I. Ocitocina (Pedaço de juventude roubada)
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D Y L A N
K I N O S H I T A
Tóquio fervia em julho.
Era um daqueles meses em que era praticamente impossível permanecer vestido sem ser constantemente visitado por uma onda de calor que parecia se apossar das casas, apartamentos e locais com paredes em excesso, ㅡ paredes que, no auge do verão, pareciam tão dispensáveis quanto peças de roupas.
Por essa razão, as praças da cidade viviam lotadas já nas primeiras horas do dia: crianças e seus pais entediados, amantes estirados em toalhas de piquenique na grama infinitamente verde, músicos com seus discos de estreia vendidos por alguns poucos ienes, skatistas, punks, algumas garotas felizes andando em grupo, vindas de Toshima, e universitários inspirados pela essência boêmia e triste de Shimokitazawa.
Os antiquários do bairro já não atraíam tantos turistas curiosos, dispostos a torrar uma boa grana em ninharias nipônicas do século passado, como os atrativos dos cruzamentos de Shibuya e as luzes cegantes da estação de Shinjuku a poucos quarteirões dali. Ainda assim, permitiam que vivêssemos como antagonistas naquela narrativa; próximos de uma realidade que, daquele ângulo, parecia parcialmente desconectada.
Mas naquela tarde, especificamente, a rua parecia consumida por um silêncio sepulcral, e da varanda do pequeno apartamento onde nós três vivíamos, no Aoi Kaze Manshon, eu assistia à chuva cair com toda a força lá fora, sob o teto do Escort 86 branco de Jimin, Scott, como ele carinhosamente chamava, estacionado na parte mais alta do pátio. A chuva deslizava pelas janelas de vidro em uma dança bonita, gotas uma atrás da outra como uma competição, esbarrando e se dispersando em direções diferentes.
Havia algo nesses três meses da estação mais quente que me incendiava por dentro, como se cada dia trouxesse um novo desequilíbrio químico ao corpo, abrindo espaço para sensações desconhecidas e viciantes. O verão ainda me pegava desprevenida, um golpe inesperado, deixando-me à mercê de um calor que implorava por pele exposta, por um alívio de nudez completa que só encontrava no confinamento deste apartamento minúsculo quando Jeongguk ou Jimin estavam distraídos com suas vidas fora das quatro paredes.
As tempestades tropicais eram comuns durante aquela época do ano; apesar de extremamente violentas e arrasadoras nas partes mais pobres de Tóquio, acabavam por lembrar uma parte da minha adolescência, crescendo em uma cidadezinha de merda no interior, longe demais da capital.
O cheiro da chuva de verão me lembrava Himeji e minha vinda abrupta de Detroit para o Japão logo após o divórcio de papai e mamãe, há alguns anos.
Odiava lembrar da antiga vida, tinha queimado quase tudo que trouxe comigo naquela época: roupas, fitas, livros e qualquer objeto que tinha compartilhado com o outro Dylan, o mais velho. Papai escolheu a banda em vez de nossa família, um estúpido sonho nos esteites, e aquele foi o pontapé inicial para que eu simplesmente considerasse a existência de homens algo praticamente desnecessário, salvo exceções.
As ligações mensais, que duravam obrigatoriamente dez minutos, repetiam as mesmas perguntas: como está a vida? Os amigos? Os namoradinhos? A faculdade? Além de ser um imprestável bêbado que me nomeou como ele, um Dylan; feito Bob e Thomas. Um cantor viciado em heroína, um poeta bêbado morto, um pai alcoólatra e ausente. A precedência fúnebre me seguia como um véu nupcial do avesso, ao invés das primeiras núpcias, rumava ao altar da morte.
A própria escolha do nome era cercada da esperança de que isso fizesse de mim menos menina, me deu o peso de carregar o seu nome como uma sombra, um selo de origem costurado à minha pele, e ainda precisava fingir, durante aqueles duros e cruéis dez minutos de tortura, que esteve presente na minha vida.
Jin, meu irmão mais velho, que já era quase um adulto quando nos mudamos para cá, o mandou para a puta que pariu logo quando teve a chance, ao contrário de mim, que por muito tempo acreditei que as coisas tomariam um rumo diferente. O cenário havia sido pintado muito cedo: havia sido abortada pelo meu pai
Mas a chuva ainda era um sinal de recomeço, uma trégua, era sobre isso que pensava. Era essa a sensação que me trazia.
