Capítulo VIII - Naquele dia, você
O dia estava como qualquer outro: calmo e agradável, o clima estava na temperatura perfeita entre calor e frio, e não parecia que ia chover tão cedo. A rotina já estava em seu fim, ambos treinaram até seus corpos chegarem ao limite e agora estavam apenas assistindo um programa qualquer na televisão enquanto conversam sobre tudo. Embora fosse um costume comum, o dia não poderia estar melhor.
Ouvindo o garoto falar sobre sua obsessão da semana sem parar, Amy não conseguiu segurar um sorriso, recebendo um olhar de confusão como resposta. Ela sentia tanta falta disso, nada nesse mundo poderia ser o bastante para pagar a falta que esses dias deixaram, quando ela ainda tinha uma vida. E quando seu sorriso começou a sumir, ela repentinamente acorda.
— Porra...
Ela reclama em voz alta enquanto se levanta sem pressa da cama, sentindo seu corpo pesado por conta do dia anterior. Após lutar contra a vontade de dormir o dia inteiro, ela finalmente fica de pé e percebe que estava sozinha no quarto. Ótimo, ela pensa e se arrepia quando lembra do episódio com Emma naquela noite. Mesmo exausta como estava, Amy se surpreendeu com sua capacidade de dormir depois daquilo.
Sua rotina matutina passou em um piscar de olhos, e ela já estava pronta para começar a traçar uma rota para seu plano, girando a maçaneta da porta e suspirando quando vê duas pessoas esperando ela do outro lado.
— Amy, a gente tem que conversar. — James anuncia a sua presença enquanto se convida para dentro do quarto antes que a garota tenha a chance de responder. — Você tem um tempinho, né não?
— Bom dia James, bom dia Emma, tô ocupada agora.
Ela responde e se prepara para só ignorá-lo e sair do cômodo, mas a parceira do rapaz passa pela mesma porta que ele e a fecha, servindo de cobertura para não deixar ninguém passar por alí. Esse comportamento estranho dos dois só poderia significar uma coisa: emboscada.
O plano era até bom, Emma ficaria na porta bloqueando a saída e James começaria um ataque por trás, esperto, mas não mais esperto do que ela. No momento em que viu os dois instintivamente ela já uma mão próxima de sua arma, e ela tinha plena confiança de que poderia sacá-la e dar um tiro em pelo menos um dos dois.
— É sério, precisamos mesmo conversar.
A ruiva diz com uma voz séria, contrastando com sua aparência desesperada de poucas horas atrás.
— Conversar, é? Diz ai então.
— Por que você tá assim? Digo, é bem melhor do que o poço de apatia que 'cê tava no último ano, mas você tá bem diferente. — James começa e por alguns instantes consegue abaixar a guarda de Amy, que genuinamente se surpreende com o assunto. — Eu achei que entre todo mundo que conhecia o Peter, você seria a pessoa que mais ficaria feliz com a volta dele.
Em vez de usar a pistola como uma ferramenta de auto-defesa, agora a garota queria usá-la para descontar a raiva que estava sentindo naquele momento. Depois de tudo que ela passou, ela não conseguia acreditar que James estava tentando reclamar com ela. Amy não esperava que ele soubesse de tudo, afinal ela garantiu que ninguém saberia do que aconteceu naquele dia, porém ainda assim ela estava incrédula com a ousadia dele de vir cobrá-la por conta de suas atitudes.
— Não fode, James, você vai mesmo vir me dizer o que eu deveria sentir?
— Por que você tá irritada? — ele questiona confuso, cruzando os braços e adotando uma expressão de indignação. — Nosso amigo volta depois de meses desaparecido, sem memórias e precisando da nossa ajuda, e você espera que eu não fique estranhando quando você fica repetindo toda hora que não é ele?
Ele estava certo, ela sabia que ele estava certo, e por um instante ela considerou contar tudo que aconteceu e o seu plano, mas isso nunca poderia ser uma opção. Depois de ontem ela garantiu que não conseguiria confiar em Emma, afinal, ela com certeza era uma infectada. E James? Bem, ele não parecia estar infectado, mas era impossível distinguir só de olhar, então qualquer um poderia estar sendo controlado por Vega.
Então mesmo o garoto tendo razão, Amy tinha mil e um motivos para não mudar sua atitude.
— Porque não é ele, ponto final.
— Então conte para nós quem é ele.
Emma decide interferir na conversa e caminha na direção de Amy, e esta teve que usar toda a sua força mental para não desferir um soco nos dois nesse momento. Em Emma simplesmente por raiva, mas James... como ele consegue ser tão cego?
— E por que você se importa? Porra, você e o Peter conversaram uma vez na vida e nem foi uma conversa muito longa. Agora você aparece do nada com ele depois de sumir por semanas, surta durante a noite e fica questionando o que não é da tua conta? Vai se foder, Emma.
— Eu devo a minha vida a ele, é por isso que eu me importo.
— Amy, a gente veio aqui por preocupação, só isso. Eu sei que você nunca mentiria pra prejudicar ele, mas eu queria entender o que tá rolando. É um metamorfo ou... algo assim?
A cada palavra que saia da boca daquela dupla, Amy precisava de mais e mais controle para não enlouquecer de vez, ao ponto em que ela já estava dando voltas pelo cômodo para não acumular energia demais.
— Cacete, James, você não ouviu nada do que eu falei? Ela sumiu por semanas e volta querendo saber da vida inteira de um cara que ela mal conhecia, você já se perguntou se a história dela faz sentido? Como que um moleque sem memórias vai salvar a vida de alguém?
— E-eu não perguntei da vida inteira dele, mas eu sabia de vocês dois e queria entender o que ocorreu.
— É, eu também achei estranho, mas que merda isso tem a ver com o que eu te perguntei? — James parece ficar cada vez mais indignado com a situação, aumentando o tom de voz a cada frase. — Você tá escondendo alguma coisa, eu tenho certeza.
Novamente, ela sabia que não era culpa dele ser tão idiota assim, ele não sabia do que ela sabia e nunca iria. Tudo aquilo fazia tanto sentido na cabeça dela, as coisas eram tão óbvias, o comportamento de Emma era tão bizarro para passar despercebido, céus, eram tantos indícios que sua cabeça chegava a doer.
— Tá, você quer saber? Sim, eu estou escondendo, e eu quero mais que você e sua amiguinha in- — Amy morde o próprio lábio para impedir-se de continuar aquela palavra. — esquisita vão pra casa do caralho. Eu vou resolver tudo sozinha.
— Cacete, desde quando você é tão babaca? Eu quero ajudar o meu amigo também, eu tenho esse direito!
Babaca. Ela pensou nessa palavra em silêncio por alguns instantes, questionando-se sobre como responder isso, mas nada veio a sua mente. Afinal, ela concorda, ela era uma babaca. Não acreditava que foi sempre assim, porém definitivamente estava sendo agora.
Por que? Bem, para Amy o motivo era óbvio. Ela não conseguiria explicá-lo, talvez por ser óbvio demais. No fim do dia, nenhum deles jamais entenderia a pressão colocada sobre a garota por conta do que ela sabe, então ela não poderia estar errada. Babaca? Sim, era necessário, errada? Não.
— Eu não tô te impedindo de nada, se vira. — ela responde, instintivamente evitando contato visual com a dupla. Se ela não se conhecesse melhor, até diria que era fruto de uma sensação de vergonha. — Hoje a minha agenda tá cheia, então eu posso sair?
Acenando com a cabeça, James pede para que Emma se afaste da porta, e ela o faz. Sem mais nenhuma palavra, Amy se retira cabisbaixa, com passos silenciosos como sempre. O silêncio repentino faz com que o clima no quarto fique pesado, e sabendo que a ruiva não diria nada sem que alguém iniciasse a conversa, ele abre a boca.
— E-eu não entendo. Ela poderia só abrir a boca e explicar o motivo dela estar assim, porra, é tão errado eu querer entender isso?
— Não.
