Exorcizando os Demônios
Estou debruçado e escrevo, envolvido no difícil processo de transformar as ideias em sintaxe e semântica, sem que percam a essência. Apesar disso, percebo quando ele se aproxima, curioso, observando por cima do meu ombro.
A pergunta não demora:
— Escrevendo o quê?
Tento despistá-lo com o óbvio.
— Uma história. Ficção. Coisa besta.
— Sobre o quê?
E meu tiro foi na água. Não se deu por vencido. Deixo a pergunta evaporar no silêncio, como um cheiro ruim sobre o qual não comentamos, na esperança de que o vento leve as moléculas embora, ou que alguém respire mais fundo, aspirando-as mais do que nós.
Ele não desiste. Dispara novamente:
— Sobre...?
Respondo, rendido:
— Sobre um cara isolado, vivendo longe de casa, na pensão de uma velha pequeno-burguesa com delírios de alta burguesia, e seus passeios pela cidade, sua relação com indivíduos de grupos marginalizados, as putas e os mendigos, os drogados e os traficantes...
— Isso é Crime e Castigo.
Era inevitável. Tento contornar.
— Não! Não tem assassinato de velha usurária, ele também não é tomado por paixões e convicções. Vive mais esmagado sob o peso da solidão, cercado por uma muralha de apatia...
— Ah, entendi.
Agora ele me deixa em paz, certo...?
— É O Estrangeiro, do Camus, então?
Errado. Desisto. Fecho o arquivo. A ideia nem era tão boa. Decido começar outra coisa.
Mas ele não vai embora.
— Outra ideia?
— Sim.
— Me conta aí.
— Não. Você vai botar defeito.
— Não vou. Prometo.
— Promete?
— Prometo.
Hesito um pouco, mas, afinal, ele prometeu.
— É sobre um militar que entra num projeto de exploração espacial.
— Legal. Mas é só isso? Qual é o argumento?
— Você prometeu!
— Não coloquei defeito, calma, é que eu te conheço, né, se não tiver um argumento... Vamos e venhamos que você tem essa pegada: só escreve se for pra criticar alguma coisa.
— Isso lá é...
— Então. Qual é o argumento?
— Na verdade a ideia é que os cientistas "desmontam" o cara, retirando tudo o que não for crucial pra manutenção das funções biológicas, substituindo o corpo dele por uma espécie de exoesqueleto, implantando até uma inteligência artificial no cérebro, porque decidem que é a única maneira de mandar um ser humano pra uma viagem espacial com a duração de centenas de anos...
— Tá. Mas e o argumento?
— Bom, a desumanização...
— Blade Runner.
— ...a... a coisificação de alguém com fins mercantilistas...
— Robocop.
— ...e o personagem que não sabe se as vozes que ouve e os impulsos que sente são a insanidade se instalando, pelo silêncio, pela solidão prolongada, ou se é a IA e o exoesqueleto tomando controle em nome "da missão"...
— 2001 – Uma Odisseia no Espaço.
— ...então é ruim?
— Não!
— Ah, ufa.
— Só que já foi escrito por gente melhor.
Engulo em seco. Esse merda tem razão. Mudo a página. Existem outras ideias. Consulto o caderninho vermelho. As ideias ficam lá.
(Não que ele vá me privar de seu adorável senso crítico)
— Ok, e a do cara que tem um amigo que é meio que um guru e com o tempo ele não sabe se o amigo existe mesmo ou se é só uma criação da cabeça dele?
— Clube da Luta.
— E o cara que vê uma menina se matar no metrô, sempre a mesma, sempre do mesmo jeito, e não sabe se é insanidade ou se é mediunidade?
— Opa. Boa!
— Mesmo?
— Sim! Mas você não domina nenhum dos dois assuntos. Vai falar merda.
— E o cara que se vê preso no escritório e toda a humanidade parece ter desaparecido, mas o computador ainda funciona então ele continua trabalhando como se nada tivesse acontecido?
— A ideia sendo...?
Titubeio.
— ...a ideia é... é uma crítica... é contra... é... hm.
— Não sabe, né?
— Não.
— Então sabemos que não vai sair. Se sair, será uma bosta. Nem começa. Perda de tempo.
Encontro um rabisco no caderninho e me bate um estalo!
— Ahá! Essa aqui! O casal que descobre que...
— Nossa, esquetezinha de programa de humor de quinta. O Zorra Total aceitaria, quando ainda era um lixo. Manda pra Praça, talvez eles curtam.
— E o da relação entre o mecenas e o músico, que...
— Deu sono só de ouvir a premissa.
— Não vai sair nada bom?
— Nada. Fecha esse editor de texto.
Desisto.
— Netflix, então?
— Isso. O que tem lá?
— Opa, esse filme parece ser bom.
— Esse você já viu.
— E esse?
— Muito longo.
— E esse?
— Vai dar sono.
Fico puto. Levanto e vou à geladeira. Ele engole em seco. Sabe que a casa caiu quando ouve a gaveta sob o freezer deslizando. Empalidece ao me ver voltar para a sala abrindo a cerveja.
Afogo o senso crítico no álcool e volto a escrever.
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