Pintava as unhas de azul-cósmico cintilante, como estava escrito na embalagem bonitinha do esmalte apoiada contra a mesinha de centro, enquanto Jeongguk estava estirado em frente ao ventilador, mordiscando um doce com cheiro enjoativo de morango, as têmporas suadas demais, deixando seus cabelos com um aspecto úmido, grudados nas laterais de sua testa. Ele tinha acabado de se livrar da camisa do Def Leppard e estava usando seus óculos escuros em um modelo mais ou menos anos 80, escondendo os sinais óbvios de uma briga recente.
Na noite passada, havia chegado com um nariz ensanguentado, um olho roxo e um piercing arrancado no soco, estava muito chapado, mentindo outra vez quando disse que não tinha colocado os pés em um inferninho qualquer em Kabukicho.
Jimin prestava atenção nas notícias, aconchegado no sofá violeta posicionado no meio da sala. Tinha parado a leitura de um livro, ajustando os óculos no rosto para focar sua atenção no que a moça repetia no noticiário local.
ㅡ Recomendamos amplamente que os cidadãos permaneçam em casa pelas próximas duas horas, para sua segurança e a segurança de seus familiares. Alguns locais estarão disponíveis para abrigo em Shinjuku, Shibuya, Omotesando, Roppongi, Ginza, Marunouchi, Asakusa, Ueno...
ㅡ Maravilha! ㅡ Jeongguk disse, os dedos dos pés tocando de leve as fitas presas no ventilador. ㅡ Vamos ficar presos nessa porra um fim de semana inteiro.
ㅡ O noticiário disse que não passaria de duas horas ㅡ Jimin rebateu.
ㅡ É uma tempestade de verão, ô viado, não vai durar menos do que vinte e quatro, lembra daquela no ano passado? Eles sempre dizem essa merda e no fim, nunca se têm certeza. ㅡ Jeongguk vociferou.
ㅡ Ela não diria duas se fossem vinte e quatro, seu pau no cu. ㅡ Jimin respondeu, rispidamente. E os dias se arrastavam daquela maneira.
Tudo se resumia a nós três. Jeongguk, Jimin e eu.
Há uns dois anos, vivia nesse apartamento com Jimin, que era um dos poucos que coexistiam naquele lugar seguro das pessoas que eu jamais poderia odiar, com sua doçura de bom menino, tímido, prestativo e atencioso. Nos conhecemos em uma dessas reuniões do departamento de artes. Ele, um estudante certinho de Literatura e Linguagens, que adorava poesia latino-americana e nunca tinha experimentado nicotina na vida, e eu, sempre meio desajustada e suja de tinta, como Jimin fazia questão de mencionar, perguntando se ele nunca tinha pensado na possibilidade de pintar os cabelos castanhos de alguma outra cor.
Aprendi sobre poesia latina e pintei seu cabelo de rosa-lavanda-desbotado.
Foi o início maluco de algo lindo: suas camisas brancas manchadas de tinta colorida durante duas semanas inteiras e eu tatuando frases de poetas estrangeiros na coxa direita.
Algo sobre ele era magnético, quase poético. Era o Jimin que tinha lábios melancólicos. Proeminentes e lindos. Tão rosados que se tornavam estranhamente encantadores, como se vivesse constantemente à mordiscá-los tal qual uma mania. Mas tristes de um jeito quase performático. E ele inteiro era meio assim, tinha essa essência de Vênus pudica, de quem tinha medo de quase tudo.
Gostava de observá-los muitas vezes, e em algumas oportunidades, deslizar meus dedos pela textura macia de sua boca, imaginava o gosto que aqueles lábios teriam, uma curiosidade que era unicamente científica e natural, fruto de uma curiosidade libidinosa; experimentar o gosto das coisas como uma criança descobrindo as próprias capacidades sensoriais.
Tivemos uma tentativa ridícula de burlar as leis da amizade em uma noite solitária que não deu certo, me senti estranha e culpada por deixá-lo me tocar daquela maneira, com suas mãos cuidadosas invadindo as laterais de um vestido de verão como se eu pudesse estilhaçar ao toque. Parecia, literalmente, sua primeira vez tocando uma mulher. Jimin era delicado e suave. Rimos da situação por uns dias, mas tudo pareceu meio fora do lugar por um tempo.
Jimin era puro, eu sabia, era um contraste óbvio com Jeongguk. Que ao contrário dele, era alto, forte, desleixado e sedutor. Era como um Arlequim invertido, esperto e traiçoeiro. Enigmático e perverso.
Eu e Jimin vivíamos pacificamente neste ambiente seguro e livre de danos colaterais até Jeongguk chegar. Com seus ares de Murakami e metido à Jean-Luc Godard, trazendo para o quarto vago do apartamento seus equipamentos caros de fotografia, seus pôsteres de filmes cults dos anos 60 e seus livros cheirando a mofo, deixando uma edição do Manifesto Comunista na mesinha de centro da sala como se fosse uma Bíblia. Colando uma logo da cena underground da cinemateca japonesa como um selo na porta, parecia que sua presença precisava ser constantemente legitimada e comprovada, estou aqui e existo.
Há um ano e meio, tínhamos divulgado sobre a vaga do apartamento no painel de avisos do departamento de artes da universidade, as dívidas cresciam e nossos empregos de meio expediente não custeavam todos os gastos. Uma pessoa a mais seria ótimo, e mesmo a uma distância considerável de vinte minutos até o campus (no Scott ferrado de Jimin), todo tipo de gente esquisita surgiu interessada na vaga. Jeongguk reiterou como sua quando entrou por aquela porta, tão educado e gentil, usando todo o seu dom persuasivo que só descobrimos depois que fazia parte dos seus dons artísticos, com dinheiro para pagar dois meses adiantado. Era tudo que queríamos: estávamos há dois dias sem energia elétrica. Não havia muito o que se questionar.
ㅡ Ei, você é a garota da lojinha no centro, né? ㅡ Jeongguk disse, ㅡ Acho que você não lembra de mim, mas trabalho na loja da esquina, no cruzamento.
Como não reconheceria essa jaqueta desbotada e os cabelos desgrenhados pra caralho com umas mechinhas azuis mal pintadas?
Conhecia-o de vista, vivia enfiado lá na loja de discos onde trabalho, fumava seus cigarros suspeitos enquanto ouvia uns discos da Janis Joplin, depois subia naquela moto elétrica cor-de-rosa barulhenta que ficava estacionada lá na frente e ia embora. Trabalhava como entregador na loja de flores da Sra. Yakamoto, no centro. Ouvi dizer que trepava com todas as clientes. Mas Jeongguk trepava com todo mundo o tempo todo, constituído de sangue, sêmen e suor, tudo que vertia do corpo em grande intensidade esporrada. O termo foder talvez se adequasse mais ao que ele fazia. Jeongguk fodia com todo mundo que cruzava seu caminho. E uso a literalidade da palavra. Muito além do limite físico.
Era figurinha carimbada na faculdade, colecionava aos montes cartinhas românticas de algumas calouras apaixonadas com fichas ainda não-caídas sobre quem ele era, conhecia os mal encarados nas boates que frequentávamos nos fins de semana, e se Tóquio fosse um quebra-cabeças, Jeongguk seria a criança com todas as pecinhas necessárias para completá-lo.
Fiz uma rota contrária em um dia qualquer e o vi por lá, sentado diante delas, contrastando no meio daquelas flores bonitas, como uma divindade feita para protegê-las, mas que acabava por negligenciá-las. Pobre miosótis, lírios, bétulas, rosas, girassóis, narcisos e crisântemos. De pernas abertas, como se carregasse algo, no mínimo, colossal ali no meio digno de merecer tanto espaço. Duvidava muito disso. As mãos enrolando algo e levando até a boca, lambendo a ponta do papel antes de finalizá-lo.
Despreocupadamente.
Nossos olhares esbarraram por um momento, e ele foi pego desprevenido.
ㅡ Você poderia ser preso, sabia? ㅡ eu disse, caminhando até o balcão, levando um punhado de sementes de girassóis como uma desculpa qualquer para ter aparecido ali. Nem sei o que faria com aquilo. Nem lembro ao certo que fim levou. Ele riu. Parecia que absolutamente nada o intimidava.
ㅡ São cento e cinquenta ienes ㅡ falou, empacotando as sementes depois de enfiar o "bagulho" no bolso do avental vermelho ㅡ Gostei da tatuagem ㅡ ele apontou para as flores escondidas sob a alça de meu vestido. A voz vaporizada e o sotaque litorâneo comprovaram os boatos.
ㅡ Valeu. ㅡ respondi.
Taehyung, um colega de classe da faculdade que sabia de tudo, havia me dito que Jeongguk tinha nascido em Busan, filho de pai coreano e mãe japonesa, cresceu em Hokkaido, foi expulso de duas escolas por lá, fez parte de uma dessas ganguezinhas de quinta do ensino médio, passou um tempo em um reformatório, o que lhe rendeu algumas cicatrizes, uma delas no rosto, na bochecha esquerda ㅡ pequena e profunda ㅡ, que notei na primeira vez que o encontrei. Não havia alterado em nada a aparência dele, deixava-o com um ar ainda mais problemático, como o tipo de charme barato que ele tinha.
ㅡ Você não é muito de conversa, não é? ㅡ ele perguntou, depois de alguns minutos empacotando sementes como se preparasse um presente.
Eu pensava: quem caralhos deixa um homem desses cuidando de flores tão delicadas com aquelas mãos que dedavam todo mundo?
Dizendo que a vida era para ser explorada em sua plenitude, amor livre, sem barreiras ou crenças limitantes, viva o hedonismo, o mundo é a nova Roma; somos os Calígulas dos tempos modernos. A maneira mais romântica de expor nas entrelinhas que ele era um grande filho da puta com propósito. Não, o problema não era onde ele metia as mãos, me preocupava com as flores, com as garotas e com as incidências viciosas do seu dano.
Jeongguk gostava de pessoas, deixava isso bem claro.
Certeza que tinha todo esse papo hippie-desconstruído meia boca antes de conquistar alguém e, de alguma forma, naquele dia, me senti imune aos seus efeitos, como se não pudesse ser derrubada por uma mera dose de entorpecentes módicos; seu perfuminho vagabundo com cheiro gostoso e o seu sorriso bonito. Toda essa essência clichê de espírito adolescente que seguia assombrando-o, o que provavelmente era a causa de tanta ocitocina liberada em excesso pelas meninas da faculdade, recém-chegadas do ensino médio.
Penso nisso enquanto acendo um cigarro, observando sua discussão boba sobre o clima com Jimin no meio da sala. Se soubesse antes o que sei agora, não teria me permitido ir tão longe, não teria deixado ele fincar raízes nesta casa, no nosso lugar seguro.
Jeongguk agia como se o mundo se curvasse diante de suas vontades, e eu, ingenuamente, acreditei que ele não se renderia.
ㅡ Você não concorda, Dy? ㅡ Jimin perguntou, me exigindo atenção.
A verdade é que Jeongguk era como a primeira dose segura, o barato que parece inofensivo e te deixa feliz, aquele único segundo de absolutamente nada, que te faz imaginar que é garantido experimentar uma segunda vez sem maiores problemas, até que, sem qualquer controle, se torna um vício, oxidando suas sinapses lentamente, derretendo suas certezas. Negação e aceitação, como uma junção incoerente. Vivia uma espécie de fissura agônica depois do primeiro pico.
Li sobre isso uma vez, em uma das apostilas de Psicologia do curso de Jin, sobre como os vícios nascem de uma busca desenfreada por uma recompensa, alívio, relaxamento, prazer.
Imaginava que o que tinha acontecido comigo estava naquela zona entre a necessidade e a curiosidade. Nunca tinha, de fato, me apaixonado por ninguém até então.
Não, na verdade, nunca tive essa ideia romântica do amor. O amor sempre pareceu um atraso, uma ideia obsoleta e que só ferra a gente, e falo desse amor banal, esse amor que só aparece nos filmes, nesses livros chinfrins, nos fazendo buscar nos confins do universo por algo que, na realidade, nunca existiu. Vendido a migalhas. Tinha mamãe para comprovar minha tese, quando abandonou tudo para atravessar o oceano atrás de um babaca alcoólatra, guitarrista de uma banda grunge falida, e voltou, 16 anos depois, carregando duas crianças e algumas dívidas à tiracolo para uma cidadezinha em algum muquifo no interior do Japão.
Esse foi o resultado do amor que tive acesso a minha vida inteira. O amor que era só uma palavra que nunca foi capaz de mudar as ideias de ninguém, que nunca fez ninguém ficar. E nunca me deu nada.
Tinha namorado Namjoon, do curso de Filosofia Moderna, por uns dois ou três meses, mas nunca senti nada. O término foi frio.
"É, a gente se vê, você tem sido um ótimo amigo!"
ㅡ Que diferença vai fazer? Vamos ficar aqui de qualquer maneira, duas horas, vinte e quatro horas, o fim de semana inteiro, não importa, até o alerta ser desativado, ninguém vai sair ㅡ eu disse, e pela primeira vez tive a atenção dos dois para mim.
Também parecia um pesadelo assistido passar mais do que algumas horas presa naquele apartamento com a presença de Jeongguk e Jimin se odiando na maior parte do tempo, a troco de nada. Tinha se tornado uma situação quase insustentável.
Jeongguk tinha esse ar quase fleumático que irritava Jimin. Já ele, tinha esse autoritarismo meio babaca que tirava Jeongguk do sério, enquanto eu, me trancava no quarto com minhas telas em branco e problemas que, de fato, me envolviam, colocava os fones de ouvido e projetava meus desenhos ali, minhas tintas por todos os lados, e esquecia os dois lá fora, no meio de gritos, portas batidas, ofensas e socos trocados. Pouco tempo depois, escutava o barulho do motor do carro velho de Jeongguk, que desaparecia no fim da rua, e sabia que por alguns dias ele não apareceria em casa.
Havia me apaixonado pelo homem mais escroto que já conheci.
Não sei dizer de fato como aquele delírio começou dentro de mim. Minha mente tinha criado tantos inícios abruptos e justificáveis, alguns meios incertos, e já projetava os fins catastróficos, com a certeza de que sob nenhuma perspectiva aquilo terminaria bem.
As vindas de Jeongguk até o meu quarto, em horários estabelecidos como seguros ㅡ depois que Jimin apagava as luzes e guardava os livros, se preparando para dormir, inconsciente do que acontecia no cômodo ao lado ㅡ, eram constantes.
Não fazia ideia das mentiras que eu contava e recontava na tentativa de mantê-lo naquele recorte de minha vida privada.
Havia prometido, em um dia qualquer, depois de uma briga entre os dois, que deixou Jimin aos prantos, que Jeongguk seria a criatura proibida. Nunca cheguei a cumprir a promessa e, às vezes, me pergunto por que iniciei tudo aquilo.
Mas ele tomava forma como um pensamento revisitado muitas vezes. As frases que começavam com "só hoje, só dessa vez" terminavam com suas roupas largadas no piso e sua mão contra minha boca, na tentativa de diminuir os ruídos cada vez que ia fundo dentro de mim, porque durante aquelas primeiras horas nos tornávamos uma sinfonia partida, de respirações desritmadas e gemidos abafados contra a pele um do outro, partituras lidas do avesso, de trás para frente.
Minhas mãos perdidas nos seus cabelos negros, entre as mechinhas azuis pintadas com alguma tinta vagabunda, que manchavam meus dedos e roupas de cama por dias, denunciando a incidência de suas visitas e a minha vontade óbvia de deixá-lo ficar.
Foi a euforia e também a angústia. A proximidade munida de tanta distância. O centímetro e o quilômetro. Os lábios secos e a boceta úmida.
A primeira vez foi em uma tarde qualquer, no fim de um período letivo, quando, por infelicidade, precisei de um modelo-vivo para um desses trabalhos acadêmicos do curso. Namjoon costumava ser o responsável por isso, mas após nosso término, imaginava que não faria sentido pedir favores uma segunda vez, não depois da quantidade de merda que havia acontecido entre nós.
Jeongguk se ofereceu como um bom amigo, eu pensei. Disse que já tinha experiência como modelo-vivo, sabe-se lá Deus para quem, e que não se importaria em ajudar. Tirou toda a roupa sem inibição alguma. Tinha duas tatuagens na altura dos quadris, rosas vermelhas no estilo da década passada, que subiam até a cintura, tirando todas as outras que cobriam os braços, contornando as costas como se os desenhos, de um jeito quase psicodélico, se entrelaçavam, contando alguma anedota da sua história codificada.
