54. Não pode se afastar
— Você sabe o que significa ser um Luo? Significa nobre, rico e de boa índole. — A voz profunda, vinha do estranho lugar perigoso dentro do seu mar do conhecimento. — Você não sabe o que significa ser um príncipe, porque não sabe o que é ser você. E por isso — uma gargalhada alcançou seus ouvidos —, você morreu.
Se você pensar que o corpo de um cultivador é um mundo, o mar do conhecimento é o seu governo principal, a maior potência daquele mundo. E esse governo, é diferente para cada pessoa. Cada um tem uma visão diferente.
É neste lugar, tido como uma dimensão dentro do cultivador, que a magia acontece e onde seu conhecimento é gravado e armazenado como se fosse uma grande biblioteca. Mas não é só isso, é no mar do conhecimento que as suas almas residem, assim como a alma nascente.
Em seu mar do conhecimento, tudo estava calmo. O céu azul acima de sua cabeça parecia tão brilhante que chegava a irritar. Era tediosamente bonito.
Todas às vezes que tinha um pesadelo relacionado a Luo Hang, sem querer era atraído para a dimensão do seu mar do conhecimento. Seu olhar vagou pelo horizonte, coberto pela névoa vermelha e caótica.
Era estranho essa sensação. Parecia que algo lá dentro o olhava intensamente como se quisesse arrastá-lo para a desgraça. Mas, Cai Xing não desviou o olhar. Continuou a encarar aquele lugar atentamente, como um amante olhava para seu objeto desejado. Obsessivo.
Um redemoinho se formou criando raios e mudando o céu sobre a névoa, puxando-a quase totalmente para o centro do evento. Da névoa retida, uma silhueta tomou forma em meio à confusa cena.
— Quem está aí? — Perguntou Cai Xing, sua voz ecoando pela dimensão.
Não era a primeira vez que sentia ser observado, mas sempre ignorou essa sensação. Ele detestava confirmar que sua intuição em quase todas as vezes estava correta. Odiava a ele próprio por essa certeza e assim, sempre que conseguia, ignorava.
Entretanto, dessa vez, Não demorou para que uma voz suave, porém enigmática, respondesse de todas as direções ao mesmo tempo:
— Cai Xing, o único cultivador em milênios a ascender, e ainda como um Asura. O Lorde Demônio das Espadas Gêmeas. O Verdadeiro Asura. Os deuses realmente acharam suas ações piores que o demônio original. — A pessoa riu. — Você busca respostas, uma vida pacífica, seu amor..., mas há uma pergunta que ainda não fez a si. Quem é você além de suas habilidades e títulos?
Ficou surpreendido pela pergunta, manteve-se em silêncio. Definitivamente, era algo que sempre se perguntou. Ele não tinha desejos ou sonhos, sua perspectiva de vida sempre foi sobreviver. O que o deixava agarrado a vida foram seus objetivos: matar Qi Seyoung, matar Qi Seyoung... a qualquer custo.
Sem amor próprio ou respeito pela vida, ele nunca podia se aproximar do objeto de sua paixão. Observar de longe era suficiente e isso, provavelmente, era seu único desejo. Olhá-lo enquanto ainda pudesse, antes que Cheng Xing e sua mente quebrada o finalmente destruíssem sua sanidade.
Isso durou até o momento da sua ascensão. Só o Dao Celestial sabia o porquê ele havia ascendido. No meio de uma batalha sangrenta, ele traçou seu caminho até aquele lugar. Os portões dos céus o rejeitaram, mas se havia chegado até ali... ele riu... ninguém poderia pará-lo. E abriu os portões a força.
Por um descuido, por essa obsessão pelo poder, sua sanidade desapareceu e finalmente se tornou um cultivador demoníaco completo. E também, tomado o caminho de um deus asura.
— Toda sua vida, quem foi você? Um órfão? Um jovem sonhador? Um homem ambicioso? Um homem quebrado? Um homem que foi controlado? Você foi Chen Xing? Um boneco de Qi Seyoung?
Os pelos do seu corpo se arrepiaram, eram os seus questionamentos ao longo de sua vida.
— Qual é seu propósito em viver? O que você realmente deseja, Cai Xing?
Cai Xing se levantou, olhando para os lados, com certo nervosismo. Era aquela mesma sensação que teve no Abismo da Fantasia, aquele poder e presença.
— Quem é você? — Insistiu no questionamento.
Ouviu uma risada novamente. Ela parecia sussurrar em seu ouvido, deixando uma sensação nauseante. Também não o via, mas sabia que havia uma expressão arrogante no rosto daquela... pessoa? Alma?
— Bem... eu sou você.
Entre os contornos nebulosos da bruma densa e escura, a silhueta começou a tomar forma. A cada passo, ela cedia com resistência, revelando a postura ereta e olhar confiante.
Cai Xing sentiu seu coração tremer. As batidas tornaram-se altas o suficiente para equalizar com os passos daquela pessoa. Algo parecia latejar na sua cabeça e um sussurro estranho reverberava como uma canção mortífera.
Seus olhos foram os primeiros a serem vistos, num tom vermelho escarlate brilhantes. Eram os mesmos que os seus quando usava o qi do mal. E depois, um par de botas veio a luz, seguido pela roupa vermelha. No final, seu rosto também era igual ao dele, mas o Cai Xing do passado.
— Lembre-se de quem eu sou.... lembre-se de quem nós somos, Cai Xing.
E a silhueta, retornou às sombras e, gradualmente desapareceu. Voltou a ser um redemoinho e depois, uma mancha negra com um núcleo avermelhado.
Assim que aquela mancha se acalmou, Cai Xing virou a cabeça, sentindo a presença de Chen Xing, sua alma e ela sentou-se ao seu lado. Havia muito tempo que não a via naquele estado.
Chen Xing tinha a aparência de uma menina, não mais que quinze anos. Era pequena e delicada, quando quieta, parecia adorável. Entretanto, era outra quando sentia o tóxico aroma do sangue.
— Não deveria estar aqui.
Ela deu um sorrisinho, quase em deboche.
— Mestre, — Sua cabeça inclinou os cabelos pretos se desalinhando, caindo sobre o rosto. — não seja tímido.
Chen Xing piscou os olhos, completamente pretos. Um sorriso maligno. Ela era como um fantasma e também um demônio, um verdadeiro demônio.
— O que está fazendo aqui?
— Mestre chamou. — Apontou o dedo para o núcleo demoníaco. — Chen Xing veio.
Seus olhos se abriram. Um arrependimento, admitia. Se houvesse um lugar em seu corpo que não parecesse esmagado por mil montanhas, não era no seu corpo. A ressaca, a mistura de vinho espiritual com o ópio não foi sua melhor escolha.
Mal se mexeu, apenas colocar o antebraço sobre o rosto para tapar a claridade gerou um esforço enorme. Entretanto, não se arrependia de tê-lo feito.
Cai Xing começou a repensar nos últimos dias enquanto circulava a energia espiritual. Era estranho, não conseguia se recuperar normalmente. Demorava mais que o normal e meditar também não estava funcionando. Beber menos ainda.
Quinze dias e olhar para Shen Zhengyi e enxergá-lo como Yu Mei também era estranho. Isso quando não fugiam um do outro.
Fazendo um grande esforço, ele se sentou à cama, usando a parede para se encostar. Não vestia uma roupa, os lençóis de seda, deslizaram por sua pele nua, mal cobrindo os quadris.
E, para sua (in)felicidade, mal teve tempo de acordar quando Shen Zhengyi entrou pela porta. Ele foi observado atentamente e quase se sentiu tímido diante disso.
— Vista-se! Estamos de saída.
Um longo murmúrio escapou da sua boca. Resmungando, se arrastou pela cama e vestiu-se depois de um rápido feitiço de limpeza. Não era o ideal, mas notando a pressa de Shen Zhengyi, preferiu não questionar.
Quando estava prestes a sair do quarto, ainda meio tonto, seu corpo se chocou contra algo e se segurou nele para não cair. Estava tão absorto no sono que nem praguejou e só olhou para o dono daquele corpo magnífíco, os olhos quase se fechando.
— Você nunca arruma o cabelo.
Com os olhos fechados, deu uma risadinha e se aproximou do outro, encostando a cabeça em seu ombro.
— Por que vou arrumar se tenho shizum para fazer isso por mim?
Novamente, estava se sentindo sonolento. Sua respiração estava mais calma, soprando próximo à orelha de Shen Zhengyi. Ele escutou o outro bufar e poderia tê-lo visto revirar os olhos se não estivesse quase dormindo.
