Capítulo 2 - Encontrar "Lembre-se de quanta paz há no silêncio."
Peguei o metrô, desci na Estação Consolação. Mochila e skate nas costas. Fones de ouvido. Preciso de música; a vida sem música pode ser desesperadora. Comi alguma coisa e esperei o acalmar da rua.
Não deveria pensar tanto sobre o tempo. Mas quando estou no metrô, perguntas sobre o tempo me veem à mente. O tempo. Passado. Presente. Futuro. O minuto anterior, o minuto seguinte. O agora. Não sei o porquê de me envolver tanto com essas perguntas. De repente, começo a pensar sobre a existência, sobre o fato de ser tão enigmática. Olha, se alguém souber que penso isso quando viajo de metrô, vai achar que sou meio maluco, ou muito maluco.
Sempre que desço na Consolação, observo o caminhar apressado de quem procura voltar ao abrigo, seja esse abrigo sua própria casa; ou à casa de um amigo; ou ainda ir ver a esposa que está no hospital com o primeiro filho; voltar ao hotel e esperar o momento da partida para o aeroporto e da decolagem, e de logo estar em casa. Casa, pra mim, é abrigo.
Desço na estação sem pressa. A madrugada me espera.
Sair na madrugada. Andar de skate na Av. Paulista é quase um vício. Frio de 8ºC. É o primeiro domingo do inverno. Nada me impede de ter aquela sensação que as manobras e o barulho das rodas do skate produzem ao tocar o asfalto. Não uma sensação, mas o sentimento concreto de paz e liberdade, talvez felicidade. Hoje a madrugada é diferente, 1:00 AM, e o vento frio no rosto não deixa o pensamento divagar.
A Av. Paulista, uma rua livre à noite. Durante o dia um sonido de ir e vir. As conversas sobre tudo, e o silêncio da solidão de um cigarro. Lágrimas e pobreza no vão livre do MASP. Ou alguma manifestação em defesa de algum ideal. Protestos nos finais de semana. Policiais mantendo a ordem. Multidão querendo uma outra realidade, um outro tempo. Av. Paulista, o lugar do "Nada" de uma mente rejeitando a correria, mas precisando dela sem saber. O lugar do "tudo" de quem espera pelo futuro, um futuro de sucesso. O lugar da ganância do mercado, que arranha vidas e faz imperar a insatisfação, o desejo por mais. A Paulista, à noite, apenas minha pista, meu lugar, minhas manobras. Egoísta... Não soa? Às vezes preciso disso.
Venho aqui quando quero pensar, ou quando quero parar de pensar por algumas horas. Não estou sozinho, alguns skatistas também aproveitam esse horário para treinar.
Danielle me fez abrir minha alma. Por isso, estou travando uma luta comigo mesmo. O sofrimento, assim como o tempo, me intriga bastante. O sofrimento me incomoda. Contudo, o que me incomoda mais, é a apatia e o cinismo do mundo adulto. Insensíveis à dor, à angustia, e ao desespero. Pensam que me deixando sem orientação, livre para fazer "o que meu coração" mandar, estarei bem. Aí me vejo com uma inquietação que tenta aos poucos extinguir minha alma; a persistência de um vazio distorcendo minhas emoções, e as emoções acabam se transformando em muros.
Esses muros me fizeram mergulhar no mundo virtual. Meu Facebook, meu Instagram, meu whatsapp, eram como refúgios para que eu não enfrentasse o abismo existente entre o que eu queria pra mim e a realidade.
Já passei horas em jogos online; mantive amizades virtuais com pessoas que eu nem sei se eram quem diziam ser; passei horas assistindo vídeos no youtube apenas para distrair e rir sem motivo algum. Eu preferia a companhia do meu celular à companhia das pessoas. Eu estava imerso no mundo virtual enquanto o mundo passava lá fora. Cheguei ao ponto de não dá atenção pra quem estava ao meu lado. Eu olhava para o meu celular e a pessoa ao meu lado olhava para o celular dela, e era isso, estávamos felizes. Assuntos em comum? O vídeo engraçado que acabou de ser enviado para o grupo; a postagem constrangedora de alguém; o engano de quem disse o que queria no Twitter e acabou se dando muito mal. Eu achava que sabia tudo das pessoas, mas na verdade o que eu realmente sabia delas? E no fim eu não sabia nada de mim mesmo. Não estava aprendendo nada. Comecei a pensar que eu estava perdendo tempo.
Meu avô, quando eu tinha 14 anos, conversou comigo, numa tarde de verão, à beira da praia, sobre parar e escutar. Ele disse:
"Lembre-se, há sempre um som bonito à sua volta; a paisagem pode ser mais que as coisas que você vê. A paisagem pode ser sonora. Pare por uns minutos. Agora feche os olhos. Respire, escute por alguns minutos os sons em volta de você. Sabe, filho, as coisas comuns são tão maravilhosas quanto as coisas incomuns".
Naquela tarde, eu fiz o que ele pediu, e descobrir a beleza do som das ondas, do vento, dos pássaros que faziam daquela tarde um momento que apesar de se repetir todos os dias naquele verão, pareciam incomuns e maravilhosos.
Envolvido no mundo virtual de forma tão exagerada, eu estava perdendo a capacidade de parar, fechar os olhos, respirar e escutar. A ideia de que tudo tem dois lados é real. E eu acabei usando um lado não tão divertido do mundo virtual. Por isso, não conseguia escutar a mim mesmo e muito menos as pessoas ao meu redor. Na verdade, chegou um momento em que até as redes sociais se tornaram insatisfatórias pra mim. Sei lá, por alguma razão pareciam sem sentido. Eu não sei.
As coisas estavam tão difíceis. Minha mãe, então, decidiu arrumar um trabalho de meio período para mim. Foi aí que fui parar na sala São Paulo, e tudo mudou.
Mas deixando tudo isso de lado, agora, o que eu tinha era aquele tempo com meu skate, na Av. Paulista. Tem uma frase do Professor Tolkien que explica o fato de eu estar aqui, nessa madrugada fria: "tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado". Os pensamentos, memórias de três dias atrás, de 2 meses atrás, 11 anos atrás, se entrelaçavam, parecia que eu estava montando um quebra-cabeças.