Emma responde impassível como de costume, aparentemente mais focada em suas próprias ideias do que nas lamentações de James.
— Eu sei que ele voltou faz só um dia, não deu tempo de ninguém processar nada, foi tudo tão... rápido. Mesmo assim, ela vem reagindo do pior jeito possível e se estressa quando eu acho estranho? E ainda por cima vem te acusar de alguma coisa, tipo, o que você tem a ver com a história?
— Ela está confusa, James, creio que o melhor seja dar tempo e espaço até ela se sentir confortável, mas admito que também estou curiosa.
— É, acho que você tá certa... — o rapaz admite enquanto se escora na parede e coloca as mãos no rosto, suspirando e se preparando para ficar em silêncio. Porém, algumas coisas que Amy disse ficaram em sua cabeça, por exemplo a questão de Emma se importar tanto com aquilo. Ele realmente acreditava que essa "dívida" poderia ser justificativa o suficiente, porém algo incomodava ele. — Só me tira uma dúvida, sem querer acusar ninguém de nada, mas como ele te salvou?
— Peter?
— Isso, tu mencionou que deve a vida a ele, como isso aconteceu?
Encarando ela sem perder o foco por nenhum instante, James percebe que a garota parece pensar um pouco na resposta, até mesmo perdendo sua expressão apática de sempre. No lugar aparentava estar nervosa, ou ao menos era o que parecia. Péssimo sinal, ele pensa.
— B-bem... eu estava presa, calhou dele estar próximo e me ajudar.
— Presa como? Foram semanas de sumiço, né?
— Sim, foram semanas, meu time acabou sendo encurralado por um grupo de monstros, minha saída foi bloqueada quando isso aconteceu, por sorte estávamos com uma quantidade enorme de suprimentos. — Emma continua sua história e cada vez mais criava certa firmeza em seu tom de voz. Embora todos os detalhes encaixassem até então, a pulga atrás da orelha do rapaz não havia sumido. — Infelizmente, fui a única sobrevivente, quando Peter chegou eu já estava sozinha por dias.
— Quais monstros que foram mesmo?
— Ah... perseguidores, criaturas brutais.
Concordando com a cabeça, James afirma que entendeu. Sem que Emma soubesse, no entanto, ele havia acabado de confirmar que a história era mentira, ou pelo menos essa parte. Perseguidores eram de fato criaturas brutais, muito por conta de sua inteligência alarmante. Eles sempre vagam em bando, atacando em conjunto quando encontram uma presa grande o suficiente para alimentar todos. Mesmo que a criatura fuja, eles vão atrás até conseguir capturá-la, e se ela se esconder — como no caso de Emma — ficam até o fim, observando em turnos, nunca tirando o alvo de vista.
Então, a menos que algo tenha acontecido, um bando de perseguidores nunca teria desistido de um grupo grande de humanos apenas por conta de semanas de espera.
Embora tenha sido ótimo confirmar isso, uma parte do rapaz fica triste, agora tendo a certeza de que as duas escondiam algo dele. Emma era alguém que ele mal tinha interagido durante todos os seus anos na escola, mas Amy era uma amiga próxima. Não tão próximos quanto ela e Peter, afinal, alguns casais de décadas não conseguiam ser tão próximos quanto aqueles dois. Mesmo assim, de certa forma aquilo o deixava irritado.
Perdidos em seus próprios pensamentos, a dupla se surpreende quando sentem o chão tremendo. De início era apenas uma pequena vibração, imperceptivel o suficiente para talvez ser algo de suas cabeças, porém repentinamente o tremor fica tão forte que eles precisam se segurar em alguma coisa para evitar uma queda. Por sorte, aquilo parece passar rápido.
— O que foi isso? — Emma pergunta confusa, se reequilibrando. — Um terremoto?
— E-eu não ac-
Antes que pudesse terminar sua frase, ambos ouvem um som tão alto que seus ouvidos doem, e junto com outro tremor eles podem confirmar: era um bombardeio.