— Shizun vai ajudar esse discípulo preguiçoso?
Mestre Shen segurou um bufo irônico. Era um tipo de descaramento que ainda não conhecia. Suas mãos seguraram as de Cai Xing, travadas em sua cintura e sentiu o corpo dele pesar sobre o seu.
Shen Zhengyi: "..."
Foi essa cena que Chen Dewei encontrou quando estava procurando por Shen Zhengyi. Os dois abraçados, com Cai Xing desacordado sobre o outro. Um sono tão profundo que não percebeu que havia sido posto novamente na cama.
— Vamos adiar a saída por um dia. — falou enquanto tirava os cabelos de Cai Xing do rosto.
Chen Dewei, ainda na porta, entrou no quarto, ficando de pé no meio do cômodo, com as mãos cruzadas nas costas. Ele já não usava uma máscara e estava vestido casualmente com um qipao masculino verde escuro e uma calça de algodão. Os cabelos arrumados num rabo de cavalo alto presos por uma coroa de ouro.
— Ele não deve ter percebido, mas Chen Xing está consumindo seu poder espiritual e poder mental. — O louro comentou. — Depois que ele a usa, a alma do sabre, precisa consumir muita energia espiritual. Fique de olho nele, jovem mestre.
Shen Zhengyi virou-se para o amigo.
— Já está saindo?
— Algumas pendências para o leilão em Wuming. — respondeu diretamente, Chen Dewei nunca mentiria para Shen Zhengyi. — Preciso retornar para o culto também... não sei o quê meu irmão está prestes a fazer.
— Provavelmente, há algo com ele também. — Olhou para Cai Xing. — Não posso deixar que algo aconteça a ele dessa vez, Dewei. — Balançou a cabeça, negando os pensamentos ruins que afloraram. — Cuide-se também e mantenha contato.
— Não se preocupe comigo, jovem mestre. — Ele abriu os braços e deu de ombros, confiante. — Sou tão fraco assim? Não acha que são as outras pessoas que deveriam tomar cuidado comigo?
Shen Zhengyi não esboçou reação.
— Aquilo não foi normal, Wei Ge.— Virou para a mesa, no canto do quarto e foi até ela, tirando o conjunto de agulhas que Yan Li havia feito. — Aquele grito veio direto do Submundo. Jinhai, provavelmente, abriu os portões do submundo. Qualquer coisa que tenha passado por aquilo, exalando tamanho poder. — Abriu a caixa de agulhas douradas e espalhou sua energia espiritual sobre elas. — É, no mínimo, um dos oficiais do submundo.
Chen Dewei ficou quieto, quieto demais para alguém que não temia quase nada.
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A manhã surgiu e com ela, a vergonha também surgiu para alguém cuja face era tão grossa quanto o tronco de uma árvore de mil anos. O quanto ele tinha bebido para que ficasse quase dois dias dormindo? Felizmente, ele não se lembra, mas foram doze garrafas de vinho e dois cachimbos de ópio.
No dia anterior, provavelmente, havia ultrapassado o limite. Sentiu que era descarado demais ter dito aquelas palavras em voz alta.
Além disso, outro fator estranho era o horário. Início da hora do dragão. Era um insulto a sua pessoa acordar tão cedo. Ainda assim, Cai Xing sentiu que não conseguiria mais dormir e tentou se levantar, sentindo a cabeça doer e o senso de equilíbrio desordenado.
Ele se sentou na cama e ali mesmo vomitou, ao puxar um balde ao lado da cama.
"Porra!"
"Nunca mais vou beber..."
Como um alcoólatra em potencial, essa era uma promessa tão vazia quanto seu estômago. Não havia como Cai Xing parar de beber ou pelo menos era isso que achava.
Assim que parou de regurgitar tudo, ele notou a presença de Shen Zhengyi, no canto do quarto, costurando alguma coisa que escondeu apressado logo ao ser chamado.
— Shizun... — Sua voz estava mais rouca e grave que o normal, causando uma sensação estranha no mais velho.
— Está se sentindo melhor? — Ele ignorou o arrepio que sentia e terminou de entrar ao notar o estado de seu discípulo.
Cai Xing abriu os braços.
— Melhor, impossível! — E revirou os olhos.
Shen Zhengyi bufou, ele realmente estava bem.
Em silêncio, ele passou por Cai Xing sentando-se atrás dele na cama e puxou um pente e uma presilha de cabelo. Se ele regurgitar novamente, ao menos não iria sujar o ágata marrom em seus cabelos.
— Não quero vê-lo consumindo ópio novamente.
As mãos de Shen Zhengyi passaram com firmeza pelos fios de Cai Xing e estava tão quieto que parecia ter dormido novamente. O pente fino, deslizou com cuidado, reorganizando e desembaraçando os cabelos desgrenhados. E quando encontrava um nó mais complicado, evitava forçá-los ou puxá-los para que o fio não se quebrasse. A cada passada do pente, as ondas escuras tornavam-se mais macias e brilhantes.
— Não se preocupe, não sou um viciado. Só uso quando estou estressado. — retrucou.
— E quando você não está estressado, Cai Xing? — Uma pergunta irônica.
— Quando estou dormindo... o mundo é estressante, Shizun! — resmungou.
Ele ignorou os resmungos infantis.
— Apenas não me faça pedir isso novamente.
Os movimentos relaxantes estavam mais gentis que o costume e o mais novo não deixou tal ação passar despercebida. Os olhos fechados em contentamento e até mesmo a sua postura, com a cabeça pendida para trás, ele pareceu apreciar o gesto mais que o habitual.
Cai Xing se entregou ao cuidado e a gentileza desse homem fazia muito tempo. Com um sorriso adornando os seus lábios, ele quebrou o silêncio.
— Shizun é realmente habilidoso com as mãos.
A tontura e o enjoo haviam passado num instante.
Shen Zhengyi não o respondeu, mas puxou o cabelo para trás, unindo-os num coque e colocou um kanzashi na parte de trás. Assim que finalizou, viu Cai Xing torcer o corpo e olhar para ele.
— Passaria facilmente o resto de minha existência tendo uma vida conjugal com shizun.
Ele arqueou a sobrancelha esquerda e com um olhar significativo, voltando-se para frente. A ereção matinal sempre estava mais animada quando tal pessoa aparecia.
— Não vou demorar shizun. — Ele bocejou indo para trás do biombo.
— Cai Xing...
O mais novo parou.
— Nós... quer dizer... eu gostaria...
Mestre Shen parecia muito nervoso, suas orelhas vermelhas e os punhos fechados. Olhava diretamente para Cai Xing e parecia carregar tantos sentimentos nas írises azuis cristalinas.
— Você poderia usar meu nome? Apenas use honoríficos na frente de outras pessoas... por favor.
Cai Xing ficou sem resposta. Não havia muitas coisas que o deixavam sem fala ou ação. Definitivamente, isso o pegou de surpresa, acertando o coração. Ele esfregou a têmpora com o humor ainda melhor. Filho da puta fofo.
— Se é o que deseja... tudo bem, Zhengyi. — Ele demorou ao dizer seu nome e, ao mesmo tempo, viu esse filho da puta de vários anos extremamente fofo e seu pomo de adão subir e descer várias vezes enquanto dizia cada caractere sair de sua boca.
Shen Zhengyi não sabia esconder seus sentimentos em relação a ele. Foi por isso, que no passado, o perseguiu com insistência. Caso não fosse correspondido, não teria sequer o olhado uma segunda vez.
Besteira!
"Não minta para si, Cai Xing! Honre seu sobrenome!"
Ele tirou o hanfu e o jogou sobre o biombo.
"Maldição, meu sobrenome também não é Cai!"
"Que se foda!"
— Ah... — Ele entrou na água, que estava numa temperatura perfeita. — Zhengyi...
Por mais um tempo o cômodo ficou silencioso e percebendo que suas últimas palavras podem ter sido ambíguas, viu a necessidade de se explicar.
— Não estou me tocando enquanto está aqui do meu lado. Não agora... já fiz isso várias vezes, mas não agora... é só... esquece! — Não que não estivesse tentado a fazer isso também. — Shiz... Zhengyi?
— Hm?
Cai Xing espreguiçou-se nam e esticou uma das pernas, levando-a até a borda da banheira.
— Você pode falar o que deseja, Zhengyi. Sempre vou escutá-lo, não importa o que seja.