Como se o movimento me chama-se, impulsionava-me com a perna direita, me apoiava com a esquerda. Alcançando velocidade, me equilibrando sobre a prancha; meus pés fixos no wheel base; pensava em saltar, mas desistia. Às vezes, quero estar em Downhill, descendo uma colina, literalmente, chegando ao ponto em que a velocidade é tão rápida que o tempo passará lentamente. Quero Downhill stand-up, descer essa colina rapidamente, mas de pé. É perigoso, eu sei.
Mas voltando ao tempo. Pois é, o tempo me intriga. Li alguma coisa sobre tempo imaginário; um tempo que, se calculado com números imaginários, faria com que tudo o que se pensa ser extravagante ou complexo, se tornasse, na verdade, muito simples. Força gravitacional, força eletromagnética, energia nuclear fraca, energia nuclear forte, essas quatro forças regeriam o universo. A sensação que tenho é que a física, ou seja lá o que tente explicar o tempo, está muito além da minha mente; me sinto estupido. Ainda assim, a letra da Música Senhor do Tempo, do Charlie Brown Jr., fazia mais sentido.
Einstein me deu certa alegria: o tempo passa diferente em lugares diferentes. Mas me assustou também, pois pra ele o infinito, como os buracos negros, essas estrelas de densidade infinita, causava confusão. Logo ele, cujas equações provaram que o infinito existe. E o tempo imaginário, calculado por números imaginários, tentava apenas acabar com essa descoberta de infinito feita por Einstein. Por que destruir com o infinito?
Mas o que é interessante no tempo imaginário é que ele me faz pensar que a Av. Paulista em que estou andando de skate agora, poderia ter outra ao lado, paralela, completamente extraordinária, não comum, fixa em uma realidade alternativa. Essa outra Av. Paulista se misturaria, em curvas, num espaço e tempo onde há muitos caminhos; e o tempo não seria linear, mas com inúmeras possibilidades. Muitas histórias possíveis. Assim, e em uma dessas fantásticas estórias possíveis, eu teria saltado para a existência, num instante de um tempo eterno. Louco, isso? Não é? Essas teorias são muito loucas, mas interessantes.
Contudo, o tempo que eu tenho é esse que eu uso para calcular a velocidade média, pelo qual se dividiria a distância. Comprimento, largura, altura e o tempo linear, só isso. Se há coisas escondidas nos meandros infinitamente pequenos do espaço e do tempo, eu não sei. No momento não posso medir a gravidade por milésimos de segundos, mas como o tempo flutua em torno de um valor central, e duas horas não são exatas duas horas, mas duas horas e milésimos de segundos, pra que se preocupar?
Vou continuar fazendo minhas manobras; saltando; caindo; levantando; tentando novamente; indo rápido ou devagar, mas indo. Sendo essa a realidade que tenho, simples, mas minha, vou aproveitá-la e aprender o máximo possível com ela. Se existe um tempo paralelo, não importa. Não o vejo agora. Estou me divertindo, pensando em movimento.
Disseram-me que quanto mais rápida a velocidade e mais fortes os campos gravitacionais, mais lento passaria o tempo. Se isso fosse verdade, gostaria que os acordes, escalas e arpejos de Anton Bruckner, em sua Sinfonia nº 8 em Dó Menor, fossem tão rápidos e densos, que fariam o tempo passar bem devagar. Pois esse era o concerto que eu assistiria com Danielle; esse momento seria infinitamente importante pra mim e eu gostaria que passasse o mais lentamente possível.
Ontem, mandei uma mensagem de texto para Daniele:
"Bom dia, Daniele! Tudo bem? Amanhã, te espero na Estação da Luz, às 6:00 PM. Estarei em frente ao Painel Epopeia Paulista, na galeria que sai do lado da Pinacoteca. Fica em Paz"
Ela me respondeu com um emoji: uma carinha amarela com um sorriso aberto, olhos fechados e uma gotinha azul do lado superior esquerdo, próximo ao olho; e dizia:
"Tudo bem! Estou bem! Se eu não te encontrar, mando mensagem. Até amanhã, na Estação da Luz."
Eu li aquela mensagem, pedindo que ela estivesse lá, às 6:00 PM.
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Hoje é manhã de domingo. O primeiro domingo de inverno. Está tão frio lá fora. Na madrugada fez 8ºC de temperatura. É um dia bem diferente pra mim. Na última quarta-feira, no curso, Lucas esqueceu umas cartolinas na sala de professores e como ninguém se dispôs a ir, me escolheu para descer e pegar as benditas cartolinas. Pensei que iria sozinha, mas ele disse:
"Danielle e..." ficou procurando por alguém, não entendi pra que duas pessoas, era algo tão simples. Olhou por cima dos óculos e disse:
"Você, você próximo à porta."
Eu estava no fundo da sala, no canto direito. Estava de costas, por isso não vi quem era o "Você próximo à porta". Levantei, e fui caminhando até a porta. Fiquei surpresa quando descobri quem era o "você-perto-da-porta", era ele. Mas a surpresa das surpresas ainda ia acontecer.
Lucas nos orientou sobre onde encontrar aquelas cartolinas. Mas, pra falar a verdade, não prestei atenção. E não me importava com o fato de serem duas pessoas para fazer o que Lucas pedia ou não.
Saímos da sala. O corredor estava vazio. Todos estavam em suas salas e o que se ouvia era a voz de alguns professores, ou risos de alunos, o barulho não excedia as paredes das salas, isso quando por breve momento o percebíamos. O corredor iluminado por lâmpadas de luz branca, naquele dia nublado, deixavam mais claros seus cabelos e mais envolventes seus olhos verdes. Ele estava do meu lado esquerdo, com as mãos no bolso do casaco. Estava aparentemente calmo, mas como sempre, em silêncio. Pensei: "Ele deve estar irritado com alguma coisa. Ou pensando em alguma coisa mais importante. Acho que pensa naquele livro que ele lia no metrô, 'O Banquete'. Vai que só está cansado."
Quando começávamos a descer as escadas, ele interrompeu meus pensamentos:
"Danielle, preciso conversar com você."
