CAPÍTULO 2 - Motores
Masha respirou fundo ao sentar-se na última cadeira da bancada, cruzar as pernas e apoiar as mãos no colo. Os olhos verdes vagaram pelo salão de forma quase severa, reclusa no canto onde todos evitavam passar.
Ela era muitas coisas e sabia disso. Inteligente, estudada, com uma família incrível, amigos tão incríveis quanto – mesmo que bem poucos, educada, com mais dinheiro na conta do que era capaz de gastar, bonita e até mesmo invejada, mas se tinha algo que Masha Nikolina Vakroneviks Stark não era, era agradável.
E ela sabia disso, sabia e era bem consciente da sua posição de, como seu pai falava, insuportável irritante. Ela nunca foi esnobe, longe disso, mas tinha uma posição social que era bem diferente de quase todo mundo que a cercava, exceto o próprio genitor, então era sempre vista de longe, quase como intocável.
Sua infância não foi traumática de toda forma por conta disso. Não por conta dos pais, pelo menos. Natasha e James eram, sem sombra de dúvidas, os melhores pais que alguém poderia ter, ainda que a mimassem mais do que deviam e sabiam disso. Ela cresceu muito bem, cercada de amor e felicidade até pelo menos demonstrar que a partilhava da peculiaridade paterna.
Os primórdios da engenharia sempre foram óbvios para ela, sempre muito simples, mesmo que quando esteve na faculdade, isso fosse difícil para as demais pessoas. Passou por três escolas em menos de um ano antes de desistirem de mantê-la em um colégio e a matricularam em engenharia mecânica aos 11 anos, que ela terminou aos 14.
Ser pelo menos oito anos mais nova do que todos os formandos fez com que ela sofresse certos tipos de descrédito por conta da origem, mas aos quinze começou a se envolver nos assuntos da Star-teck quando se especializou durante um ano inteiro em tecnologia e, desde então, tinha na bagagem algumas conquistas acadêmicas.
Ser PhD em engenharia mecânica era uma delas, além deter um bom conhecimento sobre medicina – ainda que não o suficiente e sem nenhuma formação sobre o assunto, um dos ramos fortes da empresa por conta mãe.
No final, se ela fosse traumatizada com alguma coisa, não seria com os relacionamentos fracassados que acumulou nos últimos anos, nem na faculdade que pode ser cruel independente da idade, ou com os trabalhos que fazia na empresa, no final, seu trauma era querer ser tão inteligente quanto os pais. Ou melhor, ser mais inteligente do que eles, não porque queria provar alguma coisa para Natasha ou James, mas sim porque queria provar para si mesma que ela era tão boa quanto eles, que ela poderia os deixar orgulhosos por ela ser daquela forma, por saber daquelas coisas. Que ela era inteligente, não que isso fosse só por que eles também eram.
Ela queria saber que seus méritos eram seus, não de seus pais.
No fundo, ela sabia que eles não estavam nem ai para isso, no fundo, ela sabia que era até mais inteligente e capaz do que o pai, na verdade, ela sabia, ele sabia, sua mãe sabia, seus avós sabiam, Olive – filha de Gabrielle e Marshall – sabia, alguns engenheiros menos orgulhos da Star-teck sabiam, mas no final, talvez ela não soubesse tanto assim, talvez ela quisesse provar isso para si mesma, ainda que já estivesse provado para todo mundo.
Talvez ela realmente precisasse de terapia e nada mais que isso, no fim das contas.
— Porque tenho a impressão que você vai morder alguém? – a voz conhecida a fez se virar, quase se assustando, e erguer os olhos verdes para um par bem parecidos com os seus. Na verdade, mais escuros e talvez menos cruéis.
— Por que se alguém chegar perto o suficiente pode ser que isso aconteça — deu um sorriso de lado o fazendo sorrir.
— Seu pai te obrigou a vir aqui?
— Meu pai não me obriga a nada – respondeu e era verdade. O sorriso que surgiu no canto dos lábios de Rowan era mergulhado em um sarcasmo que a irritava.
— Sua mãe? – ela o encarou sem nenhum sorriso, mas ele o fez por ela, mostrando a fileira perfeita de dentes brancos ao puxar uma cadeira e sentar-se a seu lado. – Claro, seus pais não te obrigam a nada. O que está fazendo aqui? – perguntou um segundo depois.