Mais alguns segundos de quietude. Provavelmente, foi assim que Cai Xing pensou, que o outro estava buscando as palavras corretas para tal.
— Luo Cao.
Cai Xing suspirou, um pouco decepcionado com a resposta. Esperava por outras questões, mas isso foi bom também. Não queria se apressar, pois havia tanta coisa para resolver e conversar entre eles. Se fosse um ou dois dias poderia ter pressa, mas não era. Era toda uma vida de desentendimentos e desencontros.
— Sem ele, entrar no palácio imperial será complicado. — Seu tom de voz, parecia mais firme.
Cai Xing soltou um suspiro quando passou a mão perto da virilha.
— Por quê?
— Se voltar aquele lugar estará morto. — Alguns barulhos atravessaram sua audição. Shen Zhengyi havia arrastado alguma coisa. — Nem eu ou Dewei conseguiríamos protegê-lo.
— Proteção? — Cai Xing questionou.
Mais um barulho de algo sendo arrastado. Cai Xing estava curioso com o que acontecia do outro lado do biombo. Não era possível que Shizun estivesse arrumando o quarto, certo?
"Bem, é possível..."
— O mundo mudou bastante. Sua Majestade Imperial, provavelmente, é a pessoa mais poderosa viva e seus métodos, são tão cruéis quanto um dia foram de Qi Seyoung.
A mão nervosa da virilha aconchegou-se mais centralizada.
— Huo Ge, não conseguiria entrar na cidade imperial sem que descubram ele ser um animal espiritual. — Começou a explicar. — Como você sabe, ele é uma fênix demoníaca. — Outro barulho foi escutado, dessa vez parecia algo ser colocado sobre cama. — Há alguns anos, um evento quase destruiu a cidade imperial e a matriz abaixo da cidade foi reforçada. Um grupo de bestas demoníacas surgiu da floresta espiritual, controladas por um cultivador. Não sei muito sobre isso, a cidade imperial é quase uma fortaleza, mas após tal evento, levantaram uma formação que cobre a cidade. Animais demoníacos serão detectados pela barreira, mas aqueles que não possuem a cultivação do diabo entram facilmente.
Havia uma grande diferença entre ambos. Diferente dos animais espirituais, os demoníacos não usavam somente meios ortodoxos, como pílulas, matérias medicinais e a própria natureza, mas também cultivação de outros animais, refinando seu sangue e cultivo para benefício próprio.
Cai Xing ficou curioso com isso. Enquanto sua mão fazia movimentos rápidos debaixo da água, tentou controlar sua voz ao máximo, ao falar:
— Fantasmas conseguem passar?
Outra vez, um silêncio. Apenas o barulho da água se movimentar era o pico mais alto naquele cômodo.
— Zhengyi?
— Fantasmas são existências que não regem com as leis dos céus. São existências que não deveriam existir; por isso, são difíceis de detectar e também combater. A única forma de detê-los completamente é destruindo suas cinzas. — Explicou brevemente. — Cultivadores demoníacos sempre encontram métodos para burlar as regras... o que talvez, fosse impossível por ser uma matriz tão antiga.
— Mas, não é.
— Sim, não é.
Cai Xing mordeu o lábio inferior e a mão que estava livre segurou a borda da banheira. Seus cabelos, que estavam secos, aos poucos foram se molharam diante de seus movimentos para se 'lavar'. E, enquanto travava essa batalha de cinco contra um, Cai Xing se lembrou de outra informação.
— Zhengyi... — seu tom estava definitivamente mais baixo, tornando a palavra quase um sussurro. — Preciso confirmar algo.
— Hm...
Engolindo um suspiro demorado e franzindo as sobrancelhas, voltou a questionar:
— Luo Cao não odiava Luo Hang, certo? Quando ele me ameaçou, anos atrás, sua intenção assassina não se direcionava a mim, mas a algo mais distante, além de tudo o que eu podia questionar naquela época.
— Dentro da família Luo, ele é o único que possui alguma bondade em seu coração. Mesmo Luo Hang, sua inocência só está no caso com Li Jie.
— Então a reputação de um príncipe dândi é real? — Cai Xing soltou uma risada.
— Não é apenas um príncipe dândi. Você deve saber, já que conseguiu tirar muito de prostitutos em bordéis esses anos. — Havia uma linha azeda em suas palavras, quase imperceptível, mas Cai Xing a notou.