Pernas doloridas, costas travadas, olhos ardendo e uma falta de vontade considerável para fazer qualquer coisa. Se ele já passou por uma noite pior em sua antiga vida, não saberia dizer, mas certamente essa estava no topo da lista. Embora seu corpo estivesse gritando em dor, sua mente estava completamente vazia, o que nessa situação era uma pena, visto que o garoto adoraria que Vega estivesse dando algum sinal de vida.
Movendo a sua cabeça para o lado, Peter vê que sua cela ainda estava fechada, portanto ele havia perdido qualquer motivo que poderia ter para não voltar a dormir. Dormir, acordar se sentindo miserável, dormir de novo. Esse ciclo foi repetido tantas vezes que o rapaz não duvidaria se o dissessem que ele estava ali por vários dias e várias noites. A única razão pela qual ele mesmo não chegou a essa conclusão foi o fato de seu corpo não ter melhorado.
Ele dormiu e acordou dezenas de vezes, e toda vez que abria os olhos esperava alguns segundos para confirmar se Vega ficaria em silêncio, a resposta era sempre sim. Quando estava começando a cogitar bater a própria cabeça repetidas vezes na parede até desmaiar, Peter notou algo estranho na porta do seu "cômodo". Mesmo sabendo que precisaria levantar e buscar informações para resolver a situação caso fosse Laura abrindo a cela, uma parte sua esperava que não fosse, só pela chance de continuar dormindo.
E para a sua felicidade e confusão, não era Laura, e sim uma garota que nunca havia visto antes. Baixinha, jovem e de uma aparência marcante, a pessoa na sua frente parecia estar inspecionando ele dos pés a cabeça, instintivamente ele fez o mesmo. A menina era uma jovem asiática, talvez tendo quatorze ou quinze anos no máximo. Seu cabelo era loiro e preso em um coque, e por mais que suas feições pequenas fossem até "fofas", na opinião do rapaz, seu olhar quebrava completamente isso.
Ela parecia tão morta quanto os corpos que viu no momento em que acordou, talvez até mais. Seus olhos escuros pareciam negar a existência de qualquer luz nela, e ele se perguntou como alguém mais jovem do que ele poderia ter uma expressão dessas. Por fim, suas roupas eram simples: ela usava uma calça moletom folgada e uma jaqueta militar. Não parecia ter nenhum indício de uma mochila ou coldres para armas ali, e isso era estranho.
— Você tá com uma cara de merda.
A garota afirma e dá um sorriso convencido, provavelmente pensando para si mesma que "cara de merda" ainda era pouco se comparado com a realidade.
— Eu te conheço? — Peter pergunta, sabendo que a resposta provavelmente era algo como "sim, você lembra de mim?". — Não, pergunta errada, deixa eu advinhar: sim, eu te conheço, mas eu não lembro de nada, então você me odeia e quer me matar ou quer me usar como uma arma, é isso?
O rapaz se levanta e se aproxima das barras da cela, monologando e tentando encerrar aquela conversa o mais rápido possível caso ele estivesse certo. Depois dos eventos de ontem confirmarem que sua vida ali seria um inferno, ele não tinha espaço para o ódio de mais uma pessoa.
— Credo... você é reclamão assim sempre? Não, tu não me conhece e eu também não te conheço, eu vim aqui te conhecer na verdade, mas acho que tô me arrependendo.
— Você veio... me conhecer? — Peter questiona surpreso, e de certa forma aliviado por estar errado, mesmo que a ofensa dela tenha mexido com ele. — Desculpa, é que já tem três pessoas pegando no meu pé por isso, e ontem foi um dia difícil.
— E uma noite difícil também pelo visto. Olha, fica na boa, eu não odeio você nem quero te matar, muito menos te usar como arma. O motivo pra eu vir aqui é simples. — a garota sorri cada vez mais, aparentemente tentando conter sua animação. — Eu preciso de uma mão direita.
Talvez fosse ingenuidade de sua parte acreditar naquilo, o desespero de um homem falando mais alto do que sua razão. Mesmo sabendo que possa estar errado, Peter fica intrigado com o que a menina está dizendo, e um lado seu acreditava que talvez ele pudesse tirar esperança daquilo.
— Por que uma mão direita? Quem é você?
— Meu nome... é Kimiko Horokeu. — ela responde como se estivesse se apresentando como uma pessoa muito famosa e renomada. Mesmo tendo a impressão de que ela não era nada disso, Peter não lembraria se fosse. — Eu sou a próxima líder de uma organização muito grande, e eu decidi que poderia te ajudar muito estar comigo.
Uma organização grande? Talvez aquela Hyperion que tanto vem aparecendo? Não importa, aquela história era estranha demais, ele precisava se convencer disso. Uma garota de quatorze anos clamando que lideraria uma organização grande? Ele estava para baixo, se sentindo derrotado em apenas um dia e necessitado de qualquer esperança, mas ele precisava conter aquela parte sua que estava acreditando nela.
— Como eu sei que você tá falando a verdade? E por que você me quer?
— Uma coisa de cada vez, moleque. Geralmente eu não faço favores para os outros, não sem receber algo, mas eu vou dar essa colher de chá pra você. Em alguns dias, vai rolar uma confusão entre a Coalizão e outro grupo, nessa hora tu vai ter a chance de zarpar daqui, o que você faz depois é escolha sua. — a garota diz com tanta confiança que cada vez mais o rapaz se sente atraído a aceitar aquilo. — E essa tua outra pergunta é fácil, você já tá mostrando que não gosta do que tá rolando contigo.
— É impossível gostar.
— É, eu sei, mas o buraco é mais embaixo. Eu dei uma lida sobre você, então não vou fingir que sei tudo sobre sua situação, mas sei o bastante pra saber que você tá na merda desde cedo. A Hyperion te criou pra usar de arma, te privaram de uma infância normal, te fizeram viver com uma agente que fingiu ser sua mãe esse tempo todo, isso e muito mais.
Ok. Peter pensa enquanto recua e se senta no colchão, processando tudo o que ouviu. Se existe um momento pra duvidar da história dela, esse momento é agora. Ele foi criado pela Hyperion? Ela não trabalha com eles? A mãe dele em sua vida antiga era uma agente fingindo ser sua mãe?
Ele não fazia ideia se isso era verdade, porém era incapaz de provar que era mentira.
— E pra que você me quer com você?
— É simples, eu quero destruir a Hyperion por completo. E quem melhor do que a pessoa que eles tentaram transformar em uma arma? Você pode não lembrar de nada agora, mas eu tenho certeza que você odiaria eles se lembrasse.
— E-eu não sei se posso confiar em você.
— Claro, né? Se você confiasse em mim tão cedo ai sim eu iria embora e te deixaria apodrecendo no porão da mulher que fez de tudo pra te matar quando tu era uma criança. — Kimiko comenta em tom de piada, mas o rapaz teve a impressão de que ela estava falando completamente sério. — A gente faz o seguinte, você foge quando eu te falei, você vem comigo e eu dou um jeito nessas tuas memórias, fechou? Depois disso você decide o que fazer.
Aquela oferta agora estava perfeita. Com o conhecimento dela, ele poderia obter respostas para perguntas que nem sabia que tinha, fora isso poderia solucionar o seu problema e sair vivo das mãos de Laura. O único problema que restava era o mais óbvio: ele realmente podia confiar em uma criança que apareceu do nada com histórias tão absurdas? Claro, ela poderia mentir muito mais para se aproveitar de seus problemas, mas ao mesmo tempo poderia ser tudo um plano.
— Eu posso pensar um pouco sobre isso antes de aceitar? Sem ofensas.
— Não ofendeu, mas Peter, fica o aviso: não me faça esperar tanto, muito menos ache que eu preciso de você mais do que você precisa de mim, sacou? — a garota comenta e sua voz parece perder todo aquele carisma que antes tinha, agora representando uma pessoa assustadora. Se o objetivo dela fosse intimidar o rapaz, então ela havia conseguido com folga. — Te espero depois da briga dos grupos.
Vendo ela recuar como se estivesse indo embora, Peter decide fazer uma pergunta que considerava importantíssima.
— Espera! Se eu conseguir fugir mesmo, onde eu te encontro?
— Você não me encontra, eu te encontro.
Ela responde com a mesma voz séria de antes e, como se não fosse nada, faz a coisa mais absurda que Peter viu desde que acordou: a pele da garota começa a vibrar rapidamente, e aos poucos Kimiko fica inteiramente invisível, sumindo diante de seus olhos. Boquiaberto, o garoto cogita estar alucinando tudo aquilo, afinal, ela realmente havia desaparecido. Não foi uma ilusão ou um truque barato, foi invisibilidade completa.
Diante dos seus olhos.
Se as dúvidas sobre ela fossem pautadas nela ser uma criança, então Peter já estava mais do que convencido. Bem, não era pra tanto, mas o que custaria dar uma chance para uma pessoa que pode ficar invisível quando quiser? Talvez ele até possa convencer James e Emma a irem junto com ele, visto que são seus únicos aliados.
Entretendo todas as ideias em sua mente, o garoto é pego de surpresa com a aparição repentina de Laura, que se faz presente batendo na grade metálica com força. Ele provavelmente estaria incomodado com aquilo se não estivesse animado demais para isso.
— Sem muito papo, vem comigo, agora.
Aproveitando a quantidade de pensamentos bons que estava tendo no momento, Peter se distraiu de tudo de ruim que poderia acontecer com ele após o tom de voz estranho da mulher. Ela sempre estava séria, em um único dia ele já conseguiu entender isso. O problema é que ele havia acabado de ver pela primeira vez ela séria, irritada e preocupada ao mesmo tempo, o que podia ser algo terrível. Bem, se fosse pra me matar ela já tinha feito isso. Ele se reconforta com a lógica mais simples que pôde pensar.
— Escuta aqui, é assunto sério. — Laura chama a atenção dele e ele vê um novo lado dela. Em suas breves interações nas últimas vinte e quatro horas ele já teve a certeza do temperamento dela: seriedade constante e uma pessoa extremamente irritável. Mesmo assim, ela parecia ter tudo sob controle. Agora? Nem tanto. — Não importa o que aconteça, você tem que ficar no abrigo.
— E o que tá acontecendo?
Quase como se as circunstâncias estivessem se movendo para respondê-lo, o rapaz e a mulher se apoiam nas paredes da escada que levava para a superfície, se esforçando para manter o equilíbrio após um tremor repentino. Quando finalmente são capazes de ficar de pé normalmente, Laura apenas olha para Peter em resposta, vendo o garoto completamente apavorado.
— Não seja um covarde agora. — ela diz enquanto arrasta ele pelo braço, subindo as escadas e abrindo as portas, dando uma visão ainda pior do que estava acontecendo. — Mantenha a compostura, você tem que chegar no abrigo com urgência.
— M-mas e o resto dos prisioneiros? — o rapaz questiona sem saber o número exato de seus companheiros no subsolo, apenas sabendo que existiam pelos sussurros que escutou durante a noite. — Eles não estão em perigo?
— Sim, e eles são dispensáveis, você não.
Ela responde sem hesitação, o que deixa Peter ainda mais assustado com a frieza dela ao assumir o quanto desconsiderava aquelas vidas. Tentando evitar olhar para ela, o rapaz percebe que seus arredores se assemelham a um campo de batalha.
O prédio principal do colégio e os anexos estavam danificados, alguns mais do que outros. Por não ver fogo cruzado e perceber que todo tiro aliado aponta para a parte de fora dos muros, ele presume que a verdadeira batalha ainda estava distante. Os dois caminharam por pouco tempo, evitando campo aberto e sem parar por nada. De certa forma, a calma de Laura mesmo durante tudo aquilo era reconfortante para Peter, que a cada explosão nova que ouvia temia ter perdido algum membro seu sem perceber.
Pegando um atalho entre dois edifícios, a líder reage rápido após outra explosão inesperada.
— SAI DAI!