ㅡ Ok, senta ali, perto da janela. Quero pegar essa luz.
ㅡ Se incomoda se eu acender um cigarro? ㅡ ele perguntou, caminhando até onde suas calças estavam largadas e pegando o isqueiro bonitinho em formato de duende, com cabelos coloridos.
ㅡ Não ㅡ respondi, ㅡ fica à vontade. ㅡ Parecia que aquele era o estado natural de Jeongguk. Não esboçava desconfortável em tirar a roupa na frente de uma quase estranha, caminhando pela casa até o toca-discos de Jimin, com um cigarro pendurado no lábio, buscando algo para ouvir.
ㅡ Gosta do The Doors? ㅡ ele perguntou, se curvando até a pilha de discos organizados em ordem alfabética. Queria manter meus olhos distantes dele, não só por causa da pele exposta, mas também pelas cicatrizes visíveis na altura das costelas e ao redor delas, como linhas paralelas por todos os lados. Mapas traçados em um atlas. ㅡ Eu também.
Entre o meu descuido e a distração de observá-lo enquanto apontava o lápis com um estilete afiado, acabei perfurando, de maneira minúscula, a ponta do dedo, fazendo uma quantidade, no mínimo, anormal de sangue jorrar.
ㅡ Caralho, esse estilete de merda! ㅡ praguejei.
ㅡ Deixa eu dar uma olhada nisso... ㅡ Jeongguk disse, apoiando o cigarro contra o cinzeiro na estante e observando a ponta cortada de meu dedo com cuidado. ㅡ Acho que não é nada grave. ㅡ E, sem pensar duas vezes, o levou até a boca, sugando um pouco de meu sangue.
Talvez naquele milésimo de segundo eu tenha pensado em abandonar a casa.
Eu, o cordeiro abatido. Amarrado e prostrado diante do altar da divindade pagã.
Yamashida Jeongguk era a porra de um maluco, eu tive certeza. Mas, ao contrário do que todas as convenções sociais ensinam e de todos aqueles anos de apostilas escolares sobre segurança, não fugi. Não fui embora. Não chutei suas bolas e me mandei. Foi como um pico, é assim que chamam. Heroína injetada na veia pela primeira vez, derretendo meus ossos e acarinhando alguma coisa dentro de mim que eu nem sabia que poderia ser encontrada e tocada. Acho que foi o início do vício. O dia 0. A dose que não parece mais tão segura. Alguma substância sua ligada diretamente à minha corrente sanguínea.
ㅡ Minha mãe costumava fazer isso quando eu me machucava... ㅡ ele falou, retirando meu dedo de sua boca, agora úmido de sua saliva, e observando se não havia restado nenhum resquício vermelho ali. ㅡ Lambia as feridas.
ㅡ Obrigada ㅡ pensei. Por chupar meu sangue como um puta de um maníaco. Às vezes me perguntava se nada fazia Jeongguk ter medo, se nada era capaz de assustá-lo, fazê-lo tremer, mesmo agora, completamente nu diante de mim, agindo com uma normalidade que beirava à loucura;
Mantive meus olhos longe dos dele, direcionando-os para sua cicatriz, agora tão próxima e impossível de ignorar, evitando um constrangimento e iniciando outro.
ㅡ Pode tocar se quiser, ㅡ ele começou, ㅡ não dói. ㅡ Era uma cicatriz profunda e feia, hipertrófica. Fazia todas as outras, agora mais visíveis de perto, parecerem pequenos arranhões.
ㅡ Essa foi no reformatório, em Hokkaido. ㅡ ele riu ao comentar o fato, ㅡ O filho da puta tinha um canivete, me fodi muito. Quatorze pontos, acredita? ㅡ Meu instinto era tocá-la, talvez ter a chance de provocar alguma sensação humana em Jeongguk, nem que fosse de fraqueza. Parecia que a realidade me balançava forte pelos ombros. Ele estava ali, usando meias ridículas com folhas de erva estampadas, agindo como se tudo ao nosso redor fosse no mínimo natural.
ㅡ Parece uma história fascinante, sabe, mas se importa se a gente começar? ㅡ Se não me conhecesse o suficiente, diria que aquele primeiro contato tinha, no mínimo, me deixado desconcertada.