Cai Xing pensou um pouco antes de responder.
— Ele seria a verdadeira vadia do culto. O desgraçado tinha amantes, transava com Li Jie e também com a irmã mais velha... ah!... Shizun sabia? Luo Hang tinha um caso com um dos guardas das sombras de Luo Cao. — O maldito corta manga do culto demoníaco ficou assustado com tamanha descoberta — Não faço ideia como ele tinha tempo para se cultivar!
Um calafrio subiu pelo corpo de Cai Xing.
— Mas, seja sincero comigo, Zhengyi... hm... não era apenas ajudar Luo Hang. Suas intenções, quero saber...
Uma risadinha foi ouvida, perto de ser uma ilusão.
— Além de descobrir mais informações sobre o culto demoníaco? Luo Hang era alguém que estava em contato com o Culto há algum tempo, então era preciso informações. Eu também sabia que não era o rapaz, como eu disse, há uma troca de almas e corpos sendo tomados em grande quantidade. — Sua voz parecia lhe dar um tom bem-humorado. — Sei que sua mente está fragmentada, mas para não lembrar de sua aparência Cai Xing?
Assim que suas palavras findaram, Cai Xing pareceu ter um insight. Ele parou sua luta de cinco contra um de imediato.
— Queria ter algo que pudesse ser uma lembrança sua, ou algo próximo de você. Um objeto ou simplesmente alguém que parecesse com você, mas Luo Hang... é igual a você.
Era verdade que não conseguia se lembrar da aparência de Shen Zhengyi, seu nome ou sua voz. Seu passado, são poucas as memórias e elas costumam vir de fragmentos. E, aquelas que vêm, ocasionalmente, são aquelas ligadas à sua espada, Cheng Xing. Seu nome real, também era um mistério.
Contudo, não havia percebido isso. Seu próprio rosto, não conseguia se encontrar consigo. Foi como se sua identidade tivesse sido arrancada dele, se tornando um fantasma e vagando sem um passado incerto.
Cai Xing sorriu.
Ele deveria se lembrar. De quem ele era, de onde veio e como havia chegado até ali, mas ele se sentia estranhamente calmo. Isso não o incomodava. Saber que não se lembrava de tudo queria dizer que estava desgarrado, não completamente, mas parcialmente, de seu passado doloroso.
— Eu era assim? — Sussurrou.
Ele baixou a cabeça, olhando o reflexo na água e analisou com cuidado cada traço e textura daquele rosto.
"Isso é bom..."
— Cai Xing, o que houve? — Shen Zhengyi perguntou ao perceber o silêncio repentino e duradouro.
— Estou bem. — Respondeu. — Nunca estive tão bem.
Cai Xing levantou-se na banheira e saiu. Ele lançou um feitiço que secou seu corpo por completo, em seguida, retirou um conjunto de roupas da bolsa qiankun.
— Quer ajuda?
Seu pomo de adão subiu e desceu e aquele típico sorriso maldoso se apossou do seu rosto. Provavelmente, ele teria um dia bastante duro.
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Cai Xing prendeu a respiração. Shen Zhengyi estava próximo. Muito próximo. O seu coração batia freneticamente, enquanto ele via Shen Zhengyi rodear seu corpo, ajudando-o a levantar as mangas do robe externo. Tão frio. O som da sua respiração, o toque das suas mãos, aparentemente tão delicadas.
As mãos passando pelos ombros, deixando o tecido alinhado, em seguida, puxando o tecido para frente e a aproximação dele ao transpassar o cinto pela cintura.
Os cílios dele tremeluziam, lindos e alongados, com rapidez. Ele não esboçava reação, como se realmente fosse uma pessoa reta e distinta. Como se não fosse ele o verdadeiro caos.
Ele tentou falar alguma coisa, para quebrar aquele silêncio terrível, mas as palavras não se encontraram na sua mente. Estava completamente perdido, apenas hipnotizado ao observar o tecido e o par de mãos trabalhando para ajustar a roupa no corpo.
Os olhos da cor do mar, fitaram-no com atenção. Não sabia como reagir a isto, visto que a proximidade que mantinham, só bastava um mísero passo para que pudessem se encontrar. Queria tanto beijar esses lábios.
