4 - Níveis de consciência
(Wilmara)
Tomo banho, me seco, e percebo que não estou a fim de ficar sozinha naquele quarto, onde alguém profanou as minhas coisas. Visto-me novamente, pego um livro de pensamentos e vou para o refeitório. O lugar está vazio àquela hora. Apanho um sanduíche, mas reluto em voltar para o quarto.
Sabendo que o Zé Ninguém só será checado no começo da manhã seguinte, vou à UTI pra ficar com ele. Eu o encontro do jeito que o deixei. Estico a cortina e nos separo do mundo.
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Puxo com cuidado a cadeira para não fazer barulho e me sento ao lado da cama. A percepção do cansaço me invade. Nossa, estou exausta! A embrulhada na qual me meti... Até morto, aquele desgraçado do Nelson consegue dominar a minha vida.
Eu devia ter chamado a polícia assim que escapei debaixo do corpo dele. Mesmo que Brett entrasse na casa, pronto para me matar... Eu devia ter chamado a polícia e aguentado as consequências.
Agora é tarde. Não dá para voltar atrás. À medida que tomei a decisão de me desfazer do corpo de Nelson, ninguém vai acreditar que a morte dele foi um acidente. Mesmo porque, não foi bem um acidente. Ele ainda estava vivo dentro do carro... E ninguém vai querer saber se eu sabia disso ou não. Se ele tentou me agarrar pela janela, ou se empurrei o carro por puro terror e senso de autopreservação.
O fato é que sou uma assassina.
Sim, estou muito ferrada. O ar me falta novamente e as mãos que seguram o sanduíche embalado, tremem. Tenho um tijolo no lugar do estômago. Não conseguirei comer nada. Deixo o embrulho do sanduíche sobre o criado-mudo, ao lado da maca.
Suspiro e olho mais detidamente para o Zé Ninguém.
Ele parece tão ferrado quanto eu. Os cortes, as contusões, o tiro na cabeça... O pobre homem também passou por uma situação terrível. Será que ainda estão atrás dele? Puxo a cadeira mais para perto e seguro a mão forte e inerte buscando um conforto que - eu sei muito bem! - o desconhecido não pode me oferecer. Contenho um soluço. Sinto-me tão só.
O calor da mão dele me faz sentir estranhamente reconfortada e segura. Há calos na palma e nos dedos, revelando um homem de ação. Do tipo que não espera os outros fazerem por ele.
Relutante, solto a sua mão, por considerar altamente impróprio e para prevenir de ser flagrada segurando a mão do paciente, sem motivo plausível.
- Não sei o que fazer! - digo para mim mesma, ou para ele. - Simplesmente, não sei o que fazer, ou a quem recorrer... Não tenho ninguém, na verdade.
Lembro-me do livro que trouxe consigo e o abro numa página qualquer. É um livro de pensamentos. Folheio aleatoriamente e um deles chama a minha atenção: "Os olhos alcançam o horizonte; e a alma, o infinito"¹, de MD Gugik.
Muito bem... O que os meus olhos estão vendo? Que coisa idiota, isso não está funcionando! Largo o livro ao lado do sanduíche.
Um som me chama a atenção. Um deslizar, ou friccionar de tecido. Olho para trás e vejo a mão do Zé Ninguém agarrando o lençol. Arregalo os olhos e me inclino para observá-lo. Ele continua imóvel, de olhos fechados, exceto pela mão fechada no lençol.
- Zé... Você está acordado?
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De repente, os olhos dele se abrem, confusos... Mas surpreendentemente atentos. São de um azul escuro, como as águas do mar em dia nublado. Seus olhos se deslocam para o teto primeiro, piscam várias vezes para que entre em foco. Deslocam-se devagar para mim.
- Onde estou? - a voz sai rouca, difícil. - Quem é você?
- Uma coisa de cada vez! - respondo contente. Sorrio abertamente, mas ele não sorri de volta. Então, eu me afasto para pegar um copo de água, da jarra cheia colocada na mesa ao lado. Encho o copo até a metade e trago para ele.
Zé Ninguém faz menção de pegar o copo, mas eu tiro do seu alcance. Sento-me na beirada da maca, com cuidado, e passo o braço por baixo do seu pescoço para erguê-lo um pouco.
- O que pensa que está fazendo? - ele questiona, antes que eu termine o movimento.
- Ora, vamos! Fique calmo! - incentivo com gentileza. - Não vou lhe fazer mal. Nem atacá-lo.
Percebo que o Zé não ri da minha tentativa de piada. Afinal, olha o tamanho dele e o meu. Ao invés disso, ele endurece os músculos das costas e dos braços. Percebo que sua reação é pra valer... Na esperança de acalmá-lo, começo a dizer, em tom de conversa:
- Sou a médica que o atendeu durante o dia. Você chegou aqui desacordado - enquanto falo, inclino o copo na direção dele. O Zé acaba cedendo à necessidade e bebe com sofreguidão. - Vá com calma! Você estava meio que em coma... - Quando os olhos dele disparam para mim, acrescentou: - Uma concussão, escoriações, uma bala passou raspando pelo seu crânio... Diga-me, o que aconteceu?
Ele termina de beber a água, agora com goles menores... Empurra o copo na minha direção e fecha os olhos por um instante, com se tivesse feito um esforço enorme. Retiro o braço sob a sua nuca com cuidado, e levo o copo de volta à mesa.
De olhos ainda fechados, ele indaga:
- Há quanto tempo estou aqui? - A voz se torna mais firme e exigente.
- Você chegou nesta madrugada.
- E como? Como eu cheguei aqui?
- Os pescadores te encontraram entre as pedras, no canal da Ponta Verde, do outro lado da ilha. Não encontraram seus documentos, mas avisaram o delegado.
À menção do delegado, Zé Ninguém abre os olhos, completamente alerta.
- O delegado Brett Andrews - informo, fingindo não perceber a sua reação. - Ele esteve aqui não faz muito tempo. Como você não estava acordado e ele precisava identificá-lo, fotografou as suas tatuagens porque, ao que parece, você não tem digitais.
Ele fica em silêncio. Um silêncio tenso.
- Quem é você?
Ele não responde.
- Se não me disser, saberemos do mesmo jeito, porque em breve chegará o resultado da pesquisa por tatuagens... E se não chegar, o delegado irá pedir um teste de DNA a fim de passar pelos bancos de dados. - Começo tagarelar de nervosa que fico. - Ele só não fez isso logo no começo, porque é um teste caro e o orçamento da polícia da ilha não cobre o...
- Se eu soubesse quem sou, não haveria motivos para não lhe dizer - ele me interrompe.
- Pensei que as marcas da surra e...
- Não sei o que aconteceu.
- O que está querendo dizer? - inclino a cabeça, desconfiada.
- Não seja obtusa - ele se irrita. - Sabe perfeitamente o que estou querendo dizer, afinal, você é uma enfermeira!
- Médica - corrijo, automaticamente. Um pouquinho ofendida, repito: - Sou médica, como já expliquei.
- Não, você não explicou.
Percebo que estamos nos desviando do centro da conversa. Eu me inclino sem desviar os olhos dos seus. Com um suspiro, ele recosta a cabeça na cama e se rende.
- Eu não sei quem eu sou.
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1 - Rodapé: Criei essa frase aos 17 anos. É o meu lema de vida.
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