ㅡ Você que manda, bonitinha. ㅡ Bonitinha era o caralho. Mas, de fato, saboreei a sensação de ter algum tipo de poder sobre ele. Ali, debaixo da janela, absorvendo os últimos raios de sol do dia, da maneira como veio ao mundo: com o adicional de alguns rabiscos na pele e cicatrizes profundas de histórias obscuras de um passado turbulento.
ㅡ Tira essas meias também, não quero nada no seu corpo, isso me desconcentra. ㅡ disse, antes de observar sua reação ao pedido. Jeongguk era uma mistura de beleza etérea e agressividade genuína, como se duas partes mais profundas vivessem a disputar espaço no mesmo corpo.
ㅡ Se inclina mais, deita no tapete e apoia a cabeça no braço, isso. ㅡ Seus olhos estavam quase fechados enquanto cantarolava People Are Strange do The Doors, bonito pra cacete.
Entendia agora o produto de tanto falatório pelo campus, dos risinhos sacanas nas festas de fraternidade quando Jeongguk desaparecia com alguém banheiro adentro, animando as amigas e os caras ansiosos que ficavam felizes na espera de comprovar suas teses baseadas em comentários repercutidos, alguns minutos ou horas depois. Entendia agora os motivos, pelo menos.
Desenhá-lo foi a parte mais fácil de todo o processo. Me livrar da sensação que aquele dia causou custou mais do que alguns drinques em uma comemoração qualquer no apê de Taehyung, sem esquecer da presença dele ali, como um paladino, errante e destemido, sempre ao meu redor.
Beijei algumas bocas desconhecidas, as garotas bonitas que se aproximavam se tornavam alvo do meu animalesco instinto de sobrevivência, buscando encontrar qualquer resquício de desejo, alguma fagulha que ainda deveria existir em mim. É que tudo parecia meio aniquilado, sei lá, uma chupada no dedo não poderia ser assim tão poderosa.
O laço de intimidade instantâneo estabelecido naquela tarde continuou perdurando pelo infinito de dias seguintes. Pequenas atitudes do dia-a-dia me deixavam ofegante e pateticamente abalada.
ㅡ Ei, Dy, vamos assistir um filme? Trouxe alguns da locadora. ㅡ dizia, os lábios próximos demais do meu ouvido, a mão tocando minha coxa em uma atitude que não oferecia maldade, mas me deixava tensa. Um convite para ajudá-lo a colocar a mesa de jantar e os dedos apoiados em minha cintura, quase vencendo o tecido, o que me fazia prender a respiração, como se qualquer deslize fosse uma denúncia óbvia.
Jeongguk foi o alvo do meu desejo em segredo, no fim de cada noite, quando fechava os olhos e projetava sua figura naquele quarto, imaginava a sua mão e não a minha traçando uma rota digna de exploração histórica no meu próprio corpo que havia virado colônia infestada de pequenos demônios do inferno de sua potencial e dominante força de colonizador. Seguindo um roteiro pronto que criava em minha cabeça, com os diálogos, cenário e ação. Voilá. Gozava fácil.
Pela manhã, desviava o olhar e engolia em seco com seu desfile de cueca pela casa, comendo cereal direto da caixa, puro e sem leite, no meio da cozinha.
ㅡ Ao menos coloca essa merda em uma porção individual, você coça o saco e enfia a mão na caixa de novo, juro que se encontrar um pentelho seu aí te faço engolir. ㅡ Jimin esbravejava, puxando os cabelos para trás, denunciando o nervosismo, e Jeongguk ria.
Às vezes parecia que tudo não passava de uma piada cujo humor, só ele era capaz de notar com precisão.
Foi justamente na época em que os toques inocentes se perderam no meio de dedos experientes que invadiam meus vestidos por baixo da mesa e me tocavam sem pudor algum. Àquela altura, não fazia sentido negar; gostava dos seus jogos, imaginava que ele deduzia que aqueles olhares não eram por pura implicância e antipatia.
Ele mantinha uma conversa com Jimin sobre qualquer coisa, enquanto seus dedos avançavam traiçoeiros e firmes entre minhas coxas, às vezes apalpando minha bunda, em um aperto provocativo quando esbarrávamos no corredor. Parecia ter algum tipo de prazer em saber que Jimin estava ali por perto, que poderia nos flagrar ou entender o que estava acontecendo com uma facilidade prosaica.