Mestre Shen parecia sentir o mesmo, já que seu olhar não demorou tanto para ser focado nos lábios de Cai Xing, que, inconsciente, os mordeu suavemente.
Era tão perigoso estar tão perto.
E então, Shen Zhengyi terminou de arrumar o robe externo, sua mão entrando por dentro do tecido, mas não desviou sua atenção, continuando a encará-lo integralmente.
— Está feito. — O mais velho anunciou, deixando sua mão, pousar levemente sobre a cintura do outro. — Você emagreceu.
— Estive ocupado. — Ele cobriu a mão de Mestre Shen, sentindo a frieza de sua pele. — É uma sensação boa, segurar sua mão.
— Isso é bom. — Mestre Shen respondeu, um sorriso tranquilo e quase imperceptível, trazendo um pouco de suavidade para seu rosto. Ele não moveu a mão, pelo contrário, segurou com mais firmeza entrelaçando os dedos.
O mais novo sorriu ao presenciar tal ação. Seu pomo de adão subiu e desceu. Cai Xing deu um passo em sua direção e Shen Zhengyi não se afastou.
— Eu posso...
Mas um barulho vindo de fora do quarto os interrompeu. Alguém estava batendo na porta.
Eles se separaram rapidamente, tentando disfarçar a proximidade e suas próprias ações. Shen Zhengyi deu um passo para trás, mantendo a mão na cintura de Cai Xing e parecendo relutante em soltá-lo.
— Eu... vou abrir. — Cai Xing disse, caminhando em direção à porta.
Cai Xing suspirou, sentindo-se um pouco perdido. Ele se perguntou até onde poderiam ter avançado, até onde Zhengyi o permitiria avançar. Porra! Se fosse por ele, já estavam no meio de algo.
Shen Zhengyi ergueu a mão na altura do rosto. Havia um sentimento de perda progredindo em seu peito. De repente, ele franziu a testa, quando Cai Xing encostou a mão na maçaneta da porta.
— Espere.
Shen Zhengyi acenou a cabeça, indicando para que ele se afastasse. Cai Xing olhou para a porta por um momento e colocou a mão no punhal de Cheng Xing, que havia adormecido.
Ele hesitou por um momento e se afastou da porta, não se movendo para longe. O mais velho se aproximou e com uma das mãos na maçaneta, não hesitou em abrir.
Ao mesmo tempo, uma espada atravessou o portal. Shen Zhengyi só teve tempo de jogar para o lado, evitando a lâmina que cortou uma mecha do seu cabelo. Ele levantou sua espada, defendendo outro ataque, desviado no meio do ar e inclinou a cabeça afastando-se da trajetória de uma agulha.
A figura era um homem alto, os trajes escuros cobrindo o corpo dos pés a cabeça. Sua intenção assassina cobria todo o quarto. Ele avançou em direção à Shen Zhengyi, balançando a espada com uma força impressionante.
Cai Xing, por sua vez, aproveitou-se do momento e lançou um ataque. Cheng Xing golpeou com destreza, exalando um brilho afiado e caiu diretamente no ombro do assassino, muito próxima a uma parte vital. O sangue jorrou e escorreu, sujando toda a madeira e tapetes no chão.
Do outro lado, Shen Zhengyi levantou o pé e chutou o abdômen do homem, com força suficiente apenas para jogá-lo sobre Cai Xing. O sabre que estava adormecida acordou e vibrou contra o pescoço do assassino.
Cai Xing o segurou pelas costas. Shen Zhengyi deu dois passos para frente e arrancou a máscara em seu rosto.
— Wei Qi. — Indiferente, o nome do assassino destoou de sua boca.
Assim que terminou de falar, Flor de Outono retornou a bainha, ainda vibrando.
Com os olhos injetados pelo sangue, cobertos por uma fúria incandescente, Wei Qi encarava Shen Zhengyi como se visse a pessoa mais cruel do mundo. Por todo seu corpo, espasmos involuntários deixavam seus membros com movimentos desconexos e era nítida sua confusão mental, com as pupilas tremendo e sem foco, mas, ao mesmo tempo, focado em sua figura com um desejo obsessivo. Como se tivesse destinado a matar o Grão-Mestre em sua frente.
