A porteira preta
Penso que existam coisas que não podemos explicar, que desafiam a razão e a sanidade.
Eu não era dado a acreditar em histórias de assombração, apesar de sempre ouvi-las. O povo do campo costumava contar histórias assim em noites de lua cheia ao redor do fogão de lenha, enquanto o fogo crepitava e o vapor do café subia da chaleira. Ouvi histórias assim desde quando era criança, mas depois de algum tempo, quando eu cresci, passei a ver aquilo exatamente como eram, meras histórias. Cresci um homem que não tinha medo de assombração, porque ouvia meu pai dizer que os mortos não podem voltar à vida para assombrar ninguém, que o que assombrava de verdade era gente viva.
Eu nunca tinha visto e nem sentido nada desse tipo, até a noite de 18 de junho de 1889. Eu devia ter meus 35, 36 anos, hoje estou com 90, e você pode pensar que o que vou dizer é coisa de velho gagá, mas eu digo que estou em pleno controle de minhas faculdades mentais e sei muito bem o que vi e o que senti naquela noite.
Eu morava no bairro do una em Pindamonhangaba, mais especificamente na fazenda Miraflores que pertencia ao senhor Antônio Vieira de Oliveira Neves, o barão de Taubaté. Era uma fazenda de plantação de café e eu administrava os negócios do barão. Ele tinha confiança em mim, pois tinha sido criado em sua casa e eu acho que ele só não me tinha por filho por causa da minha cor. Mas eu era Zeferino, o braço direito do barão.
Pela fazenda andava correndo o boato de que a porteira que ficava um pouco antes do córrego do Cavacanguera, logo depois do divisor de águas do rio Una e do Ribeirão do Tapanhão, num lugar que ficou conhecido como Mata dos Padres muitos anos depois, era assombrada.
Eu sempre passei por aquela porteira durante o dia. Tratava-se de um portão de madeira de mais ou menos dois metros e meio pintado de preto, e cá entre nós, nunca vi nada demais naquela lugar. Tratava-se apenas de uma estrada normal da fazenda que não era muito usada. O lugar era um campo aberto de mais ou menos uns quatro quilômetros. Tinha umas elevações ao sul onde você podia ver centenas de cupins, e ao leste uma carreira de bambuzal que seguia a cerca até a fazenda.
Nada demais mesmo. Apenas pasto para as vacas e um lugar onde você podia pegar muitos carrapatos.
Eu nunca precisei passar pela porteira durante a noite. Quando precisava ir para a cidade, geralmente na igreja, a gente ia de carroça ou carro de boi e passava pela estrada, perto da capela de nossa senhora do perpétuo socorro que ficava dentro das terras do barão.
Mas em 18 de junho de 1889 tentei passar pela porteira por volta da meia noite.
Meu moleque mais novo, que na época devia ter uns nove anos, adoeceu e pegou uma febre dos diabos e minha única solução era ir até a cidade e comprar remédio. A farmácia do senhor Genaro funcionava 24 horas por dia. Era só bater na porta dele que ele vendia remédio a qualquer hora do dia e da noite.
Não pensei duas vezes, arreei o alazão e sai em disparada.
Acho que a coisa foi meio automática. Eu estava preocupado com o menino e nem me dei conta de que sai em disparada pela estrada que ia dar exatamente na porteira preta. Eu sabia que indo por ali dava para encurtar o caminho, e o garoto estava precisando demais do remédio.
Era noite escura e gelada, mas não tinha vento. Na verdade não tinha nada. Fui perceber que tudo ao redor estava mergulhado no mais absoluto silêncio quando o alazão empacou quase me derrubando.
Isso aconteceu uns cem metros antes de chegar à porteira.
— Eia, Cavalo! Para não sô! Ainda não chegamos! Vamo lá bicho!
Meti as esporas no lombo do bicho e ele urrou, mas não queria ir para a frente. Mas eu controlei as rédeas e aos poucos consegui fazer o bicho andar, não sem seus protestos.
Só então me dei conta de onde estava: bem de frente com a porteira preta.
Parei o cavalo e fiquei olhando para a porteira e logo as histórias vieram à tona na minha cabeça.
Olhei de um lado a outro e não vi nada, nenhuma assombração e nem nada.
Você pode não acreditar no que vou dizer, mas eu estava lá, eu senti na pele a coisa e sei o que senti.
Primeiro ouvi um assobio estridente. Não tinha ninguém lá, mas eu ouvi. Era o assobio que eu mesmo costumava dar quando estava trabalhando com as vacas.
Logo depois senti um chicote estralar nas minhas costas e gritei de dor.
O alazão relinchou assustado e eu me segurei com força no arreio para não cair dele.
Levei uma segunda chicotada que rasgou o pano da camisa que eu estava usando.
Não tinha nada ali, mas, de repente senti uma presença.
Não sei bem explicar. Você pode achar que sou um velho maluco. Era uma coisa meio opressiva, fez todos os pelos do meu corpo se arrepiarem.
E veio chicotada atrás de outra. As chicotadas eram tanto em mim quanto no cavalo.
A coisa toda durou uns quatro minutos. Acho que teve um momento que eu vi um tronco, daqueles que amarravam os escravos para serem chicoteados. Eu vi uma negra lá, velha, os olhos dela eram brancos e ela estava olhando para mim e rezando a um orixá enquanto era chicoteada.
Eu devo ter levado umas trinta chibatadas. Só sei que virei as rédeas e fiz o cavalo sair em disparada pelo caminho de volta.
Dei volta pela estrada normal e cheguei na cidade que nem um doido. Minhas costas estavam ardendo e eu sentia o sangue escorrer.
Seu Genaro disse que eu parecia ter visto um fantasma quando me viu, e eu fiquei olhando para ele que nem um besta.
Eu comprei o remédio e uma garrafa de pinga e voltei para a casa tomando a cana.
Quando cheguei em casa mostrei à minha mulher os machucados nas costas e ela perguntou o que tinha acontecido.
— Tentei passar pela porteira preta.
Foi a única coisa que eu consegui dizer e ela ficou me olhando com os olhos arregalados.
No outro dia tratei os ferimentos do cavalo.
Depois daquilo nunca mais passei pela porteira preta, nem de dia.
Os boatos continuavam. As pessoas diziam que a porteira era assombrada e eu acreditava nelas. Tenho as marcas nas costas até hoje para comprovar.
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