Ela grita e empurra o rapaz na sua frente com toda sua força, jogando-o longe o suficiente para que ele não seja atingido por destroços que caem repentinamente. Mal tendo tempo para processar, Peter olha para o seu corpo em busca de quaisquer ferimentos graves, mas só vê pequenos cortes e poeira. Seu próximo pensamento foi o de buscar por Laura, mas isso se resolveu por si só.
— Moleque? Tá vivo? — ela grita do outro lado dos destroços, e por alguns instantes Peter acredita que seria melhor se ela não tivesse tido tanta sorte. Mesmo assim, se sentiu mal por ter pensado nisso, já que ela havia acabado de salvá-lo. — Se você se ferir, ache Amy, ela deve estar no abrigo com o resto.
— Q-quê? Amy?
— Não faz muita pergunta, só corre até o ginásio o mais rápido que você conseguir.
Somente quando ele estava correndo e tapando os ouvidos com as mãos por conta do barulho intenso que Peter começou a se questionar sobre o que tinha ouvido. Procurar Amy caso ele fique ferido? Faria sentido se ela fosse médica ou algo assim, mas considerando que ambos tinham a mesma idade, as chances eram bem baixas. Se não for isso, talvez pudesse ter a ver com o fato do ferimento em sua orelha ter se curado em pouco tempo, e Amy saberia o que fazer com isso.
Ótimo, ela sabia de muita coisa, e por alguma razão Laura sabia que ela sabia.
Seguindo uma mistura de instinto e memórias confusas — e cada vez mais difíceis de manter em sua mente — que pegou de Emma, o rapaz não demorou muito para finalmente chegar ao seu destino. Vendo portas duplas metálicas em sua frente, ele se aproxima e dá três batidas, mas algo chama a sua atenção antes disso. Um arrepio em sua nuca o dá a estranha sensação de estar sendo observado, e cedendo a sua curiosidade, ele se vira de costas e olha para o topo de uma das torres de vigia, e apenas assim ele entende aquela sensação.
Com uma cara de choque que rapidamente se torna um grande sorriso, Kimiko estava observando o rapaz de longe, e ele não tinha certeza de quanto tempo ela estava ali. Acenando um adeus com sua mão direita, a garota diz algo sem se esforçar para falar alto, e com uma leitura labial rápida ele imaginou que se tratava de um "te vejo depois".
Antes que ele pudesse sequer cogitar ir até ela, as portas se abrem e uma pessoa o puxa para dentro com rapidez, e quando ele consegue olhar para a direção de Kimiko novamente, ela já não estava mais lá.
Ela é tão legal.
Ele pensa e abre um sorriso disfarçado, sabendo que ela era a chance mais provável dele sair dessa e recuperar suas memórias. Finalmente dando atenção para quem quer que tenha puxado ele para dentro, Peter se depara com Emma, que por sua vez estava com um olhar de preocupação.
— Peter! Você está machucado? Alguma bomba acertou você?
Ela pergunta enquanto gira o rapaz e o inspeciona atrás de quaisquer feridas, porém ele mesmo é pego de surpresa quando percebe que os cortes leves que tinha adquirido recentemente já não estavam mais lá. Antes ele estava pronto para fazer essa pergunta para Laura como parte do trato dela, mas agora existia a opção de tentar tirar essa informação de Amy, embora isso de alguma forma parecia ainda mais difícil do que sua outra opção.
— Não, não, eu tô ótimo, como que vo-
— E de resto? Sua noite foi boa? Soube que Laura o levou para a prisão, mas já estava pronta para ir com James até o escritório dela e pedir mais liberdade para você. — Emma diz enquanto termina sua inspeção, porém sem perder sua expressão de preocupação. — Digo, ela não pode só fazer isso com você! Não é como se ela soubesse do que você consegue fazer.
— Ah... Emma... ela sabe.
Cobrindo a boca com a mão, a ruiva parece ficar extremamente surpresa com essa informação, e Peter consegue sentir que a mente dela estava pensando em várias formas de impedir que ele morra. Especificamente, estava pensando em fugir de lá.
