2 - O ilustre desconhecido
(Wilmara)
Algum tempo depois, cerca de uma semana, decido alugar a casa e me mudar de volta para o alojamento do hospital. O motivo: não me sinto segura ali sozinha. O que é a mais pura verdade. Tenho medo que Brett apareça no meio da noite e me ataque. Ou que Nelson volte dos mortos... Sei lá! Me sinto paranoica e apavorada; mais sozinha do que nunca; tendo que conviver com o peso das minhas mentiras.
O aluguel da casa deverá ser pago em dinheiro vivo todo mês. E eu vou guardar o dinheiro no cofre do banco e não na conta bancária conjunta... Para o caso de precisar fugir de repente, com dinheiro vivo na mão.
Optei por essa estratégia, para não levantar suspeitas.
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Pensei que me sentiria mais calma ao voltar para o meu antigo alojamento, dentro do hospital. Contudo, passei a sonhar com aquela luta pela faca... Todas as noites.
Apenas ontem dormi bem... e acordei hoje descansada... Como se tivesse uma boa intuição de que as coisas irão melhorar... Que o meu anjo da guarda está me protegendo.
Com o ânimo um pouco mais leve, vou para o chuveiro coletivo, tomo um banho demorado, onde lavo toda a sordidez do meu casamento e das coisas que meu marido fez. Depois volto para o quarto, vestida e pronta para mais um dia de trabalho.
Ao chegar à enfermaria, pego os prontuários, como sempre faço.
A enfermeira contorna o balcão e se posiciona ao meu lado.
- O que temos para hoje, Sil? - pergunto.
- Hoje saímos da rotina - Silverlaine comenta, parecendo um pouco espantada.
Seu tom me chama a atenção e desvio os olhos dos prontuários para observá-la mais atentamente.
- Por quê? O que foi que aconteceu?
- Um desconhecido deu entrada na emergência, logo cedo. O pessoal o apelidou de Zé Ninguém.
- Como é que é? - dou risada. - Explique essa história direito.
Sil também ri, enquanto me acompanha pelo corredor.
- Os pescadores trouxeram um homem inconsciente, encontrado boiando no canal da Ponta Verde. Estava seminu, com um tiro na lateral da cabeça que passou raspando, mas que quase o escalpelou. Por pouco não tira um pedaço do crânio. Ele tem marcas pelo peito e costas que podem ser de tortura. Há a suspeita de costelas fraturadas... Estava quase morto, quando o encontraram. O médico de plantão teve que ressuscitá-lo duas vezes. Os pulmões precisaram ser drenados...
- Nossa!
- Pois é.
- O paciente acordou?
- Não. Está na ala intensiva. Na verdade, doutora, é o primeiro paciente do seu turno, antes de começar a atender os pacientes do ambulatório.
Pensativa, caminho em direção à Unidade de Terapia Intensiva. Não é sempre que tenho um paciente assim, tão grave, para monitorar.
- Quero ver as prescrições que Alan deixou para ele.
Atenta ao prontuário do Zé Ninguém, levo um susto ao me deparar com o delegado Andrews esperando por mim, na entrada da UTI. Procurando me acalmar, eu me aproximo com o prontuário nas mãos, feito um escudo.
- Preciso falar com ele - disse o agente da lei, sem rodeios.
- Só quando a saúde do paciente se estabilizar e você for autorizado - respondo, no mesmo tom. - Além do mais, ele está inconsciente.
Brett me lança um daqueles olhares lascivos que tanto detesto.
- Inconsciente, é? - ele franze o cenho, então, questiona: - Como sabe que ele está inconsciente, se ainda não foi vê-lo?
Sorrio com frieza, enquanto contorno o delegado e abro a porta de vaivém da UTI. - Por que a enfermeira me atualizou, assim que cheguei.
Sil, a enfermeira em questão, entra pela porta atrás de mim.
--Euzinha - explica de passagem.
Solto a porta de vaivém na cara do delegado. Viro-lhe as costas e finjo não ouvir quando a porta bate nele e Brett nos xinga baixinho: - Putas!
