3. O Lobo Branco
Aquela voz.
Aquela voz estava cada vez mais perto.
E aquele som.
Aquela canção.
O Leão cada vez perto...
Chiara acordou sobressaltada, a mão pousada no peito, a respiração ofegante e as palmas suadas. Abanou-as, estranhando a sensação pegajosa de ter as mãos gélidas cobertas por... suor. Não se recordava da última vez que suara.
Ergueu-se abruptamente da cama, atirando para o lado o manto que a cobria, os pés descalços caminhando pelo gelo que fazia de chão sem qualquer incómodo com o frio. Dirigiu-se à janela, abrindo-a de par em par e inspirou fundo, procurando acalmar-se. Por instantes, maravilhou-se com a beleza do sol a refletir na superfície gelada que envolvia o castelo da Feiticeira Branca...
Até notar que havia demasiado sol.
Da noite para o dia, Nárnia parecera ganhar vida por entre o gelo. O sol brilhava com um pouco mais intensidade e olhando no horizonte era possível ver que as copas das árvores começavam lentamente a descongelar, vendo-se aqui e ali pontinhos de verde por entre os tons de branco e azul-gelo.
Um mau presságio.
Chiara saiu imediatamente do seu quarto, apressando-se em direção à sala do trono. A fúria de Jadis parecia refletir-se nas parede do castelo, escurecidas como se para impedir que o sol entrasse. Sentada no seu trono de gelo, a Feiticeira Branca encarava a matilha de lobos à sua frente com uma fúria gelada, o corpo perfeitamente emoldurado pelo seu vestido cinza, o rosto imortal uma máscara sem emoção.
- Mãe.
- Chiara. - Jadis apressou-a com a mão, convidando-a a aproximar-se - Lobos, cacem os filhos de Adão e Eva sem misericórdia. Quero-os todos mortos, entendido?
- Eu juntar-me-ei à caçada.
- Filha...
- Eles são uma ameaça ao teu reinado. - disse a menina, com firmeza - Como tal, certificar-me-ei que estarão mortos antes que possam causar qualquer dano a Nárnia. Por favor, mãe.
Chiara baixou o rosto, na sua melhor atitude submissa. Por mais que a amasse, Jadis iria sempre ambicionar ser a mulher mais poderosa do mundo, apreciando ver inclusive a sua própria filha vergar-se sobre si.
A Feiticeira declinou-se no seu assento, os dedos tamborilando, medindo as suas opções. Olhou para as paredes do seu castelo, torcendo o nariz ao ver pequenas gotas começarem a formar-se na superfície. Um mau sinal, claro. O primeiro sinal de que a Primavera pretendia regressar a Nárnia...
E acabar com o seu Inverno Eterno.
- Parte. - ordenou, a voz gélida fazendo Chiara esboçar um ínfimo sorriso - E não regresses a menos que tragas quatro cabeças espetadas na lâmina da tua espada. - fez uma pausa, franzindo o sobrolho- Consegui convencer o Filho de Adão a trazer-me os irmãos... mas não pretendo que fiquem em Nárnia tanto tempo. Mata-os, minha filha. Mata-os sem misericórdia.
A princesa assentiu, endireitando os ombros e saindo do castelo. No seu rosto belo, o sorriso crescera, tornando-se num esgar cruel que lhe deformava as formas perfeitas.
Ela iria garantir que a mãe era a única Rainha de Nárnia... para sempre.
**
Estava agachada junto a uma rocha, os olhos azuis-gelo fixos num ponto em frente. A seu lado, Boreal remexia-se, parecendo desconfortável. Quando lhe dissera onde ia, o lobo parecera indeciso, vendo-se obrigado a segui-lo a seu pedido. Apesar de se considerarem amigos, ambos sabiam que era um erro contrariar Chiara. A menina dos cabelos platinados era justa mas cruel, não permitindo qualquer desrespeito nem mesmo da parte de Boreal.
