto de sua vida. Ele abriu um sorriso de lado que a fez querer dar meia volta e sair o mais rápido possível da sua frente, mas não podia, ele tinha o seu gato e ela só queria ir para casa com ele.
- Ele fugiu.
Não sabe porque disse aquilo, era óbvio que ele havia fugido. Com uma voz que deixava na cara o quanto ele estava adorando aquela situação, deu voz aos pensamentos dela.
- É meio óbvio que ele fugiu, mas gosto de pensar que ele veio atrás de mim.
Revirou os olhos dramaticamente e esticou os braços, abrindo e fechando as mãos para ele lhe entregar o gato.
- Sinto muito pelo seu ego gigantesco, mas ele nem sentiu sua falta. - rebateu, tentando soar o mais educada possível. - Agora, será que dá para devolver o meu gato?
- Nosso gato. - a corrigiu, Charlotte teve vontade de arrancar o felino dos braços dele, mas Felix parecia muito bem acomodado.
- Meu gato. - falou, mais por birra do que por outro sentimento. Como se ela pudesse se enganar. - Não sei se você se lembra, mas você foi embora e deixou ele comigo.
- Não sei se você se lembra, mas não era para ser por muito tempo. - afirmou, parando o carinho que fazia na cabeça de Felix. O gato o olhou ofendido e virou o rosto, mas sem sair de seu colo.
- Não vou ter guarda compartilhada com você, Henry.
Deixou claro, dando um passo para pegar o gato, mas Henry esticou a mão para toca-la, o que fez Charlotte dar dois passos para longe. Bateu às costas na grade de proteção e inspirou profundamente, tentou ignorar o olhar magoado que ele a lançou, não poderia ceder justo naquele momento.
- Char.
- Charlotte. Você não tem direito de me chamar por apelido algum. - afirmou meio impaciente.
Henry fechou os olhos com força e a Page se sentiu mal por deixá-lo daquela forma.
- Charlotte. - se corrigiu, ela somente cruzou os braços e olhou para a rua movimentada à sua esquerda. A forma como ele dizia seu nome ainda fazia seu coração perder um compasso, ainda a fazia sentir muito. - Eu senti sua falta.
Sabia que ele estava sendo sincero, conseguia ler Henry como um livro, um livro único e inesperado. Porém não conseguiu conter a risada descrente que saiu de seus lábios junto com uma afirmação que o acertou em cheio.
- Aham, super acredito.
- Eu realmente senti a sua falta. - repetiu firme, tirando Felix de seu colo e o colocando deitado no parapeito da janela.
O gatinho começou a lamber a pata despreocupado, por vezes lançava um olhar para seus donos, Charlotte tinha certeza de que era um olhar de desdém. Felix fora presente de Piper, então ela não duvidava nem um pouco dele ter a personalidade da Hart. Mas no momento ela devia focar sua atenção em algo que não queria, quem dera pudesse passar o resto dos seus dias somente observando a personalidade complicada de seu gato. Olhou para Henry que se encontrava parado em pé a sua frente, com os ombros caídos e olheiras, parecia que não dormia a dias e ela quase sentiu culpa por provavelmente ter sido a responsável. Mas também havia passado por maus momentos, não iria dar para trás no que já havia conquistado.
- Sentiu tanto que voltou a não sei quanto tempo e veio morar em outro lugar sem nem ao menos me procurar.
- Eu voltei hoje e não moro aqui. - esclareceu, ao passo que ela olhou para dentro e notou uma decoração clássica, mas que não combinava em nada com um apartamento de um cara solteiro.
- Então é aqui que sua namorada vive. - comentou, a voz neutra quando viu um vestido jogado em cima do sofá.
- Charlotte.
Henry chamou, mudando o peso de um pé para outro. Não negou nem afirmou, foi o suficiente para ela entender tudo. Não o culpava, estavam separados há mais de quatro meses, mas ainda doía, pesava e sufocava. Ele ainda importava e muito para ela e o que a fazia sentir mais raiva era o fato dela claramente ainda importar muito para ele. Conseguia ver em seus olhos, eles sempre brilharam de uma maneira diferente quando a encarava, conseguia notar o quanto ele estava se controlando para não toma-la em seus braços. O pior era ter a certeza de que se ele fizesse isso, ela não iria recusar.
- Não, não. - pediu, esticando a mão para ele não dar mais nenhum passo. - Guarde suas explicações, não temos mais nada mesmo. - tinha que ir embora logo, enxugou as palmas das mãos suadas na barra de sua blusa. - Te desejo toda a felicidade, Henry, de verdade, mas eu não vou mais ficar jogando esse joguinho que quase me destruiu. Não vou voltar correndo pra você só porque você resolveu que estava na hora de aparecer. Eu tenho uma vida, uma vida que continua com você nela ou não, uma vida que demorou a encontrar uma direção depois que você partiu porque você me quebrou. - sentiu sua garganta apertar, seu nariz pinicar e seus olhos arderem. Inspirou fundo para controlar seu coração.