Continuo andando, sem conseguir evitar os calafrios percorrerem a minha espinha só de pensar naquela ave agourenta.
- Tudo bem, doutora? - pergunta a enfermeira.
- Tudo - me apresso em responder. Mas não está tudo bem.
Brett Andrews representa um pêndulo sobre a minha cabeça. Ele foi o primeiro a dizer por aí que ninguém viu o carro do meu marido pegar a balsa para o continente. Para a minha sorte, também não viram o carro ir para qualquer outro lugar.
Por enquanto.
Tento afastar as preocupações e abro a cortina. Deparo-me com um homem deitado na maca, imóvel como se estivesse morto. Ele é grande demais para caber nela... Os pés estão para fora e os braços caídos pelas laterais. Tem o porte de um atleta. Talvez, militar... As tatuagens nos braços e no peito são elaboradas e tomam boa parte de seu corpo. Elas desaparecem por baixo da camisola verde que o recobre... Deixarei para examiná-las mais tarde.
Num breve olhar, percebo que o paciente continua desacordado. Examino-o em silêncio, com a ajuda de Sil.
Pressão, respiração, batimentos cardíacos, o ferimento na cabeça... Reação das pupilas, aspecto da pele... Nesse ponto do exame, reparo num pequeno calombo na altura do quadril. Parece recoberto por uma cicatriz.
- Me passe o bisturi, Sil - eu peço. Entendendo o que pretendo fazer, ela esteriliza o instrumento, enquanto coloco luvas cirúrgicas e as esterilizo também.
Abro um pequeno corte a fim de examinar o calombo. Imagino que deverei enviar para a biópsia, contudo, para minha surpresa, não se trata de um corpo produzido pelo organismo. É um minúsculo objeto metálico, em forma de cápsula.
- Nossa! Que estranho! - Comenta Sil, olhando para a peça.
Eu descarto o objeto na bandeja, limpo o corte minúsculo, dou três pontos para prevenir, e passo uma pomada.
- Mostre para o Alan, antes de descartar.
Ela acena com a cabeça, enquanto volto a examinar o paciente. Checo o soro, medicamentos, acesso intravenoso... Sil anota tudo o que eu digo, inclusive algumas alterações na medicação prescrita por Alan. Ele não deve ter percebido que se enganou... Despeço-me, deixando que ela cuide alterações. Atravesso rapidamente o corredor, em direção ao lado oposto da UTI, ou seja, o ambulatório.
O rosto do Zé Ninguém permanece gravado em minha mente. Acompanha-me por toda manhã. É um rosto marcante. Quase devasso com aquela careca sem nenhuma marca. O bronzeado por igual indica que ele não tem cabelo ou raspa há muito tempo. Definitivamente, não é bonito, mas é diferente. Do tipo rude, mas que pode ser gentil. Se quiser... Talvez não queira, nunca. Ou reserve a sua gentileza para ocasiões especiais.
Aqueles lábios parecem severos, mas imagino como pode ser o seu sorriso. Não sei dizer o motivo, mas presumo que deve ser um sorriso deslumbrante. Do tipo que ilumina todo o rosto. Aposto que seus sorrisos são eventos raros. Algo naquele homem me faz lembrar das gravuras do faraó Ramsés II, o grande.
Um belo homem. Não no sentindo convencional e estético - leia-se: os bonequinhos fabricados nas capas de revista. Tudo nele irradia perigo e masculinidade à flor da pele.
Se ele não acordar, coitado, vai ser um desperdício de homem...
Sil se junta a mim, quando estou terminando de atender o terceiro paciente daquela manhã.
- Estive pensando em pedir uma tomografia para o Zé Ninguém - anuncio. - O que você acha, Sil?
- Será necessário trazer o aparelho, porque o paciente não pode ser movido - pondera a enfermeira.
Considero a situação, em busca de uma alternativa.
- Vamos ver se o instituto de radiologia da Jamaica envia um técnico ainda nesta semana. - Entrego a prancha à enfermeira. - Vou fazer a ligação, assim que terminar aqui.
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