Herdara a personalidade da mãe e a falta de emoção do gelo onde fora criada.
- De certeza que eles vão aparecer aqui? - perguntou o lobo, farejando o ar - Há um cheiro esquisito aqui.
- É o cheiro deles. E sim, tenho a certeza.
Fora ali que vira Lucy Pevensie e tinha quase a certeza que fora daquela direção que Edmund Pevensie surgira. A princesa semicerrou os olhos, analisando o candeeiro, estranho e deslocado naquele cenário. Algo no seu peito doía, como se de antecipação, como se algo estivesse prestes a surgir que mudaria... tudo.
Rangeu os dentes, ignorando as sensações e ajeitou-se, fitando o horizonte. Procurava por um vislumbre dos humanos entre as árvores quando sentiu Boreal ganir, olhando para ela com os olhos negros pesarosos.
- Chiara, o que vais fazer quando eles aparecerem?
A menina franziu o sobrolho, confusa.
- Vou matá-los, Boreal.
- Mas porquê? E se eles forem inocentes?
- Não são. Se forem quem realmente penso que sejam, são uma ameaça à Rainha. Olha para as árvores, Boreal. Não sentes o Verão a chegar? O fim do Inverno aproxima-se porque eles já vieram a Nárnia. Imagina o que vai acontecer se eles chegarem a Cair Paravel e assumirem o trono? - fez uma pausa, abanando a cabeça - Eles irão querer matar a minha mãe e acabar com o Inverno Eterno. Não posso deixar que isso aconteça. É meu dever como Princesa de Nárnia proteger o reino de qualquer ameaça... e eles são uma ameaça à Feiticeira Branca, a única Rainha de Nárnia.
O lobo assentiu, fitando o candeeiro.
- Um mundo sem a crueldade da Feiticeira... não seria melhor? - murmurou Boreal, desviando o focinho.
Houve uma pausa. Longa, fria, as palavras martelando na mente de Chiara. Ele pensara que ela não o ouvira...
Enganara-se.
- Acho melhor fugires. - disse, num tom de voz gélido e implacável.
- O-o quê?! - gaguejou o lobo, encolhendo-se.
- Eu ouvi o que disseste. - rosnou a princesa, entredentes - Se fosses qualquer outra criatura, serias imediatamente acusado de traição e levado para as mãos da Rainha de Nárnia, de quem tão gravemente falaste.
- Mas Chiara...
- Contudo... - a loira fez uma pausa, olhando-o com tranquilidade - És o meu melhor amigo e apenas por isso te darei a hipótese de fugir. Não regresses. Estás para sempre banido do castelo da Feiticeira Branca... e da minha vida.
- Mas...
A estaca de gelo surgiu tão velozmente na garganta de Boreal como surgira na mão de Chiara, a ponta cravando-se perigosamente na pele do lobo branco, o pêlo tingido suavemente pela gota de sangue que começava a escapulir-se à medida que a estaca era pressionada contra a sua pele.
- Não me irei repetir. - disse a loira, os olhos cor de gelo faiscando - Vai. Parte imediatamente.
O ganido lento e sofrido do lobo não a abandonou, nem mesmo quando ele correu velozmente para longe de si, desaparecendo no branco da neve. Sozinha, Chiara soltou um suspiro, encolheu os ombros e voltou a observar o candeeiro, aguardando pela chegada dos meninos e meninas que seriam a ruína da sua mãe.
A solidão bateu-lhe à porta. Tinha pena que Boreal não fosse tão leal à Rainha como ela pensara mas não podia ser misericordiosa, nem mesmo com o seu melhor amigo. Que pensaria Jadis se mostrasse tal fraqueza?
Não sentia tristeza. Não sentia a dor da perda.
Chiara não sabia mas ela deveria ter sentido tais emoções.
Não se sentia arrependida.
Tudo o que sabia é que era leal à Rainha de Nárnia até aos ossos.
Todos os que não fossem... seriam mortos.
Mesmo que fosse o seu melhor amigo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro