2. O Rapaz na Floresta
Chiara não contou a ninguém o que vira na floresta. Nem mesmo a Boreal, embora estivesse consciente dos olhares de esguelha que o lobo lhe lançava ao vê-la tão quieta e calada no dia seguinte. Ninguém sabia do seu encontro inesperado com uma filha de Eva nem dos seus sonhos com o Grande Leão e, se dependesse dela, ninguém ficaria a saber.
A filha da Feiticeira ajeitou-se confortavelmente no assento, sorrindo brevemente na direção da mãe. Iam fazer o seu passeio diário por Nárnia, afim de procurar por traidores ou desgraçados que andassem a falar mais de Jadis pelas costas. Chiara adorava aqueles passeios, não só porque podia apreciar a imensidão e beleza de Nárnia como podia deixar a mãe orgulhosa com a sua frieza e desdém por outras criaturas.
Naquele dia, porém, a menina não se sentia entusiasmada. Aquela que fora criada a partir do gelo sentia-se nauseada, uma sensação tão real que nem parecia ser sua. Ela não costumava ter tais sensações. No entanto lá estava ela com um nó na garganta, a cabeça ligeiramente zonza e as mãos discretamente apoiadas sobre o estômago enjoado.
Era um dia diferente para uma noite diferente depois de um dia diferente.
Naquela noite, o Grande Leão nos seus sonhos chamara-a.
Antes, as palavras que chegavam até ela eram incompreensíveis, o Leão demasiado longe da sua pessoa para o ouvir com clareza. Na noite anterior fora diferente. Estava um pouco mais perto e uma única palavra coerente chegara aos seus ouvidos, acordando-a abruptamente de madrugada.
O seu nome, na boca de Aslan.
Chiara.
O trenó arrancou com um solavanco, tirando a menina dos seus pensamentos. Virando-se para trás, acenou a Boreal num gesto de despedida, como sempre fazia, já que o lobo não estava autorizado a acompanhá-la. Aquele era um momento exclusivo de mãe e filha.
Os cascos das renas afundavam na neve à medida que corriam, fazendo chocalhar os sinos estrategicamente colocados na parte lateral do trenó. Os Narnianos não ouviam o trenó do Pai Natal há séculos e o trenó da Feiticeira Branca soava exatamente como igual, provocando neles uma falsa sensação de esperança e necessidade de escapulirem dos seus esconderijos para verificarem se o Pai Natal não tinha, por algum acaso, regressado às Terras do Leão.
Era nesse instante que Jadis e Chiara os acusavam de traição e desrespeito para com a sua Rainha... e lhes congelavam o corpo como retribuição pelos seus atos.
Um ato cruel que fez Chiara esboçar o primeiro sorriso genuíno do dia. Era tão divertido apanhá-los a fitar a floresta com esperança e inocência... até se aperceberem que tinham cometido o maior erro da sua vida.
Era um dia normal de inverno. O passeio decorria em silêncio, como mãe e filha gostavam, cortado apenas pelo som dos sinos, das patas das renas, de um ou outro grito de incentivo por parte de Ginarrbrik, o fiel criado anão da Feiticeira Branca, para que as renas fossem mais rápido.
Um dia branco, a neve a cobrir o chão e as árvores, o gelo sob a superfície dos lagos, o silêncio de quem vivia em medo constante.
Um dia perfeito.
Até um ponto escuro surgir no caminho, um ponto que foi abalroado pelo trenó e deixado caído no chão com um pequeno grito de susto.
- Pára. - ordenou Jadis, a voz cortando o ar.
Chiara arregalou os olhos ao sentir o trenó parar com brusquidão, atirando-a ligeiramente para a frente, as mãos segurando-se rapidamente para se manter no assento. Com um movimento subtil de cabeça, a mãe ordenou que o anão fosse ver quem se atrevera a estar no seu caminho, algo que ele prontamente fez, debruçando-se sobre o trenó e saindo do mesmo com um grunhido.
- Mãe...
- Fica quieta. - ordenou Jadis, esboçando um sorriso frio - Ginarrbrik, vai apanhá-lo e nós teremos alguém para castigar hoje. Estava a ser um passeio deveras aborrecido, não achas?
A menina assentiu, sorrindo brevemente.
- Deveras, mãe. Foi uma benção este ser surgir no nosso caminho.
- Deixa-me em paz! - ouviram exclamar, a voz infantil e aguda fazendo Jadis franzir o sobrolho, questionando.
- O que foi agora?
- Faça-o soltar-me! - disse a voz do desconhecido, esganiçada pelo medo - Eu não fiz nada!
- Como ousas dirigir-te à Rainha de Nárnia? - exclamou o anão, num tom ultrajado.
- Eu não sabia!
- Filha. - chamou Jadis, olhando para a criança ao seu lado - Vai ver o que se passa.
Chiara assentiu, segurando as pontas do seu vestido azul para sair do trenó com rapidez. Os pés afundaram na neve mas ela estava mais do que habituada, caminhando tranquilamente até junto de Ginarrbrik, sentado em cima do desconhecido com a faca encostada ao seu pescoço.
- De agora em diante vais saber! - respondeu O anão, erguendo a faca no ar, pronto para matá-lo.
- Espera!
A voz de Chiara fê-lo estacar, olhando para ela com os olhos arregalados.
- Perdoe-me, Princesa. Ele foi ultrajante com a Sua Alteza...
- Mãe. - chamou a filha da Feiticeira Branca, a voz sem expressar qualquer emoção - É importante.
Sentiu a mudança no ar à medida que Jadis abandonava o trenó, aproximando-se de onde eles se encontravam. Sentiu a tensão nos seus ombros, a veia pulsando no seu pescoço, os olhos negros com um brilho selvagem no olhar à medida que assimilava o que via.
- Um Filho de Adão. - murmurou Chiara, em choque.
Era um rapaz. Cabelos escuros, pele branca, bochechas rosadas pelo frio. Uma criança humana...
Tal como Lucy.
Ginarrbrik afastou-se dele, permitindo que o rapaz se sentasse, amedrontado, os olhos castanhos fitando a Feiticeira com um misto de assombro, terror e confusão.
- Qual é o teu nome... Filho de Adão? - questionou a mulher, lentamente.
O rapaz fez uma pausa, pondo-se de pé atabalhoadamente, antes de responder:
- Edmund.
**
Dois humanos em dois dias.
Um Filho de Adão e uma Filha de Eva.
Chiara recostou-se à árvore mais próxima, observando a mãe encantar Edmund com magia, criando doces a partir de gelo e ludibriando o menino para que ele acreditasse que eram reais. Não eram, claro. Era tudo uma questão de perspetiva e ilusão.
Ouvia a Feiticeira questioná-lo com suavidade, utilizando a sua beleza e carisma para o fazer encantar-se por ela, confiando nela cegamente. Um truque simples que a própria Chiara já usara muitas vezes.
"Beleza pode ser uma arma mais letal do que uma lâmina, querida"
Edmund tinha mais três irmãos, um mais desprezível que o outro, segundo ele. Quando o nome de Lucy escapou pelos lábios gretados do rapaz, o estômago de Chiara contorceu-se, ciente de que continuava a não contar à mãe o que acontecera. Ainda assim, a sua mente dispersou ao ouvir o nome do mais velho, como se o conhecesse de algum lado.
Peter.
O Pevensie mais novo odiava-o, aparentemente. Era convencido, achava-se o pai deles, muito embora eles não tivessem pai porque estava na guerra (que guerra? Nárnia não estava em guerra há séculos. De onde exatamente vinham estes humanos?) e havia um óbvio ciúme por parte de Edmund. A loira estalou a língua com desdém, apreciando o veneno nas palavras daquele menino. Se não fosse um Filho de Adão, os dois poderiam dar-se bem, já que ele possuía um tipo de crueldade semelhante ao seu.
Quando a conversa terminou, Jadis conseguira o que queria. Convencera Edmund que gostaria muito de conhecer o resto da sua família, afirmando que eles de certeza não seriam tão encantadores como ele (que de encantador não tinha nada). Prometeu fazer dele um Príncipe de Nárnia, tão digno do título como Chiara, a sua única filha. Ao prestar atenção à menina, os olhos de Edmund arregalaram-se, as bochechas coradas de vergonha e admiração, a beleza estonteante da mesma cativando-o. Era uma presa fácil: um rapaz carente, ciumento, com uma enorme necessidade de ser o centro das atenções... fácil de manipular.
E um Príncipe, ou Rei (os lábios de Chiara tremeluziram de diversão ao ouvir tais palavras saírem da boca da mãe, como se ela fosse permitir que outra pessoa governasse ao invés dela), precisava de servos.
Na altura em que Edmund regressava a casa, o encantamento estava para lá de intrínseco na sua mente, não sendo preciso magia ou força para o convencer. Apenas palavras vãs e de encontro às ambições de uma criança eram o suficiente.
- Belo trabalho, mãe. - elogiou Chiara quando o menino desapareceu entre as árvores, deixando o seu lugar no trenó vazio ao lado da mãe - Que rapaz desprezível.
- Perfeito, não é? - Jadis esboçou um sorriso cruel - Trará os irmãos até mim muito em breve.
O impulso de contar à mãe sobre Lucy fez Chiara remexer-se no assento, abrindo a boca... e fechando-a. Algo a impedia de dizer o que acontecera, de contar sobre aquela Filha de Eva, uma das irmãs de Edmund. Talvez fosse a raiva silenciosa no olhar gélido de Jadis. Talvez fosse o facto de provavelmente essa raiva lhe vir a ser dirigida se ela soubesse que a filha lhe escondera algo tão importante como aquilo.
Ou talvez fosse a sensação dos ventos da mudança a baterem-lhe no rosto, uma brisa quente provocando um rubor nas bochechas pálidas, o choque térmico arrepiando-lhe a pele.
A mudança não era bem-vinda no mundo de Chiara.
Ela sempre fora leal à mãe. Afinal de contas, se não fosse por Jadis, ela não estaria viva e Chiara tinha consciência que lhe devia isso. Confiava cegamente nela, adorava ser poderosa e cruel como ela, tencionava seguir-lhe as pisadas caso algum dia o tempo decidisse fazer das suas e a mãe não pudesse mais governar.
Ainda assim, recostou-se no trenó, virou o rosto para encarar as árvores cobertas de neve e manteve-se calada à medida que o trenó a levava de regresso ao castelo, com a Feiticeira Branca sentada hirta ao seu lado, os lábios repuxados num trejeito cruel.
- A Profecia não se cumprirá. - murmurou a mãe entredentes.
Chiara prensou os lábios, os olhos azuis cor de gelo faiscando numa raiva silenciosa. Uma sensação dolorosa espalhou-se pelo seu peito, sufocando-a, fazendo-a cerrar os punhos para se impedir de soltar um gemido.
Não importava se existia um Leão nos seus sonhos. Não importava se a Profecia estava cada vez mais próxima de se cumprir. Não importava se os Filhos de Adão e as Filhas de Eva tinham finalmente encontrado Nárnia.
Ela iria certificar-se que morreriam um por um.
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