O primeiro beijo não demorou muito depois daquilo, escondidos em seu carro, em uma esquina qualquer, alguns quarteirões antes do campus, como se nossas vidas dependessem disso, como se pudéssemos sugar o sumo dos ossos um do outro.
Canibalismo que começava com seus lábios dentro de minha boca.
O banco de seu Ford Galaxie 83 carcomido mal cabia nós dois, ficávamos espremidos lá dentro, Jeongguk sempre com gosto de erva e chiclete, vestindo suas jaquetas de couro com patchs revolucionários, seus coturnos escuros militares e com um cigarro atrás da orelha adornada de brincos prateados, bagunçado e febril, me pegando pelas coxas em direção ao seu colo.
ㅡ E se alguém passar e nos vir aqui? ㅡ eu dizia.
ㅡ Às vezes ter uma plateia é até interessante. ㅡ ele respondia, antes de avançar outra vez até minha boca. Me dava aquela sensação viciante de fazer algo ilícito, dissolvia a saturação do cotidiano, não me deixava cansar da vida.
Era assim que pintaria o líder da cinemateca da Universidade Imperial Kyokuran. Não usaria nenhuma comparação com as estrelas, com a poesia, com o céu. Ele era um desordeiro, sujo, libertino, e vicioso. Um filho da puta. Comparações puras demais criariam uma ideia errada de quem ele era, o colocariam nesse altar dos intocados, quando tudo que ele merecia era perecer de joelhos, como um penitente, um pecador, iguais aos que imploram por perdão ao cruzar o umbral das almas.
ㅡ Podemos deixar isso em segredo? ㅡ Ele pediu uma vez, em uma das suas incursões até meu quarto, numa madrugada silenciosa, interrompendo meu sono.
ㅡ Por quê?
ㅡ O Jimin me odeia, sei lá, as coisas ficariam ainda mais estranhas entre nós aqui em casa. ㅡ Ele estava certo. Ele tinha um ponto. Me agarrei àquela ideia de que era a melhor opção. Definitiva e não gradual. Não tínhamos de fato um compromisso, não, não buscaria mais problemas do que já tinha me metido buscando o título de namorada. Já tinha ido longe demais. Talvez tenha sido nesse momento que as coisas começaram a desmoronar.
ㅡ Ok. Não precisamos contar nada a ninguém. ㅡ Penso nisso agora, no meu segredo jurado nove meses atrás feito uma criatura maligna concebida, enquanto o assisto caminhar pela sala da casa, meio frenético.
Certeza que tinha mandado ver num teco de pó nesse meio tempo em que foi até o banheiro e voltou com as pupilas quase perfurando as órbitas oculares. Yamashida Jeongguk se achava esperto demais, mas suas oscilações de humor eram tão óbvias como a rota dos seus vícios.
ㅡ Então, tenho uma ideia ㅡ ele começa, antes de coçar o próprio saco despreocupadamente ㅡ Por que não jogamos algo? Vamos ficar presos nessa merda de qualquer jeito!
Os olhos de Jimin encontram os meus do outro lado da sala, atenciosos.
Tudo estava prestes a começar, lentamente. Sabíamos disso.
Parecia sentir, como uma espécie de vidência, o fim de tudo.
ㅡ É? E o que propõe? ㅡ Jimin perguntou, afastando o livro até a mesa de centro.
ㅡ Que tal um bad trip game?
。 ・: *: ・ ゚ ★。 . . . •。 ゚ ・ ★ ゚ ・. 。 ゚ ・. °. ★
Ocitocina¹: A ocitocina é o hormônio do amor. É o hormônio que faz com que um indivíduo se sinta atraído por outro específico, que o deseje, que sinta vontade de ficar com ele, de estar próximo. Também é o hormônio da fidelidade, responsável pela capacidade de manutenção de um parceiro fixo.
N/A:
Já estão com rancinho desse Jeongguk? HAHAHA!
Lembrando que temos aqui uma investigação e que os narradores não são NADA confiáveis, hein? O próximo capítulo será o ponto de vista do Jimin, e já aviso: ESTEJAM PREPARADOS!
A próxima atualização será no sábado, dia 01, às 20h.
Até a próxima semana!
ㅡ S.
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