Como que eu sei disso?
Ele se distrai com isso, não prestando muita atenção enquanto Emma divagava sobre como ele devia tomar cuidado, sobre os perigos dela e outras questões. Ele não sabia se ficava surpreso com o fato de saber exatamente no que ela estava pensando ou se admirava o quão confiável ela era. A esse ponto ele estava esperando que ela estivesse na fila de interrogatório por conta dele ter revelado não lembrar de nada. Porém, ela não parecia mostrar preocupação com isso, e genuinamente só estava tratando-o bem.
Uma surpresa, mas uma boa.
— Enfim, creio eu que o melhor rumo seria aproveitar do caos que essa batalha irá gerar e fugir, sinceramente, não gosto desse lugar.
— Faz sentido, na verdade... — ele responde como se estivesse ouvindo tudo até então, e ao ouvir que o plano dela coincidia com o dele, decidiu que ela poderia se mostrar prestativa. Novamente, sentiu que sua confiança poderia voltar para mordê-lo no pior momento, mas com essa garota especificamente ele sentia que poderia contar o que quisesse. Talvez fosse os efeitos das memórias que viu. — Eu tava pensando em fazer isso mesmo, se você quiser, a gente pode ir junto.
Segurando a mão dele e o levando até uma das partes mais vazias daquele enorme ginásio, a garota responde concordando com a cabeça e dizendo "trato feito". A pequena caminhada dos dois deu tempo para que Peter conseguisse observar as pessoas lá em uma péssima situação, famílias se abraçando e pessoas feridas sendo levadas de um lado para o outro. O que o preocupava era um detalhe que abria caminho para uma possibilidade perigosa: não havia sinal nenhum de James e Amy.
— Emma, você sabe dizer onde que Amy e James foram parar? Eu não tô vendo eles em lugar nenhum.
— Ah, não se preocupe, James está com o irmão e Amy se isolou em algum lugar daqui, ela diz que não gosta de ambientes cheios. — ela responde e o rapaz imediatamente sente uma onda de alívio, logo depois prestando atenção no que ela continua a dizer. — A propósito, tenho notícias importantes. James ouviu de David, o irmão dele, que pelo visto essa batalha está sendo travada por conta de um mal entendido.
— Mal entendido?
— Na verdade seria mais correto dizer que a Coalizão foi "incriminada" por alguém, estranho, não? — a garota revela e os dois finalmente param de andar, achando um espaço para se sentarem. — Alguém invadiu uma base e matou muita gente, logo depois enviando uma mensagem pelos computadores de lá. Nossos inimigos descobriram e obviamente associaram aquilo a um ataque, e agora estão apenas retaliando.
Era apenas um chute, mas uma parte sua acreditava que Kimiko tinha algo a ver com isso.
— E você tem certeza que não foi a Laura ou alguém mandado por ela?
— Não consigo te dar certeza, e sinceramente não duvidaria se fosse esse o caso, mas David não tem motivos para mentir para o irmão. De qualquer forma, esse lugar aqui está condenado, Laura vai causar a morte de todos com o jeito que ela gerencia pessoas.
— Ela não parecia estar fazendo um trabalho ruim. — Peter diz e ambos ficam em silêncio por alguns momentos, e uma breve olhada para seus arredores faz com que ele mude de opinião. — Até agora, pelo menos.
— É, bem, ela tem seus pontos positivos, ela é ótima no quesito de segurança e organização, mas ela é a definição humana de linha dura. Qualquer coisa é motivo para enviar alguém pra prisão, ou no pior dos casos, ser executado publicamente.
Com tudo que conhecia de Laura até então, o rapaz sabia que execução pública era algo bem possível, mesmo que ainda difícil de acreditar pelo nível de brutalidade. Ainda assim, não sentia mais tanto medo: ele agora tinha um plano com muitas chances de funcionar, e seu instinto dizia que aquela menina seria a chave para isso.
Se Kimiko cumprir com o que disse, ele seria a melhor mão direita que alguém poderia pedir.
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