— Vim supervisionar os projetos para ver se algum deles tem potencial para investimento, mas sendo sincera... – maneou a cabeça, franzindo os lábios.
Ela se virou para o homem, a barba cerrada envolvia sua mandíbula atraente, os olhos verdes caramelados escuros brilhando com uma malícia familiar enquanto observava o salão, os cabelos negros presos em um coque apertado que ela sabia que quando soltos, batia pouco abaixo da sua orelha. Rowan Castle tinha pelo menos 1.85m de altura, tinha ralado muito para estar onde estava ainda que não tivesse nem chegado aos 30, tinha ombros largos e braços fortes cercados por tatuagens que ele escondia todos os dias por debaixo do jaleco do laboratório, que agora estava sendo usado pelos dois e mais alguns outros responsáveis a fim de identificação.
— Você é muito exigente – disse ele, estalando a língua. Masha cerrou os olhos.
— Você tem algo aí? — ele sorriu, empurrando o tablet que tinha em mãos pela bancada em direção a ela. Masha abaixou os olhos para os documentos que ele exibia e o riso que ela deu foi minimamente esnobe quando ela ergueu o tablet para ela numa foto que ele havia favoritado. — É sério?
— Eu achei interessante para o nível do aluno – respondeu e ela negou com a cabeça, jogando os cabelos para trás.
— Eu apresentei algo igualzinho para o meu pai com nove — Rowan soltou um riso anasalado.
— Desde quando você é margem de comparação?
— Desde que eu preciso de alguém genial o suficiente para se passar por mim sem ser eu — Rowan pareceu confuso.
— Do que você está falando? — Masha negou, devolvendo o tablet.
— Nada.
— Masha... — sem tom era conspiratório, mas ela se manteve focada em qualquer ponto no salão cheio de alunos e projetos a sua frente. — O que você está aprontando?
— Eu já disse que nada — repetiu dando de ombros. Rowan negou com a cabeça.
— Você não sabe mentir — ela se voltou para ele, erguendo uma das sobrancelhas perfeitas. — Não sabe mesmo, não para mim, pelo menos.
— Você está se achando demais — afirmou e Rowan deu de ombros.
— É a convivência — sorriu de forma irônica e quando ela não demonstrou nenhum indício de que iria começar a falar, a cutucou debaixo das costelas a fazendo ficar mais irritada. Ela resmungou de forma estridente, mas ele preferiu ignorar — Vai, fala!
— Eu estou procurando alguém inteligente o suficiente para ser o Testa de Ferro de um dos projetos que eu apresentei na Star-teck e que foi negado pelos acionistas — disse de uma vez e Rowan franziu a testa. Masha voltou a olhar para frente.
— Você não pode estar falando sério.
— Pois estou.
— A empresa é sua!
— Não, a empresa é do meu pai — respondeu, erguendo o dedo para pontuar. Rowan a encarou cético.
— Quando você começou a ser modesta? — Masha mordeu a bochecha como um tique-nervoso.
— Tanto faz, a questão é que o Duran está fazendo a cabeça do comitê e está barrando o projeto e colocando merda na cabeça dos investidores. A verba do programa seria o suficiente para colocar a ideia pra rodar e fazer com que a carreira de algum deles decolasse, a única coisa que eu preciso é de alguém que seja bom o suficiente para fazer algo assim, sem saberem que eu estou por trás.
— Mas eu vou coordenar esse projeto – Rowan falou, ainda confuso. Masha sorriu.
— Então eu espero que você fique feliz por uma vez na vida mandar em mim – o lançou um sorriso perfeito, piscando os enormes olhos verdes o fazendo franzir o cenho, quase incrédulo. Para todo mundo Masha poderia parecer um anjo, mas Rowan tinha total convicção de que ela estava bem mais para um capetinha enrustido.
Ele piscou algumas vezes, assimilando o que ela havia acabado de falar e voltou os olhos para o salão.
— Você não acha que isso pode ser meio injusto? Tipo... É uma iniciativa para conseguir descobrir novos talentos e fazendo com que eles apresentem coisas interessantes a empresa — Masha negou com a cabeça.
