Capítulo XII - QQVTPI
Amy esperava muita coisa ao passar o cartão, mas "cheiro de queimado" definitivamente não estava na lista.
Assim que ela ouve o bipe de aprovação do painel e se vira para uma porta escondida que agora estava aberta, ela instintivamente fecha o nariz com os dedos, torcendo o rosto pelo cheiro que havia acabado de sentir. A garota já tinha uma ideia do que poderia ter acontecido, porém ela só acreditou quando chegou perto e iluminou o interior da sala.
Novamente, cinzas. Cinzas e papéis queimados em montes ao longo de uma sala consideravelmente pequena se comparada com a que ela estava esperando. Não apenas não poderia ser o que ela estava procurando, como esse lugar não iria dar nenhuma pista para ela, a menor que seja. Alguma frase para ela ficar obcecada por semanas a fio pensando em toda possível interpretação, qualquer coisa para ocupar a mente dela. Aparentemente até o direito de quebrar a cabeça tinha sido retirado, e a garota se viu à mercê do destino novamente.
Mais uma vez, Amy não tinha controle sobre nada. Se esforço desse resultado, então aparentemente tudo que ela fez ainda não era o suficiente. Enquanto ela se agarrava ao resto de esperança que tinha e procurava qualquer vestígio de uma pista, uma parte dela já estava seguindo em frente, talvez aceitando que ela poderia ter perdido. Talvez o certo fosse voltar, pedir perdão ao seu amigo e estar lá com ele, contar histórias das memórias que tinham, possivelmente reatar aquela amizade.
Só que ela simplesmente não conseguia aceitar isso. Se ela contasse todas as memórias dela, ainda faltariam coisas, ela teria apenas a própria perspectiva para contar, algumas coisas sumiriam, coisas que ele lembrava e ela não. Ele adorava esconder memórias boas e contar elas no exato momento em que o coração dela derreteria ouvindo isso, era um clássico, e ela não trocaria aquilo por nada. Se Amy aceitasse que Peter não teria mais as suas memórias, ele não seria mais a pessoa que já foi.
E no momento em que ela viu um papel que não havia sido completamente queimado, já era tarde demais, ela estava novamente determinada a fazer o impossível. Aquele mar de infectados que ela viu anteriormente? Nenhum lugar seria tão bem guardado por nada, e nenhum lugar era impenetrável. Seus anos de infiltrar propriedades privadas ensinaram isso a ela.
— Se esse papel não tiver nada eu vou... — Amy ameaça enquanto se abaixa e pega a folha, audivelmente se assustando quando lê a única coisa que sobrou. — E. M. Walker... Diretora Regional, subdivisão Ark?
E.M. Walker.
Amy instintivamente pensou na única pessoa que veio a sua mente que preenchia esse nome perfeitamente, Elizabeth Montenegro Walker. Só que isso era improvável, até porque Walker com certeza era um sobrenome bem comum. E além do mais, Liz sempre vivia viajando para fora do estado, às vezes até para fora do país. Então não fazia sentido nenhum ela ser diretora regional sendo que nunca estava por aqui.
E o que tornava isso ainda mais improvável para a garota? O fato de que Elizabeth era não só a guardiã dela, como a mãe de Peter.
Ark, por mais que a grande maioria de seus habitantes diga que é uma cidadezinha no meio do nada, esquecida por Deus e por toda grande corporação, era na verdade um poço de segredos. Para começar, a cidade surgiu do nada, uma quantidade suspeita de pessoas se mudando para o interior do estado de Montana, sem nenhum grande polo industrial por perto ou algo que atraia potenciais moradores.
Simplesmente passou a existir da noite para o dia, e o nome era ainda mais estranho. Quando se pensa em uma arca, é comum associar a história da Arca de Noé, um grande navio que carregava dois de cada tipo de animal durante o dilúvio. Tudo bem que não estava acontecendo um dilúvio e ninguém na cidade estava construindo um grande navio e alertando sobre o fim do mundo, porém Ark não tinha nada de especial assim. Sua fauna não era tão diversa, os recursos naturais com certeza não são nada de se admirar e a cidade certamente não é um grande ponto turístico.
Ela só estava lá, e por muito tempo Amy cogitou que esse nome tivesse sido dado por conta da quantidade de monstros que repentinamente surgiram, e que o nome era uma espécie de aviso profético. Possivelmente era uma arca distorcida, a Arca do Demônio ou algo do tipo, um apelido carinhoso dela para o lugar durante os meses em que passou se sentindo miserável.
Esse apelido mudou imediatamente após ela passar mais de um dia caminhando e fugindo de monstros, por fim encontrando pessoalmente a horda de infectados. Se a foto já era macabra — mesmo que com uma péssima qualidade — então o que ela estava vendo estaria nos pesadelos dela por muitos anos. Considerando que ela saia viva disso, claro, pois até para os seus padrões ela estava prestes a fazer algo bem idiota.
Não era idiota a ponto de se resumir a "passar no meio deles como se ninguém estivesse me vendo e esperar pelo melhor", porém as chances com certeza eram baixíssimas. Primeiramente ela precisaria dispersar os infectados de alguma forma, sua primeira opção era causar uma explosão e fazer com que eles se distanciem, pois eles tinham um senso de preservação estranhamente afiado. O problema dessa opção é que ela sentia que estaria causando a morte de centenas de pessoas inocentes, e ela ainda não estava desesperada assim.
Logo, por seu senso de moralidade ainda funcionar, ela se via sem opções. Felizmente isso não era um problema, ela poderia ficar na cidade por vários dias, preparando uma armadilha. Amy sabia que arranjaria suprimentos facilmente, e como ela estava sozinha, eles durariam o suficiente para essa sua estadia. Uma das únicas preocupações que ainda se mantinha em sua mente era o estado da guerra entre a Coalizão e o outro grupo. Se algo acontecesse com as pessoas lá...
Amy nem gostava de pensar nisso.
Por fim só restava lidar com o problema dos perseguidores, que certamente ainda estavam atrás dela. Se ela planejava sobreviver a isso, eles seriam o maior problema. Os infectados não iriam atrás dela imediatamente, eles nem se moviam, porém os perseguidores não hesitariam em transformá-la no almoço do dia. Bem, Amy decidiu que cruzaria essa ponte quando chegasse nela. E enquanto ela teve energia para continuar andando, Amy vagou pelos arredores dos infectados, procurando qualquer brecha, qualquer coisa que pudesse fazê-la cruzar isso em segurança.
Quando suas pernas finalmente fracassaram e ela se viu sem ter como continuar, a garota encontrou um lugar seguro dentro de um antigo prédio empresarial, se vendo no que parecia ser um consultório médico, porém sem nenhum dos instrumentos que se encontrariam ali. Provavelmente já havia sido saqueado depois de tanto tempo, o que era uma pena, já que suprimentos médicos nunca seriam ruins de ter. Trancando a porta do antigo consultório, ela arruma a cadeira... ou maca? Algo assim, era longa e era a melhor cama que poderia ter, então o nome não importava.
Coberta pelo próprio casaco e apoiando a cabeça em sua mochila, a garota aproveitou pouquíssimo o conforto do cômodo escuro enquanto estava acordada, rapidamente saindo desse mundo e se encontrando no mundo dos sonhos. E sonhar ela fez, fantasiando com a vida ideal que ela gostaria de ter, desejando com toda a sua alma a felicidade que estava sentindo em sua imaginação. O que ela não daria para viver naquele universo onde pensar na faculdade era não só uma realidade, como o seu maior medo?
Ela certamente poderia ter problemas assim no momento, os atuais com certeza não eram do seu agrado. E enquanto ela sorria pelas fantasias inventadas pelo seu cérebro — como uma forma de acalmá-la ou torturá-la, era difícil saber — a garota se pega despertada dos seus sonhos por uma voz.
— Por que. Você! Aqui. Interrogação.
Amy acorda com um pulo, se jogando para o lado da maca e puxando a sua pistola o mais rápido que pôde, sentindo seu coração se aproximando de pular por sua boca. Enquanto ela busca a origem do som, ela começa a processar o que havia ouvido. Em vez de "uma voz", talvez fosse mais correto dizer "várias vozes". Era como se várias pessoas tivessem se juntado para terminar a frase uma da outra, com tons variados e que definitivamente não se encaixavam entre uma palavra e outra.
— Repetição, por que, aqui. Interrogação dupla.
— Que porra que é você? Onde você tá?
Amy olha para a sua mão que deveria estar auxiliando a mirar a sua arma e percebe que ela estava tão trêmula que parecia que um terremoto havia começado em Ark e só ela havia sido vítima dos tremores. Ela estava acostumada com monstros, pessoas ruins ou qualquer coisa variada. Claro, ela não era imune a medo mesmo nessas situações, mas saber contra o que estava tentando sobreviver era sempre uma vantagem. Nesse caso de agora? Ela não só não tinha a mente no lugar, muito por ter acabado de acordar e o contraste entre os seus sentimentos tinha complicado as coisas, como não fazia ideia do que eram aquelas vozes.
Ela parecia vir de todos os lugares do cômodo ao mesmo tempo, e sua lanterna não revelava nada que ela não tinha visto antes.
— Medo. Confusão! Compreensível. — as vozes ressoam e Amy começa a sentir vontade de tapar os seus ouvidos, percebendo que a cada palavra daquela coisa ela sentia como se a parte de dentro do seu corpo estivesse tremendo também. — Efeito colateral. Inesperado.
Com um movimento rápido e desesperado, Amy puxa a sua mochila e coloca nas suas costas, ainda apontando a lanterna para todos os lados. Ao perceber que ela não conseguia enxergar aquela "criatura", seu primeiro instinto foi correr até a porta, apenas para perceber que ainda estava trancada do jeito que havia deixado antes de dormir. Quando ela se toca que teria que buscar a chave em sua mochila para então conseguir fugir, sua mente faz a ligação óbvia: ela não teria tempo para isso, a sua chance havia sido gasta. E quase como uma confirmação, ela sente suas costas congelando, um arrepio tão perverso subindo que parecia estar compelindo sua alma a fugir antes de seu corpo.
— Não se, vire. Humanos. Tendem a achar. Aparência desconfortável.
Aquele aviso parecia tão óbvio, tão lógico, e felizmente dentro dos planos da garota. Ela não estava com a mínima vontade de se virar, e se aquilo estava tão preocupado em não deixá-la "desconfortável" — como se ela já não tivesse feito isso antes — então talvez pudesse ter alguma chance.
— O que... o que v-você quer comigo?
— Pergunta inicial! Por que. Você! Aqui. Interrogação.
— P-por que eu estou aqui? No consultório? — ela pergunta nervosa e confusa, lentamente levando a sua mão até sua mochila e rezando para aquilo não perceber que ela estava tentando alcançar a chave. Talvez, se ela fosse respondendo as perguntas de uma forma vaga, tempo suficiente fosse ser criado. — Passar a noite escondida, só isso.
— Interpretação incorreta. Aqui. INFECTADOS! Muitos. — a coisa responde e Amy sente mais uma vez aquele mesmo arrepio, mas apenas quando ela menciona os infectados. Dessa vez a voz naquela palavra específica parecia ter saído diretamente dos últimos momentos de alguém, como se um áudio da infecção de uma pessoa desesperada tivesse sido tocado. — Escolha ruim. Humano, estúpido, interrogação.
— Ah... o mar de infectados, sei. Eu precisava invadir um prédio para ajudar um amigo, só isso.
Ela sente que falar a verdade parecia ser a melhor escolha, e ela sabia falar exatamente o suficiente para não complicar mais ainda aquela situação.
— Humano. Amigo. Humana. VEGA! Interrogação.
— V-vega? Como que... — ela ouve e por alguns momentos esquece que estava com sua vida em risco, além disso quase virando-se de costas, mesmo sob aviso de não fazê-lo. — O que você sabe?
— Informação não pertinente. Dívida com. VEGA! Paga, agora.
Após isso, o arrepio imediatamente cessa, e Amy sente como se um peso tivesse sido retirado do seu corpo inteiro. Virando-se de costas lentamente para evitar qualquer acidente, ela percebe que até mesmo o cômodo parecia menos escuro, como se as sombras tivessem ido embora também. O que quer que aquilo seja, definitivamente não estava mais lá.
Caralho, ela pensa após finalmente conseguir relaxar e sentar no chão, exausta mesmo após dormir por horas. Seus dias pareciam piorar a cada instante, e ela começou a perceber que talvez, mas só talvez, ela fosse um "Humano, estúpido". Se ela conseguisse ser normal por um único instante e não tomar decisões impulsivas, ela estaria na Coalizão, ela não teria ameaçado matar algo na cabeça do seu melhor amigo, ela não teria brigado com duas pessoas que só queriam ajudar ela e uma pessoa importante para ela.
E o mais estranho? Por mais que ela se sentisse estúpida por isso, ela não se arrependia tanto quanto sentia que deveria. Amy estava com raiva, raiva pelo medo que estava sentindo até agora e raiva por quão baixo ela se deixou cair. E acima de tudo ela estava com raiva de Vega, então aquela ameaça foi a melhor coisa que disse em muito tempo, pois representava exatamente o que ela sentia que não só precisava como queria fazer.
Peter vai voltar e Vega vai morrer. Essas duas conclusões não tinham como funcionar a longo prazo se fossem separadas, era óbvio. E logo quando estava aceitando a sua estupidez e cogitando que talvez pudesse voltar a dormir de alguma forma depois disso, o destino mais uma vez age com crueldade e indiferença, mudando seus planos. Como se fosse um arauto do apocalipse, um perseguidor uiva do outro lado da porta do consultório, e mais uma vez Amy teria que pensar rápido para sobreviver.
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