Eu parei no primeiro degrau da escada. Estava em choque e curiosa ao mesmo tempo; não conseguia pensar em nada. Ele desceu dois degraus e eu olhei, esperando que não percebesse meu estado de choque. Pra disfarçar, eu perguntei:
"Você está bem? Aconteceu alguma coisa?"
Ele baixou a cabeça e tirou um papel do bolso. Um papel amarelo, com impressões em azul, e um pequeno quadrado prateado. E me disse:
"Danielle, eu estou bem. Mas... é que eu quero te convidar para ir à Sala São Paulo e assistir a um concerto da Osesp. É no próximo domingo, as 7:00 PM. Eu trouxe os ingressos. Você iria comigo?"
Ele segurava os ingressos com as duas mãos, com os braços estendidos em minha direção. Eu estiquei meus braços e, também, com as duas mãos segurei os ingressos. Peguei o meu ingresso e devolvi o dele. Minha vontade era pular e dizer: "eu aceito sim, SIM, SIIIIIIMMMM!" Porém, ele estava tão sério e calmo ao mesmo tempo, que se minha reação fosse a da "Danielle - a atrapalhada" de sempre, eu ia acabar estragando o momento. E a única coisa que consegui dizer foram quatro palavras, quatro palavras e nada mais:
"Eu vou com você."
Coloquei meu ingresso no bolso do casaco e descemos as escadas. Não houve nenhum comentário sobre o que acabara de acontecer. E de certa forma, os meus pensamentos se acalmaram. Fomos à sala dos professores, fizemos o que Lucas pediu e voltamos para a sala de aula. Tudo transcorreu normalmente. A única sensação diferente é que tínhamos um segredo. Durante o intervalo, ele ficou no prédio, e eu fui à lanchonete com Akemi. No final da aula, voltamos juntos, Akemi, ele e eu. Na plataforma de embarque do metrô, um pouco constrangida, disse:
"Vou te dar o número do meu celular. Acertamos o local que nos encontraremos no domingo, por mensagem. Tudo bem?"
Ele concordou e pegou o celular na mochila. Enquanto eu falava meu número, observava seus dedos longos digitando os números e seus lábios repetindo os números que eu falava; ele salvou o meu número e minha imagem apareceu nos contatos dele. Logo aquela foto, eu e meu sorriso bobo, estavam no celular dele. Que vergonha, viu?
Para confirmar, mandei pra ele um emoji, uma carinha sorrindo. Ele respondeu com um polegar fazendo sinal de positivo; A imagem dele apareceu nos meus contatos. Que imagem linda. Entramos na composição e conversamos sobre nossos filmes preferidos até a estação da Luz, onde eu desci e me despedi.
Na quinta-feira, caiu a ficha: eu iria à Sala São Paulo com o garoto do curso. O que eu sabia dele? Nada! E eu, a tonta, aceitei o convite. O que vestir? Como agir? Pensei: "Eu nunca fui a um lugar como a Sala São Paulo, nem em excursão da escola!"
Bateu um desespero. Contudo, não dava pra pensar naquela situação, não naquele momento. Fui à escola e da escola para o meu trabalho no Banco.
Eu trabalho no setor administrativo de um Banco. Tenho uma mesa, uma cadeira, um computador e todo aquele típico material de escritório em torno de mim. Minha chefe é uma pessoa muito acessível. Tenho aprendido muito com ela. Eileen é uma daquelas mulheres bem sucedidas, aquela que você sonha, um dia, se tornar.
A Srª Cutler é uma linda mulher branca, com uns 1,78cm de altura, cabelos loiros, magra, por volta dos seus 40 anos. Como vice-diretora do setor de Recursos humanos, de um banco que, só no prédio em que eu trabalho, tem mais de 5 mil funcionários, mostra-se sempre centrada e com tudo sobre controle. Eileen é mãe de dois meninos, um de 10 e outro de 8 anos de idade. Teve depressão pós-parto nas duas gravidezes, mas superou. Srª Cutler é perfeccionista, e bem assertiva. No começo foi muito difícil lidar com ela, mas com o passar do tempo, fui entendendo os processos de trabalho que envolviam o setor de Recursos Humanos e tudo começou a funcionar como deveria. Mas tenho aprendido mais sobre a vida com a Srª Cutler do que ela pode imaginar.
As pessoas dizem que a mulher tem que ocupar seu espaço, ser bem sucedida, estar sempre jovem e bonita, dentre muitas outras coisas. Não sei se isso é bom. Pra mim, isso tudo não passa de uma pressão imposta, eu não sei lá por quem, e não me sinto preparada para isso tudo. Penso muito sobre isso, às vezes.
Naquela manhã de quinta-feira, no entanto, eu estava um pouco receosa em conversar com a Srª Cutler sobre o concerto de domingo na Sala São Paulo; mas eu precisava, afinal uma pessoa sofisticada como ela poderia me ajudar. Minha mesa fica bem próxima à dela e sempre que tenho dúvidas me reporto diretamente a Eileen, sem problemas. Contudo, no que se refere a assuntos pessoais, desde que não tão pessoais assim, conversar é bem fácil.
Após um período de trabalho, Srª Cutler me convidou para um lanche na copa, apenas 15 min, só isso. Na copa, no andar do Setor de Recursos humanos tem uma área com mesas altas, com tampo redondo e perna em aço inox. Não há cadeiras. A Srª Cutler sempre toma cappuccino cremoso; segundo ela é chamado assim porque lembra o hábito, a roupa de frades franciscanos. Eu tomo suco de laranja, ou qualquer outro suco. Dividimos a mesa e falamos sobre assuntos do trabalho ou alguma programação que o Banco promoverá. Às vezes, essa "hora do Cafezinho" nem sempre é possível, por conta de reuniões, processos seletivos ou viagens da Srª Cutler.
À mesa, perguntei:
"Srª Cutler, você já foi a algum concerto?"
Ela respondeu com um olhar de admiração e um ar de riso:
"Sim, Danielle. Eu já fui a concertos. Aqui em São Paulo e em outros lugares também."
Eu continuei:
"Eu vou à Sala São Paulo no domingo... é a primeira vez. Não sei nada sobre como me vestir ou como agir."
Comecei a rir. Srª Cutler riu também e disse:
"Danielle, se o concerto for à noite, use uma roupa social. Nada muito exagerado. Não esqueça que você não vai a um casamento."
Ela tomou um pouco do cappuccino, limpou os lábios com o guardanapo de papel, e prosseguiu em meio a risos:
"Ah!... Vá ao banheiro antes de entrar na sala do concerto, vá ao banheiro. Porque se você sair para ir ao banheiro não poderá mais entrar na sala de concertos. E não vai adiantar tentar usar o jeitinho brasileiro. Outra coisa, não converse com a pessoa sentada ao seu lado: a acústica de lá é tão boa que vai parecer que você está falando no microfone. E o mais importante, desligue o smartphone e aproveitei o momento. Vê se não vai dormir."
Nós rimos, terminamos o "momento do Cafezinho" e voltamos ao trabalho. Eu fiquei um pouco insegura sobre como me comportar no concerto. Srª Cutler me ajudou muito. Pelo menos já sabia que não precisava me vestir como quem vai a um casamento. Mas o mais antigo dos dramas femininos começou a assolar a minha mente em forma de uma pergunta insistente: "Com que roupa eu vou?"
Chegou o final de semana e decidi contar pra minha mãe o que aconteceria no domingo. Ela sorriu e disse que se precisasse de alguma coisa era só falar com ela. Minha mãe é o tipo de pessoa que não faz muitas perguntas, mas tenho a impressão que ela sabe mais de mim do que eu.
No sábado, ajudei minha mãe com as tarefas e depois fui ao salão de beleza da minha rua. Eu estava precisando. Na noite de sábado, eu decidi não sair. Umas amigas ligaram para irmos a um barzinho, mas eu não senti um pingo de vontade.
Naquele dia, acordei com essa mensagem em meu celular:
"Bom dia, Daniele! Tudo bem? Amanhã, te espero na Estação da Luz, às 6:00 PM. Estarei em frente do Painel Epopeia Paulista, na galeria que sai ao lado da Pinacoteca. Fica em Paz". Era ele me lembrando de domingo.
A expectativa pela noite de domingo estava começando a me consumir. Pra entender o que poderia vestir ou não, fui dá um google pra ver se encontrava a resposta. Uma das opções de posts era: "o que usar no primeiro encontro". Bom não era bem um encontro, na verdade, eu não sei bem o que era. Era algo incomum e muito novo pra mim. Estava curiosa sobre o garoto misterioso do fundo da sala, e nunca havia experimentado a sensação de ouvir uma orquestra sinfônica ao vivo. Tudo era novo.
A pesquisa no Google me ajudou um pouquinho; então, abri meu guarda-roupa e tirei de lá minhas roupas de frio e as coloquei sobre a minha cama. A previsão do tempo informava que no primeiro domingo do inverno, às 6:00PM, fariam 7ºC de temperatura. Pensava em ficar bonita e não passar frio, só isso.
Na noite de sábado escolhi minha roupa, meus sapatos e a bolsa que iria usar no meu domingo. Na manhã de domingo, o frio era tão presente, e tão forte.Naquela manhã, abracei minha mãe e dei um beijo na testa de meu pai, tomei meu café com eles, e ainda de pantufas e de pijamas. Rimos das bobagens que minha mãe sempre faz: o esquecimento do nome de alguém; ou a troca do nome de alguém quando fala ao telefone; os esquecimentos de minha mãe são hilários.
Como era dia de descanso da família, voltei para meu quarto e fui ouvir música. Aproveitei cada segundo da minha playlist. Terminei a leitura do meu livro do mês, "Cinco Minutos". Minha mãe bateu à porta, entrou no meu quarto e perguntou:
"Dani, falei ao seu pai que você irá à Sala São Paulo, hoje à noite. Posso te deixar lá, de carro?"
Respondi:
"Mãe, eu marquei com meu amigo na Estação da Luz, na saída da Pinacoteca. Você me deixaria lá ?"
Minha mãe concordou, mas meio preocupada, e me disse:
"Dani, leva o celular e o que precisar em caso de emergência. Qualquer coisa, é só me chamar".
Minha mãe era muito preocupada com tudo, com tudo mesmo. Ela sabia coisas sobre mim que meu pai nem sonhava saber. Costumava me aconselhar, mas eu não ouvia.
As horas passaram muito rápido, e eu já me via na frente do espelho, toda arrumada e com um sorriso bobo no roto. Saí do meu quarto, avisei à minha mãe que estava pronta. Meu pai olhou da sala para o corredor onde eu estava e disse:
"Danielle, você está bonita, minha filha! Aproveite o concerto!"
Olhei pra meu pai, fiz um gesto de agradecimento e joguei um beijo para ele. Minha mãe veio da cozinha com as chaves do carro na mão, colocou a bolsa no ombro direito, por cima de um casaco de frio marrom, e disse:
"Vamos, Dani! Ou chegaremos atrasadas. Ah, é... Você chegará atrasada".
Saímos de casa e ao abrirmos a porta, o vento frio estava assustador. Entramos no carro, e fomos para a Estação da Luz. Um trajeto de 20 minutos, que num dia normal de semana levaria o dobro de tempo para ser percorrido. Ao chegarmos próximo à saída da estação, do outro lado da rua, próximo à Pinacoteca, vi a entrada que ele havia mencionado na mensagem. Pedi à minha mãe que me deixasse naquele lugar.
"Mãe me deixa bem ali, ali, mãe! Ele avisou na mensagem que estaria lá no túnel de acesso, em frente Painel Epopeia Paulista, na galeria que sai ao lado da Pinacoteca..."
Minha mãe me orientou:
"Dani, manda uma mensagem pra ele pra dizer que você já está aqui. Acho que chegamos cedo demais. Você também precisa saber se ele já chegou. Vai que ele está atrasado ou vai demorar pra chegar..."
Minha mãe me conhece tão bem. Ela sabe como sou desatenta, a "Danielle – a desatenta" me causa muitos e grandes problemas. Fiz o que ela pediu. Mandei uma mensagem pra ele:
"Oi! Tudo bem? estou aqui na saída da Pinacoteca. Você já chegou?"
E ele, imediatamente, visualizou a mensagem e respondeu:
"Oi! Tudo bem! Estou na galeria, esperando por você."
O sorriso bobo apareceu enquanto eu lia a mensagem. E minha mãe, com um ar de riso disse:
"Minha filha, são 5:45. Você não quer se atrasar? Quer? Se acontecer alguma coisa me liga, liga pro seu pai. E vê se não dorme enquanto a orquestra estiver tocando."
Beijei minha mãe, desci do carro e ela voltou para casa, naquele Ford Ka que ela gostava tanto. Vi as escadas de acesso à galeria. As escadas conduziam para baixo, cada passo que eu dava meu coração parecia um martelo no meu peito; o frio de 7 ºC parecia não existir; cada degrau a menos era uma insegurança que surgia em mim; quando cheguei ao último degrau, apertei minha bolsa com força a frente do minha barriga, porque tudo em mim queria sair correndo: eu estava com medo, medo de ser menos do que devia; medo de não saber o que falar; medo de ter criado expectativas desnecessárias; eu estava com medo. Sabe, quando você vê aqueles posts de expectativa e realidade? Bem, inúmeros daqueles posts passavam pela minha mente. Por que eu estava com medo? Eu não sabia.
Eu o vi, em frente aquele painel: uma parede - na parte de cima uma faixa amarela, no meio uma faixa branca e em baixo uma faixa vermelha ou laranja escura, não sei ao certo. Havia também relevo de imagens que lembravam coisas do dia a dia das pessoas; umas ao lado das outras, desordenadas; tinha também linhas paralelas, na horizontal, na vertical, entrelaçadas, atravessando umas as outras. E ele estava lá, ele que era uma imagem de um momento do meu dia a dia, que havia desordenado meu domingo, me levando para um lugar tão novo pra mim; cuja história, como aquelas linhas, acabara de se encontrar e se entrelaçar com a minha.
Ele estava em pé e olhava para a escada; parecia, realmente, estar esperando por mim. A iluminação da galeria me deixou ver seus cabelos bem penteados; a jaqueta de couro, gola padre, estava fechada até perto do pescoço; o que me deixou ver uma camisa social branca, ajustada por uma gravata preta. A jaqueta o vestia muito bem, parecia muito, muito elegante. As calças pretas em alfaiataria, e os sapatos em couro preto o deixavam com uma postura de alguém maduro, bem maduro. Geralmente, convivo com garotos que mesmo colocando um terno, deixam transparecer o quanto são imaturos. Na verdade, a sua postura, a maneira como alinhava a coluna, e mantinha os ombros retos e firmes, me fizeram questionar novamente sobre o mistério no seu olhar. O olhar que naquele anoitecer, não parecia triste e melancólico, mas sereno e calmo. Parecia feliz.
Ele veio caminhando pra me encontrar; estava com um suave sorriso no rosto e disse:
"Danielle, boa noite! Que bom que você veio. Podemos ir, então?"
E eu respondi:
"Boa noite, Theo! Acho que cheguei cedo." Ele gentilmente me interrompeu:
"Você não chegou cedo demais, chegou na hora certa". E eu disse:
"Podemos ir. Podemos ir sim."
Theo não me abraçou ou cumprimentou com um beijo no rosto, mas ficou parado na minha frente, com as mãos nos bolsos da jaqueta. Eu não parava de olhar para seus olhos verdes, enquanto ele falava comigo; notei o perfume suave, amadeirado, que ele usava. Acho que nós dois estávamos um pouco ansiosos pela noite na Sala São Paulo; mas do que isso, nós estávamos ansiosos pelo tempo que passaríamos juntos, sozinhos, pela primeira vez.
Theo se virou e disse:
"Vamos por aqui."
E apontou para a escada, tirando a mão direita do bolso. Subimos as escadas juntos, um ao lado do outro.
Quando saímos da Estação da luz, a estação em que nos despedíamos toda quarta-feira, havia um senhor grisalho, de estatura baixa, pele parda, por volta de 60 anos, usando traje social, próximo a um táxi preto. Quando nos viu sair da estação, aquele senhor se mostrou tão entusiasmado e alegre que fiquei surpresa e sem entender o que estava acontecendo. Com um sotaque italiano, cumprimentou Theo:
"Sr. Theodor Sestieri, quanto tempo! Olha pra você! Como vai sua mãe?"
O senhor grisalho o abraçou com força e com carinho paterno surpreendente. Theo sorriu abertamente e respondeu:
"Sr. Accioly! Que bom revê-lo!"
Era engraçado: Theodor, alto, sendo abraçado por aquele senhor. A felicidade de ambos era visível, parecia que se conheciam desde sempre e há muito tempo não se viam. Contudo, uma pergunta me veio ao pensamento: "o que o Sr. Accioly fazia ali? Será se foi uma coincidência?"
Enquanto eu pensava, vi que a alegria deu espaço para um breve momento de tristeza. Sr. Accioly, segurou os braços de Theo, olhou para ele; em seguida deu dois leves tapas no rosto de Theo, e disse:
"Sr. Theodor Sestieri, como lembra seu avô! Como lembra seu avô!"
Com a voz um pouco embargada e tentando mudar de assunto, virou para mim e perguntou ao Theo:
"Mas quem é moça, Sr. Theodor Sestieri?"
Theo voltara a ficar como sempre. Ele estava sério. Algo havia tornado seu olhar melancólico. Contudo, ao virar-se para mim, sorriu e disse:
"Sr. Accioly, esta é Danielle."
E batendo no ombro esquerdo daquele senhor, acrescentou:
"Vamos? Vamos agora ou perderemos o concerto."
Sr. Accioly deu a volta, entrou no táxi preto, sentando-se no banco do motorista. Theodor abriu a porta do táxi para que eu pudesse entrar, e falou:
"Por gentileza, Senhorita."
Estendeu a mão para mim; eu segurei a mão dele e entrei no carro. Ele deu a volta e também entrou no carro, sentando-se ao meu lado. Pensei: "sempre saio com amigos, mas nunca pensei que seria tratada assim; geralmente, tudo é levado na brincadeira... sei lá..." Achei melhor aproveitar aquele momento, pedindo que nada desse errado.
Theodor, olhando pra mim, falou:
"Danielle? Está tudo bem? Podemos ir?"
Eu, um pouco constrangida com tanta educação, respondi:
"Tudo bem; podemos ir, sim!"
E ele, batendo no ombro do Sr. Accioly, falou:
"Sr. Accioly, vamos à Sala São Paulo, por favor!"
O Sr. Accioly afirmando o endereço, deu partida no carro e saímos. O senhor grisalho dirigia com muita habilidade. O caminho seria relativamente breve, mas antes de chegarmos, Theo me falou:
"Danielle, estou muito feliz porque você está aqui. Espero que você goste do concerto. A Osesp é incrível. Ouviremos Anton Bruckner. Um grande compositor. Espero que você goste".
Eu ouvia o que ele falava e não parava de pensar: "o que está acontecendo comigo?" Sinceramente, eu tenho certa resistência a "coisas" com as quais não estou acostumada. Tudo bem que ele falava comigo sobre algo que pra ele era comum, ele trabalhava lá. Mas, se eu contasse pra uma de minhas amigas de infância, que eu iria à apresentação de uma orquestra sinfônica, ela me olharia com aquele olhar de "O-que-deu-em-você?" ou me faria aquela pergunta clássica de quem te reprova ou te acha "sem noção": "Orquestra sinfônica?" Com um enfático "Fala sério, amiga!" Eu mesma em outro momento, não aceitaria o convite, porém, a curiosidade sobre ele me deu motivo pra aceitar. Se eu contei pra minhas amigas sobre aquele domingo? Claro que não! Naquele momento, elas concordarem ou não com minha decisão não fazia diferença; eu não ligaria para a opinião delas.
Então, segurando minha bolsa, como se quisesse me esconder dentro dela, e meio sem saber o que dizer, porque não sabia quem era Buckner, e não tinha ideia do que ia acontecer, falei:
"Theo, muito obrigada por me convidar."
Sorri de forma bem contida e continuei, quase sussurrando, pois não queria que Sr. Accioly ouvisse.
"Por favor, me diz o que fazer; não quero passar vergonha".
Ele sorriu e também sussurrando me tranquilizou:
"Danielle". Ele tinha um lindo sorriso no rosto. "Você saberá como agir. Fique tranquila. O que espero é que você goste do espetáculo; que goste de tudo".
Se eu me tranquilizei? Lógico que não, mas dava pra disfarçar.
Quando estávamos próximos à Sala São Paulo, Sr. Accioly nos avisou:
"Meus jovens, chegamos!"
Theo agradeceu e, antes de sair do táxi, pediu que eu esperasse só alguns segundos. Ele deu a volta, abriu a porta e me estendeu sua mão direita para que eu pudesse me apoiar ao descer do carro. Sr. Accioly nos observava com certo ar de admiração, e um sorriso no olhar. Foi a primeira vez que toquei a mão de Theodor, naquele anoitecer em São Paulo, no primeiro domingo de inverno, e senti algo diferente em mim; aquele toque, simples e breve, me fez perceber a leveza da pele dele. A mão quente, o segurar, ou melhor, o permitir que eu me apoiasse em sua mão direita, me fez olhar para ele não com curiosidade, mas com carinho. Carinho, essa foi a palavra que surgiu na minha mente. O sorriso no seu olhar, em seus lábios, me mostrou que eu podia ser especial para alguém. O que ocorreria depois daquele breve momento, me marcaria profundamente.
Despedimo-nos do Sr. Accioly. Atravessamos uma rua, acho que era uma rua, não sei. E entramos no prédio. Caminhávamos lado a lado, novamente; e o frio não importava. Entramos na Sala São Paulo e aquela clássica e imponente casa de concertos rompia a barreira do tempo. A beleza que eu entendia ganhou outro significado. Meus pensamentos me diziam: "Que lugar maravilhoso! Que lugar lindo!" De repente, me senti pequena.
Passamos pela entrada principal, um piso de madeira marrom. De ambos os lados, haviam cabeças esculpidas, bancos de madeira, e plantas. Minha alma saltou dentro de mim quando meus pés tocaram o hall de entrada. O piso tinha azulejos com desenhos geométricos, hexágonos colocados de maneira tal que lembravam flores; as colunas iluminadas eram simetricamente perfeitas; e no alto, unindo-as umas as outras, arcos igualmente perfeito. Dizem que o que temos hoje é tecnologia de verdade, mas penso que aquela construção é mais do que uma simples construção, mais do que tecnologia, é poesia. De repente, estava pensando em poesia. A riqueza de detalhes e como tudo tinha lógica, fluidez, e era espantoso, aqueciam meu coração.
Olhei para cima e vi um teto alto, bem alto mesmo; estava emoldurando pela forma retangular dada pelas colunas que formavam o salão; a iluminação me deu a impressão de estar olhando para uma obra de arte, pois lá no alto, no centro do teto, havia um vitral, um círculo, cujo o centro parecia uma cruz, e dessa cruz saiam linhas retas, entrelaçadas por círculos menores. O círculo estava ladeado por quatro linhas côncavas e em cada canto que se formou das linhas em torno do círculo, havia um desenho que lembrava estrelas, na verdade eram quatro estrelas emitindo uma luz amarela. Theo sussurrou:
"Danielle, aqui é o Foyer. Bonito, não é?"
Eu apenas assenti com a cabeça, e dei um passo para trás. Acabei esquecendo, por alguns minutos que não estava sozinha.
Nós caminhamos no meio da pequena multidão que acabara de se forma em torno de nós. Theodor pediu meu ingresso e fomos até um lugar onde os apresentamos e passamos a outro lugar também extremamente lindo, o Café.
No Café, nos aproximamos de um balcão extenso em mármore preto; do outro lado do balcão estavam pratos empilhados de maneira que lembravam uma pirâmide rasa, como um cacho de uva deitado; havia ainda, uma máquina de café expresso. No entanto, Theo pediu ao atendente dois sucos de laranja, doces que pareciam Carolinas e duas fatias de tortas; a torta era Gateaux, e tinha massa de chocolate, recheio de mousse de chocolate com chantilly – não consigo esquecer o sabor daquela torta. Sentamos à mesa; a mesa, em tampo redondo de madeira escura proporcionava aconchego; as cadeiras eram também muito confortáveis. Comemos juntos, parecíamos velhos conhecidos. Se nos visse de longe, pensaria que éramos amigos de longa data, ou mesmo amigos de infância, ou, ainda, namorados. Mas isso não era verdade.
Ele me falava da história daquele lugar e como era trabalhar todo dia ali. Fiquei encantada; percebi que precisava aprender mais. Quando faltavam exatamente 15 minutos para começar o concerto. Theo mostrou-se preocupado.
"Danielle, se você precisar falar com alguém, ligar ou mandar mensagem. Bom, essa é a hora. Depois que entrarmos na sala do concerto, teremos que desligar e guardar os celulares. Ah, se precisar ir ao banheiro..."
Eu entendi.
"Theo, vou ligar pra minha mãe e dizer que está tudo bem. E, onde fica o banheiro feminino?" Levantei o olhar e vi as placas de sinalização. "Ah, acabei de ver a placa de sinalização, você me espera aqui?"
Ele concordou.
"Espero você aqui".
Quando retornei, entramos na Sala de concerto. Preciso dizer, tenho que dizer: "que paz, que silêncio, que grandiosidade, quanta beleza!" Eu me perguntei: "Eu estou em São Paulo mesmo? Onde eu estou? Entrei numa máquina do tempo?" Era, com toda certeza, lindo!
Theo estava do meu lado esquerdo, abaixou-se suavemente e sussurrou:
"Esta é uma das mais grandiosas salas de concerto do mundo. Aqui onde estamos era o antigo jardim de inverno da Estação Júlio Prestes. Venha, Danielle, é por aqui."
No ingresso estava escrito "Plateia Central H8". Era onde eu deveria sentar e ele sentou ao meu lado. Olhei para a direita e vi um camarote, um só não, vários. Mezaninos, com colunas laterais iluminadas. Nunca vi nada parecido. Sobre nós, um painel de quadrados em madeira com molduras largas, alguns com duas luzes, outros com dez luzes, uns estavam mais altos, outros mais baixos.
As pessoas estavam se acomodando em seus lugares. Umas à direta, de frente para onde estávamos; outros à esquerda, também de frente para a plateia central; e, havia, ainda, as pessoas do mezanino; e as pessoas que ficavam atrás da orquestra. Mas o que me impressionava mesmo era a beleza única e atemporal daquele lugar.
De repente, todos ficaram de pé e começaram a aplaudir um senhor de cabelos brancos, usando uma linda casaca, que entrara no palco por entre os músicos. Os músicos também ficaram de pé, homens e mulheres uns ao lado de seus instrumentos musicais, outros com seus instrumentos musicais em punho, vestidos em traje de gala. O Senhor de cabelos brancos era o regente, o maestro. Antes de tomar o seu lugar à frente e no centro da orquestra, ele curvou-se, levemente, e cumprimentou a plateia e os músicos. Depois, colocou-se diante de uma estante para partitura, em sua mão direita estava uma batuta.
Todos se sentaram em seus lugares e se fez um agudo silêncio, tanto a plateia quanto os músicos pareciam concentrados, prontos para serem envolvidos pela música. O maestro estava de costas para nós, seus braços estavam elevados um pouco acima da linha da cintura e ligeiramente arqueados. A mão direita segurando a batuta parecia indicar com que velocidade a música seria executada e a mão esquerda, com movimentos circulares lentos, revelava a emoção, o sentimento que irradiaria da música. A interpretação dos planos sonoros começaram. A entrada foi linda: uniforme; todos tocando juntos, ao mesmo tempo. O maestro e os instrumentistas da Osesp estavam tão cheios de segurança e autoridade que eu fiquei muito, muito emocionada.
O regente movia os braços, parecia que seus músculos estavam relaxados, pois os movimentos estavam fáceis e flexíveis. A mão esquerda estava com os dedos ligeiramente estendidos e afastados uns dos outros; a mão direita segurava a batuta. Ora fazia círculos, ora erguia as mãos, tudo tinha cadência, ímpeto. Seus braços e suas mãos eram condutores fieis dos instrumentistas, um guia para a emoção, para o tempo, para o concomitante.
Violinos e Cellos começaram a melodia intercalados por um único instrumento de sopro, e eu não sabia o que era, mas parecia uma clarineta. Depois, em um crescente e forte momento, a melodia parecia que chegaria a seu enlevo, mas os violinos, os cellos voltavam a ser intercalados por aquele único instrumento de sopro. Delicadeza e graça, força e arrebatamento. Vitalidade e inspiração, dádiva e elegância. Era como se houvesse uma alegria querendo se libertar, mas aos poucos sendo contida. Estava escrito no folheto que recebemos na entrada "Allegro Moderato", pra mim ligeiro e alegre, mas moderadamente rápido.
De repente, uma flautista solitária emitia lindos acordes e em seguida voltava a euforia dos instrumentos de sopro. A intensidade dos movimentos dos músicos ao tocar seus instrumentos de corda, e a sincronia entre eles; a postura da flautista, me deixaram perplexa. Cada um sabia exatamente o que fazer, mas nenhum tirava seus olhos do regente. Sopro, cordas, dedilhar, fluir. O soar leve do tímpano. Havia vida naqueles acordes.
Pensei na genialidade de Anton Bruckner. No folheto dizia de sua história e um pouco da história daquela composição. Mais tarde, descobri que alguém o chamou de "O menestrel de Deus", talvez porque tenha frequentado um mosteiro agostiniano, em busca de refúgio em tempos sombrios; ou talvez, porque sua obra tenha sido inspirada por uma esfera de sons do órgão de Sank Florian. Mas me identifiquei com a história dele: uma pessoa simples, com medo do futuro, ansiedade e que por conta de muitas críticas, refez suas obras, melhorando e não desistindo ou as descartando. Sua melodia era tão pessoal, e se tornou especial pra mim.
Pensei em mim e no privilégio de estar ali, pois foi a primeira vez que vi uma harpa ser dedilhada. Era tão linda. Sentia que a emoção começava a tomar conta de mim, e não podia chorar, mas lágrimas começaram a molhar meu rosto. Eu não estava triste, estava feliz. Minha alma parecia flutuar, e meu coração e meus ouvidos foram acariciados por cada nota daquela melodia.
Durante aquele tempo, eu me esqueci que Theodor estava ao meu lado, até que em meio ao final da apresentação da orquestra, ele me falou:
"Danielle, muito obrigado por estar aqui, comigo... hoje é meu aniversário de 19 anos."
O que ele acabara de falar me assustou tanto. Era um dia especial pra ele, e não me disse nada. E mais, porque ele não estava com um amigo, ou com a família comemorando? Por que eu? Mas, depois do susto... Bom, eu me senti especial.
*******
Eu cheguei à estação da Luz, uns 15min antes do horário marcado. Voltei pra casa às 4:40AM. Dormi a manhã, inteira. Quando acordei, meus pensamentos foram para o concerto do primeiro Domingo de inverno; Danielle estaria comigo.
Ela mandou uma mensagem.
"Oi! Tudo bem? estou aqui na saída da Pinacoteca. Você já chegou?"
E eu, imediatamente, visualizei a mensagem e respondi:
"Oi! Tudo bem! Estou na galeria, esperando por você".
Alguns poucos minutos depois, ela desceu as escadas. Estava tão linda. Usava um vestido azul escuro com um xadrez bem discreto, a gola do vestido era redonda; o vestido tinha mangas compridas, que estavam escondidas em baixo de um casaco aberto, um trench coat alongado branco, com botões pretos. Usava, ainda, meias pretas e sapatos de salto médios tão delicados quanto ela. Ela estava perfeita.
Quando chegou ao último degrau da escada, eu me aproximei dela. Tinha uma vontade imensa de abraçá-la, beijá-la, mas pensei bem e achei melhor me conter. Mantive minhas mãos dentro dos bolsos da jaqueta; fiquei em pé diante dela.
"Danielle, boa noite! Que bom que você veio. Podemos ir, então?"
Ela segurava uma bolsa pequena, com ambas as mãos. Parecia um pouco tensa. Acho que ambos não sabíamos o que fazer.
"Boa noite, Theo! Acho que cheguei cedo."
Eu aproveitei para exercitar tudo o que tinha aprendido sobre gentileza com meu avô. Decidi cortejá-la. Meu avô me disse que se eu quisesse impressionar a garota certa, teria que cuidar dela de maneira delicada, demonstrar educação e verdadeira amabilidade. Para meu avô, isso era namorar. Então respondi:
"Você não chegou cedo demais, chegou na hora certa".
Ela concordou que era hora de irmos. Nós subimos as escadas juntos; caminhávamos um ao lado do outro. Eu decidi, enquanto saíamos da estação, que era tempo de mudança; eu iria mudar.
Um amigo de meu avô nos levou até a Sala São Paulo, Sr. Accioly. No caminho conversamos sobre o espetáculo. Mas, a felicidade em saber que ela estava bem próxima a mim era o que fazia aquele dia ser tão especial.
Foi uma noite memorável. Conversamos, comemos, rimos e ouvimos a Osesp. Era meu aniversário de 19 anos; e, depois de um hiato de um ano e meio, eu começava a perceber as burradas feitas até aquele momento; mas, com esperança de que tudo ia ficar bem.
Observar Danielle naquela noite foi revigorante, animador. Eu não sabia que sentimento era aquele, mas não pensava em mim, nos meus desejos, nas minhas vontades; pensava em como fazer bem a ela; como proporcionar à Danielle aquela alegria que eu via em seus olhos. Respeitar, entender, ver, ouvir, e amar. Era isso que queria para nós dois, enquanto ouvia Bruckner. Seríamos como Iman e David.
Quando terminou o concerto, Sr. Accioly estava nos esperando. Eu perguntei à Danielle se poderia deixá-la em sua casa. Ela permitiu e nós fomos de táxi até ao endereço que ela informou. Não demorou muito e já estávamos em frente à casa de Danielle. Uma casa térrea, germinada, com uma garagem que descia para o subsolo; um pequeno jardim ao lado de uma passarela; a porta de entrada era iluminada com lâmpada na parte de cima. O perfume das plantas do jardim era muito agradável.
Estávamos fora do taxi e antes de me despedir, Danielle me fascinou:
"Theo, feliz aniversário! Obrigada por ter me chamado pra conhecer aquele lugar tão lindo. Foi muito, muito bom mesmo. Sei que nos conhecemos a pouco tempo... Bom, enfim, obrigada! E desculpe por não ter nenhum presente pra você. Afinal, eu não sabia que era seu aniversário."
Ela sorriu.
"Danielle, eu é que tenho que agradecer. Obrigado por ter ido. Obrigado mesmo. E quanto ao meu aniversário." Eu sorri. "Fica tranquila. A noite de hoje foi o melhor dos presentes. Muito Obrigado, de verdade..."
Sem me dar conta, enquanto falava, eu acabei segurando sua mão direita e ela segurou a minha mão. O vento da noite de inverno parou. Quando me calei, estávamos abraçados. Eu senti o perfume de seus cabelos e sei que ela pode ouvir as batidas agitadas do meu coração. Aquele minuto me trouxe de volta. O abraço terminou. Nós nos despedimos. Esperei que ela entrasse em casa. Ela acenou pra mim. Entrei no táxi, e Sr. Accioly me levou de volta ao condomínio onde moro.
Em casa, no meu quarto, peguei meu caderno com capa de couro e a caneta preta, Danielle me inspirou, então escrevi.
Depois de hoje...
Seu olhar
Doce Surpresa
Sua voz
Doce calma
Eu voltei para mim mesmo
Eu penso em você todo dia
Seremos como Iman e David
O que aconteceu comigo?
Não consigo entender
Não importa agora
Eu vou mudar
Eu sonharei com você
Eu te alcançarei
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