Capítulo 18
"Eu estou sonhando, acorda Hannah" – tentava com todas as forças abrir os olhos.
Estou de novo no laboratório, mas tudo parece limpo, estou me vendo chegar amarrada. Como eu era pequena! Vejo que meus olhos cheios de lágrimas e inchados. "Papai, tenho medo. Isso dói muito!" me ouço dizer. Minha mão não está junto, ela quase nunca estava. Meu pai não muda a expressão ao me colocar na mesa, só me manda ficar quieta. "Seja forte, você é o futuro!" foi a última frase dele antes de me amordaçar. Me vejo chorar em silêncio.
Não quero mais ver, mas não consigo fechar os olhos. Vejo ele injetando um líquido vermelho de uma pedra na minha corrente sanguínea e eu ali, pequena, começo a emitir sons terríveis de dor. Quantos anos eu tinha? Não sei bem, acho que 9 para 10 anos.
Tento me movimentar para impedi-lo, mas não consigo. Meu eu pequeno dá gritos abafados por conta da mordaça e vejo lágrimas abundantes escorrendo pelos olhos. Vejo meu pai sorrindo, um sorriso malicioso.
Por que você não me amou simplesmente? Por que me fez viver tudo isso? Por favor, para pai, minhas lágrimas não param de rolar... eu ainda te amava nessa época, te via como meu herói, queria ser inteligente como você.
Meu pequeno corpo se contorce em convulsões e vejo meu pai simplesmente olhando enquanto continua sorrindo e logo meu corpo para.
Será que eu morri? Não, eu ainda estou viva, mas estou imóvel. Provavelmente desmaiei na mesa e então vem outra agulha, com mais um líquido vermelho...
Eu não quero ver, eu não quero ver...
De repente eu estou no campo de treinamento atrás do orfanato. Acho que fiz alguma coisa errada porque meu pai está me chamando. Ele quer que eu mate uma menina, mas eu não quero fazer isso e ele começa a gritar comigo dizendo que a fará sofrer até a morte se eu não a matar. Ele vem na minha direção e começa a me bater. Eu choro em silêncio, não me movo, e então ele me força a vê-lo bater na garota. Ele bate até eu gritar que ele pare. E então ele me oferece uma adaga. Minha adaga. "Mate-a" ele me ordena de novo e dessa vez eu obedeço pedindo desculpas para menina a cada passo, mas ela não está triste. Ela está sorrindo. Será que ela quer morrer? Uso bastante força e corto a garganta dela. Eu continuo chorando enquanto levo a adaga de volta para o meu pai. "Ela agora é sua, pra você aprender que a cada erro seu é uma menina que morre". Sim, lembro desse dia. Foi o dia que ele me deu a adaga. Lembro que decidi ficar com ela para sempre lembrar do ódio que eu sinto dele.
Faço força para acordar, não aguento mais ver nada... Ele agora está me batendo e eu continuo chorando em silêncio. Ele está me mandando parar de chorar... Acorda Hannah, por favor acorda!
Acordei suando e segurando com força a adaga.
Me levantei devagar e fui para o banho, relaxei por pouco tempo, mas o sonho ainda estava muito nítido para eu continuar no quarto. Será que meu quarto da infância ainda estava do mesmo jeito? Não tinha tido coragem de ir até lá desde que eu havia chegado no orfanato.
Saí do banho e me arrumei. Passei pela porta do quarto fazendo o mínimo de silêncio possível, não sabia bem o motivo de eu estar agindo daquela maneira, não seria ruim se encontrasse alguém para me distrair, mas continuava fazendo silêncio. Meus passos me levaram para o corredor secundário. Ninguém frequentava aquela parte do orfanato. Parecia sombrio, mas estava limpo.
Passei olhando os quartos, todos estavam iguais da última vez que os vi. Por que mantiveram as coisas no lugar? Eu era a única que havia tido um quarto só meu ali, ele ficava afastado dos outros quartos. Mecanicamente eu continuei seguindo em direção ao que um dia havia sido o meu quarto até que eu escutei um barulho, eu parei e fiquei tensa. Eu não estava fazendo nada de errado, mas me sentia estranha por alguém me ver ali.
– Hannah, o que você está fazendo aqui? – não havia sentido presença nenhuma ali, estava realmente despistada.
No susto eu puxei a adaga e ataquei a pessoa que havia me chamado, mas ele se afastou com facilidade e segurou a minha mão. Então eu vi com clareza a figura do Rafael. Ele continuou segurando o meu braço. Eu estava assustada, larguei a adaga que caiu fazendo um barulho metálico no chão. Minha respiração estava desregular. Ele manteve o olhar em mim, não parecia zangado, conseguia ver apenas preocupação nas feições dele.
Pacientemente ele esperou que eu me acalmasse e começou a afrouxar a força da mão que ainda segurava o meu braço.
– Me desculpa – sussurrei.
– Aonde você estava indo? – ele perguntou.
– Ao meu antigo quarto.
– Por quê? Acha que vai encontrar alguma coisa lá? – ele parecia calmo, mas tinha um certo ar de reprovação na voz.
– Eu não sei, apenas estava indo.
– Vem, vamos voltar, não tem nada nesses quartos além de más lembranças – ele pegou a minha mão e foi me conduzindo de volta para o corredor principal.
Fazia 3 dias que o Apollyon e o Matteo haviam ido ao submundo buscar respostas. Agnes continuava deitada. Ela havia acordado, mas não queria se levantar. Eu mesma levava comida para ela todos os dias, mas ela comia pouco e sempre me recebia com algum xingamento. Sempre falava que eu iria pagar. Matteo havia ordenado a ela que não fizesse mal para ninguém em momento nenhum, mas isso não incluía me xingar ou gritar comigo, mas eu não me importava.
Sabia que precisava levar algo para ela comer em pouco tempo, mesmo assim deixei que o Rafael me conduzisse pelo corredor.
– Por que não damos uma volta pelas trilhas das montanhas? – ele perguntou.
– Mas... eu posso?
– Claro, você está comigo, não sentirá nenhum desconforto, prometo. Sair um pouco daqui vai te fazer bem.
– Está bem então – comecei sentir meu corpo mais relaxado e apressei um pouco mais o passo para ficar ao lado dele.
Fomos primeiro para o jardim, andamos a passos lentos por ali em silêncio. O silêncio não era desconfortável, talvez naquele momento fosse algo que eu precisasse. Seguimos devagar até a trilha que levava a montanha que eu e Lucy havíamos treinado.
– Eu sei como você se sente – ele disse repentinamente quebrando o silêncio.
Olhei para ele tentando entender o que ele estava querendo dizer.
– Sempre fui tentado a voltar a ver as coisas do passado, mas não vale a pena. Eles não vão estar lá...
– Eles? – eu perguntei.
Antes que ele me respondesse, nos sentamos em uma pedra que havia em cima de uma pequena montanha. Daria uma ótima vista se não fosse o fato de estar a noite, mas dava para ver muitas estrelas, assim que a vista continuava sendo fantástica.