Não importava como olhasse, sua atitude era completamente ridícula e anormal em sua personalidade. Alguém cujo, valoriza tanto a própria vida, não atacaria outro mais poderoso que ele.
Shen Zhengyi acertou seu ponto de acupuntura e Wei Qi desmaiou imediatamente.
— O verme gu não está com ele. — Cai Xing falou ao deixá-lo cair no chão, sobre seu próprio sangue. — Não foi morto, mas foi retirado dele.
O mais velho deixou um olhar questionador para aquele falido Lorde Demônio.
— O quê? — Deu de ombros. — O sangue é dele, não meu. Acabei de tomar um banho, não quero tomar outro... — Ele pareceu ter uma ideia e uma expressão alegre tomou conta de seu rosto. — Exceto se shizun vir comigo.
Shen Zhengyi revirou os olhos, ignorou a face grossa da pessoa a frente dele e se abaixou ao lado do homem desmaiado, colocando a mãos nas costas dele. Ele sentiu o fluxo de qi.
— Desordem. O gu foi retirado à força, mas sem que o proprietário original soubesse. — Levantou seu olhar para Cai Xing. — Não há muitos cultivadores capazes disso.
— Wei Qi queria matá-lo, ele nem olhou para mim. — Cai Xing também se abaixou ao lado do corpo, cutucando o braço dele. — Sinto ciúmes disso.
Os olhos azuis de Shen Zhengyi estreitaram-se ao acompanhar sua expressão desacreditada.
— Você é tão...
— Sem vergonha? Já me disseram tanto isso que passei a levar como elogio! — Havia um sorriso brilhante e inocente no rosto de Cai Xing. — Além de Dewei, não conheço algum mestre gu.
Shen Zhengyi entendeu a implicação, além disso, não precisava responder todas as excitações de Cai Xing.
— Eu confio em Wei Ge até certo ponto, mas ele não é estúpido. Embora ele tenha criado um discípulo muito talentoso. — Mestre Shen apertou com cuidado as costas de Wei Qi, fazendo uma pequena pressão.
— É surpreendente vindo de Dewei. — Cai Xing arqueou a sobrancelha e deixou algumas palavras sugestivas. — Ele detesta crianças. — Levantou-se, notando a borda do hanfu sujo. — Vamos levá-lo para a viagem, soube que terá uma competição na cidade imperial e antes disso, um leilão.
Shen Zhengyi abriu a boca, mas antes que alguma palavra se formasse, Cai Xing continuou.
— Gege iria dizer para encontrarmos uma cidade e tentar ajudar as pessoas... — Ele bufou. — Se o submundo realmente estiver vindo ao mundo terreno, não seria melhor pegar alguns dos responsáveis? — Falou ao estalar os dedos num feitiço de limpeza. — Não importa o quão poderoso gege seja, o continente sul ou que seja o mundo é muito grande para poder salvar a todos. No caminho para a cidade imperial, podemos salvar algumas donzelas... além disso, Shen Zhengyi... — Falou pausadamente e levou sua mão até o queixo do outro, fazendo-o ter sua atenção quase por completo, nele. — também preciso que olhe para mim, o quanto puder. Quem sabe quanto tempo até eu perder minha paciência e sair fodendo qualquer pessoa por aí...
Aquela fagulha obscura, que lhe dava a atitude de um cultista demoníaco, emergiu.
— Zhengyi não pode se afastar. — O polegar, que segurava o queixo, deslizou até os lábios. — Precisa me segurar. O que acha?
Durante toda a vida, Shen Zhengyi sentia que Cai Xing tinha alguma habilidade de sedução. Um charme — demoníaco e celestial — capaz de quase tirá-lo de compostura.
— É viável.
Tendo o que queria, Cai Xing afastou a mão, de bom humor e girou sob o próprio eixo com as mãos nas costas.
— Bem, agora que Wei Qi está morto, terei minha própria marionete demoníaca!
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簪 (kanzashi). Esses acessórios são tradicionalmente utilizados na cultura japonesa e chinesa para decorar e segurar os cabelos em penteados elaborados. Eles podem ser feitos de diversos materiais, como madeira, metal ou plástico, e muitas vezes são decorados com detalhes ornamentais.
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notas da autora:
Olá, vou aproveitar que estou no embalo e continuar a revisar os capítulos e, em vez de postar tudo de uma só vez, eu vou postando aos poucos.
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