— Quase achei isso, mas aí eu parei para pensar um pouco sobre o assunto. Se tudo ocorrer como eu espero, conseguirei fazer com que a carreira do aluno seja extraordinária, que esse seja o pontapé inicial para uma vida brilhante — ela virou o rosto para encarar Rowan —, além do mais, eu só quero que o projeto rode, não preciso assinar por ele.
— E porque você está fazendo isso?
— Porque eu sei que o projeto é bom! Eu sei que vai ajudar muitas pessoas, eu só preciso... — respirou fundo, olhando no fundo dos olhos de Rowan — Eu só preciso que isso funcione. Eu venho pensado em algo assim há tempos e eu sei que vai ser incrível.
Ele pareceu entender seu ponto.
— Bom... Eu não sei se tenho alguém aqui que chegue a esse nível, Masha — afirmou dando de ombros. Era a exposição dos alunos do 9º semestre, onde o mais incrível poderia conseguir o investimento, mas que os notórios seriam convidados para um estágio na empresa. — Não ao seu nível. É a exposição do nono, amanhã vamos começar a descer os semestres, a probabilidade de ter algo mais impressionante vai diminuindo gradativamente.
Ela abaixou a cabeça, decepcionada. O celular sobre a mesa acendeu e começou a vibrar com o despertador que ela desligou.
— Bom, se você encontrar algo, me avise, tudo bem? — ele assentiu antes de sorrir. Masha ficou em pé, se debruçando sobre ele para lhe beijar a testa — Por favor, não fale sobre isso para ninguém — cochichou.
— Minha boca é um túmulo.
— Assim espero, pois se você falar com alguém sua boca realmente estará em um, assim como você inteiro — piscou e ele gargalhou, antes de ela se afastar, deixando o jaleco flutuar atrás de si.
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— Harry, eu vou matar você! — Masha disse a guisa de cumprimento quase a caminhonete estacionou em frente ao estúdio de balé. Harry se encolheu no banco, mas abriu a porta, pulando do veículo. — Isso era para estar no laboratório!
Harry Knight era um rapaz bonito apesar de mirrado, ele não deveria ser mais velho do que Masha, era inteligentíssimo, tinha a pele pálida de quem vivia o tempo todo de frente a um computador, os cabelos pretos caindo sobre a testa, óculos de aro quadrado e grosso, além de estar sempre de camiseta de bandas, desenhos ou jogos. Sempre.
— Você não disse! — afirmou e ela negou com a cabeça, fazendo o rabo de cavalo balançar as suas costas observando a camiseta de Harry de Adventure Time.
— Disse sim! — Harry se encolheu ainda mais, mas Masha esfregou o rosto, apontando para a porta aberta. — Consegue colocar isso lá dentro?
— Não é exatamente leve, Mash — ele começou a falar e ela o encarou com os olhos queimando, mas ele abriu um sorriso enorme — mas eu trouxe o carrinho, dá licença, por favor! — falou batendo no carrinho ao lado do motor.
Harry se afastou, voltando para dentro do carro depois de posicionar o carrinho e Masha colocou as mãos na cintura, observando enquanto ele levava a caminhonete para frente e apertava os botões fazendo o guindaste levantar e o motor subir junto com ele.
Foi preciso algumas manobras até ele conseguir apoiar o motor sobre o carrinho de transporte. Harry desceu do carro de novo e pulou até Masha, ajustando os jeans largos antes de puxar a alça do carrinho e pedir para que ela guiasse o caminho.
Infelizmente, o único caminho era o canto do estúdio, já que a porta para os fundos era estreita demais e o carrinho de carga não passava pelo batente. Masha pediu para que Harry levasse o motor até o canto e suspirou ao ver o canto sendo quase poluído pelo motor sujo.
— Sabe, eu posso vir buscar mais tarde se for o caso... — Harry falou, mordendo os lábios se encolhendo de novo. Masha negou.
— Não precisa, quando eu desmontar eu consigo mover ele daqui — afirmou e virou-se para Harry, colocando a mão em seu ombro. — Obrigada por tê-lo o trago até aqui.
— Você não precisa disso, precisa? — A voz de Harry saiu um pouco mais baixa do que o comum e Masha só a ouvir porque estava realmente próxima. Ele empurrou os óculos pelo nariz. — Digo, o dinheiro e tudo isso...
— Eu faço isso porque eu gosto, Harry. E o dinheiro disso não é para mim — respondeu e ele assentiu, ainda parecendo confuso. — Se chegar outro, por favor, me avise.