– Nasci no ano de 1708 e vim de uma família nobre de uma dinastia antes da formação do Reino da Itália. Meu pai conheceu a minha mãe por acaso. Ela havia fugido da Grande Guerra do Norte e procurava meios de se sustentar servindo a grandes famílias – ele continuou sem responder exatamente a minha pergunta – Fui educado como nobre e como nobre eu deveria ser sempre por ser o mais velho dos irmãos. Meu irmão, o Ivan tinha uma boa educação, porém ele não tinha as mesmas responsabilidades que eu. Fui prometido a uma jovem que também pertencia a uma das famílias nobres. Eu não questionava sobre meus deveres e passei a cortejá-la, um belo dia ela ficou muito doente e ninguém encontrava uma cura para ela, até que o pai da moça chamou um curandeiro famoso que disse que a curaria, mas que ela passaria a ter inúmeras restrições e para isso foi exigido uma suma grande de dinheiro. A família da moça aceitou, pois sabiam que independentemente do valor eles teriam como pagar. Adiamos nosso casamento até que ela estivesse totalmente curada. Minha mãe e eu nesse tempo éramos muito próximos, por ela ter tido uma vida difícil, ela conseguia me ensinar o valor das pessoas, mesmo que não fossem da nobreza como eu. Meu pai não apoiava esse tipo de atitude, o que me fez perguntar inúmeras vezes o porquê ele havia se casado com ela, mas nunca achei uma resposta para isso. Para ele, eu era destacado e não poderia me juntar com qualquer pessoa. Isso mancharia a imagem da família. Acontece que essa moça mandou me chamar dizendo que queria muito me ver. Fui acompanhado do meu irmão para a residência deles, mas quando eu cheguei todos haviam sido assassinados. A procurei desesperado imaginando o pior. A achamos coberta de sangue, ela estava grudada no pescoço de sua irmã mais nova. Eu desembainhei a minha espada, eu não conseguia acreditar no que meus olhos estavam vendo. Meu irmão fez a mesma coisa, aquilo não podia ser humano. Fomos atacados em uma velocidade descomunal e teríamos morrido ali, se esse tal curandeiro não estivesse perto. Sofremos a transformação sem entender o que estava acontecendo. Não podíamos voltar para casa depois de tudo isso, não aguentávamos o sol. Nunca mais vimos nossos pais. Vagamos pelas noites matando sem muita distinção. Odiávamos aquela vida, mas resolvemos ficar juntos. Fomos dados como mortos pouco tempo depois. Viemos para a América e vagamos por campos de batalhas para evitar a morte de mais pessoas durante a Guerra do Asiento e foi assim que conhecemos o Aruna, que nos ajudou a entender melhor a nossa situação e condição.
Fiquei olhando para ele com um ar curioso e triste. Acho que todos que estavam ali eram ligados por alguma história trágica.
– Você nunca mais viu seus pais, então? – perguntei tentando não parecer inconveniente. Sabia que contar aquilo não era fácil.
– Sempre tive vontade de voltar, mesmo que fosse só para ver como eles estavam. Mas sempre soube que voltar não mudaria nada e hoje... claro que hoje já é tarde.
– E como foi que você conheceu o Bae e o Elon? – eu realmente queria saber mais sobre ele. Não sabia o porquê ele estava me contando aquela história, mas queria saber.
– Eu, o Aruna e o Ivan os conhecemos por um acaso. Estávamos buscando alimento –ele disse essa última palavra baixo, parecia que tentava não me chocar com isso – Então ouvimos um grito de uma mulher e fomos ver o que estava acontecendo. Vimos o Bae segurando o Elon, que não estava conseguindo se controlar. A mulher já estava morta, parece que o Bae estava tentando ajudar o Elon, que havia se transformado fazia pouco tempo. Eu sabia como era passar por isso, então nos oferecemos para ajudá-los e passamos a viajar juntos.
Fiquei tentando imaginar o Elon descontrolado e não conseguia. Ele me parecia tão controlado, igual todos ali. Preferi não seguir perguntando sobre as histórias deles. Tinha medo de saber a verdade. Fiz apenas uma última pergunta antes de encerrar o assunto.
– Por que você resolveu me contar isso?
O olhar dele pareceu vagar pelo céu antes de responder.
– Não sei, me sinto bem quando falo com você – mesmo respondendo ele não me olhava – Me preocupei com a sua reação hoje e tive medo. Você não parecia estar no controle das suas emoções. Isso tudo deve ser muito difícil para você.
Tentava pensar no que responder, eu não sabia muito bem o que tinha passado mais cedo. Não sabia o que realmente estava me conduzindo. Eu não tinha boas lembranças do orfanato e não sabia o que realmente queria encontrar.
– Sinto muito por ter te preocupado. Não acontecerá de novo – queria que ele acreditasse, mas acima de tudo eu mesma queria acreditar naquilo – Nunca tive que tentar controlar tanto o que eu sinto na verdade. Sempre havia sido fácil até então, mas parece que a minha vida virou de cabeça para baixo nesses últimos meses e eu já não sei como me controlar.
Ele já não respondeu nada. Ficamos em silêncio por muito tempo olhando para o céu estrelado antes de decidirmos voltar. Eu estava feliz por ter saído um pouco do orfanato e estava feliz por estar com o Rafael ali, mas também me sentia melhor por finalmente conhecer um pouco mais sobre o homem que eu amava.
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