- Eu não-
- Eu sei que não, mas você me quebrou. - o interrompeu, sentia as palavras saírem como se estivessem estado presas, e estavam. - Você era o meu lugar, o meu país, fiquei exilada quando você foi embora. Era como se uma parte de mim tivesse morrido e a outra teve que arrastar essa parte durante meses para que o peso não fosse muito forte, essa parte teria me puxado pra baixo, sabe? Teria me afundado se eu não tivesse tido ajuda.
Desviou o olhar dele e encarou a ponta de seus tênis que estavam sujas de tinta azul, resultado de seu trabalho mais recente. Torceu às mãos uma na outra, batendo levemente o pé direito em um ritmo desconexo. Não queria ver o que ele estava sentindo, não queria ter que olhar para ele depois de ter confessado algo que ainda doía no fundo de sua alma.
- Eu nunca quis que você sofresse, nunca quis te causar tanto dano. - a voz dele estava embargada, Charlotte escutava as notas de dor e se recusava a levantar a cabeça. - Se eu pudesse voltar atrás, se pudesse refazer tudo do jeito certo e-
- Não existe jeito certo em como ter terminar uma relação como a nossa, só existe o jeito que doeria menos. - sua voz saiu baixa, sentia que se falasse mais alto iria chorar. - Querer voltar atrás nesse momento é normal, mas fazer de tudo para que isso volte a ser como antes é perda de tempo.
- Você não me ama mais?
A voz quebrada a desarmaou, o encarou com um sorriso triste e empurrou o bolo enorme que se formava em sua garganta.
- Se fosse assim tão fácil. - falou, soltando um suspiro trêmulo antes de levar as mãos aos cachos ao retirar um elástico de seu bolso para amarra-los, precisava de uma distração. - É claro que eu te amo, amo tanto que meu corpo ainda quer correr para os seus braços e meu coração ainda bate no ritmo do seu, mas eu sei que se eu te beijar agora, se eu te abraçar agora, eu nunca vou conseguir sair daqui e eu preciso sair daqui, Henry. Eu simplesmente preciso. - se sentia tão cansada e sabia que ele também.
- Eu te amo tanto, Char. - declarou, limpando uma das muitas lágrimas que escorriam por seu rosto. - Tanto, tanto. - repetiu e ela sabia que era verdade.
- Queria que amor fosse o suficiente, mas nós dois sabemos que não é. Você fez sua escolha, Henry. - levantou a mão quando ele iria começar a negar. - A fez no dia em que saiu do nosso apartamento, no dia em que aceitou aquele emprego do outro lado do mundo sem falar comigo, no dia em que escolheu não acreditar que eu te amava tanto que iria para qualquer lugar só para continuar ao seu lado.
- Você sempre quis criar raízes, ter uma família e eu não queria te tirar isso. - afirmou, avançando alguns passos antes que ela percebesse e pegando suas mãos nas dele.
- E você não tirou. - garantiu, as apertando levemente antes de soltar uma mão da dele e a levar ao rosto do Hart. - Mas queria tudo isso com você, não importava onde, mas você ignorou meus sinais ou simplesmente não quis ver.
- Eu nunca quis te perder. - disse, inclinando seu rosto sob o toque quente dela.
- Também não queria que você tivesse me perdido. - sussurrou sincera, se afastando rapidamente dele e caminhando em direção ao gatinho que ainda permanecia na mesma posição. - Vamos, Felix. - chamou, o pegando nos braços e trocando um último olhar com Henry. - Vamos pra casa.
Deu às costas ao Hart, apertando Felix nos braços enquanto descia apressada os degraus. Quando atingiu o solo, caminhou o mais rápido possível para longe dele, para longe dos seus braços quentes, risos contagiantes, piadas idiotas e promessas quebradas. Se misturou aos pedestres alheios às lágrimas que escorriam silenciosas por seu rosto, Felix levantou a cabeça e lambeu seu queixo antes de encostar o focinho em seu pescoço. Charlotte deixou as lágrimas caírem, não iria impedi-las, queria chorar por Henry e por tudo o que eles perderam, queria se esvaziar daquela tristeza até a última gota para que só restasse a saudade, com a saudade ela sabia lidar. Saudade é bagagem, lembrança de amor. Saudade é combustível para o que ela ainda viverá, com ou sem ele. No momento sabia que deveria ser sem ele.
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