— Pode deixar, você é a melhor mecânica que temos — Masha sorriu e Harry piscou para ela, antes de virar-se para a porta, apontando para a caminhonete. — Qualquer coisa grita, tudo bem?
— Pode deixar — repetiu, lhe dando uma piscadela que o deixou meio desestabilizado e quase bateu em uma das alunas que entrava pela porta, apertando a alça da mochila enquanto saia.
Masha o observou dar partida no carro antes de virar-se para a garotinha que olhava para o motor com curiosidade. Ela era linda, normalmente era sempre a primeira a chegar, tinha os cabelos castanhos, os olhos cálidos como dois ambares brilhantes e não deveria ter mais do que um metro e trinta. Lorelay usava as mesmas meias-calças cor de rosa de sempre, o collant em um tom um pouco mais claro, as sapatilhas pretas e o tutu rosa-pink.
— Olá, Lore! Tudo bem? — Masha que usava um collant preto e calças da mesma cor, se abaixou para chegar à altura da menina que se aproximou e beijou seu rosto.
— Olá professora! — respondeu — Estou bem e você?
— Preparada para nossa aula hoje? — Lore sempre dizia que sim, sempre animada, mas seus olhos voltaram para o motor novamente e Masha virou-se, vendo o objeto sujo.
— O que é aquilo? — apontou, maneando a cabeça.
— Aquilo é um motor de carro. Ele serve para fazer com que o carro ande, como se fosse um cérebro — respondeu com um sorriso ao encarar a menina. — Você sabe para o que o seu cérebro serve?
Lorelay torceu a alça da mochila e Masha sorriu.
— Seu cérebro é quem manda em você, tudo o que acontece com o seu corpo é porque o seu cérebro mandou fazer, é onde fica seus pensamentos — cutucou a testa na menina. — Quando você quer erguer a mão, você não pensa em como fazer, porque é fácil e automático, então seu cérebro faz isso sem que você perceba, mas quando você precisa fazer um Frappé, as vezes você precisa pensar um pouco, então seu cérebro vai aprender a fazer isso e guardar para que você não esqueça mais e fique tão automático como erguer a mão — Masha virou-se de novo, encarando o motor — O motor de um carro é quase como o cérebro do carro.
— Mas quem dirige o carro não é quem manda nele? — Lore questionou e Masha subiu uma das sobrancelhas, surpresa ao virar-se para ela.
— Sim! Então, vou reformular para você: o cérebro do carro é quem dirige, então o motor é o coração, que é o que faz o carro ficar vivo, ainda que outra pessoa pense por ele. — Lorelay pareceu pensar um pouco, até que enfim compreendesse.
— E porque isso está aqui?
— Porque eu trabalho com aquilo, eu arrumo essas coisas — explicou.
— Mas você não trabalha sendo princesa, professora? A Annie disse que era essa a sua profissão — Masha gargalhou, negando com a cabeça.
— Não, vocês são princesas, mas eu sou o que chamam de engenheira mecânica, quando eu não estou ensinando vocês a dançar, eu trabalho com coisas quase iguais aquela o tempo todo — Lore assentiu uma vez.
— Meu tio também trabalho com aquilo — apontou de novo.
— Sério? Ele mexe com carros? — Lorelay assentiu. — Ele limpa motores, então?
— Não, eu só vi alguns prontos, mas ele faz isso. Ele me disse uma vez — Masha franziu o cenho.
— Ele faz? — Lorelay assentiu. — Você tem certeza disso, Lore?
— Sim, professora. Eu tenho certeza, ele foi chamado uma vez para trabalhar em um lugar grande que faz essas coisas, minha mãe falou, mas ele não foi por conta da vovó que está dodói — respondeu e antes que Masha pudesse prestar mais atenção, outras cinco meninas entraram e Lore deu as costas para Masha antes de correr até elas.
Masha ficou em pé, pensativa e antes que pudesse começar a aula, foi até o quarto, pegando um lençol branco para estender sobre o motor antes de separar a lista de Lorelay Lewis para saber um pouco mais sobre seu tio.
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¹ É um movimento comum no balé. No frappé o pé repousa levemente sobre o tornozelo do pé de apoio, para em seguida esticar a perna e dar um golpe. Pode ser feito para a frente, para trás ou para o lado.
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