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Capítulo 18

Ela morreu. Por minha causa. Esse foi o primeiro pensamento de Abner após despertar. Depois que a picape capotou duas vezes, o garoto desmaiara nos braços da Solari. O carro estava invisível, então ninguém percebeu o terrível acidente que tragara uma vida, os humanos pensavam apenas que o carro que os bateu tinha colidido em um poste.

Abner abriu os olhos devagar e sentiu a luz do dia feri-los, revelando que não havia passado muito tempo desde o acidente. O acidente, a cartomante! Freneticamente, levantou-se para ir checar se ela ainda respirava e se podiam leva-la ao hospital. Ele ansiava por esperança. O que encontrou, porém, foi uma vastidão de terra sem vegetação alguma. A garota vermelha, sentada sobre os joelhos no chão, encarava indiferente o humano desesperado.

O que de fato aconteceu foi que, como esperado, a garota vermelha protegeu Abner do impacto gerado pela batida sem sofrer danos algum. Só havia chance de salvar a um e sua melhor opção era sua duplicata que, na verdade, era muito mais que isso, tornara-se uma parte importante dela. Colocaria a vida daquele humano na frente de qualquer coisa, quantas vezes fosse necessário. No entanto, Abner não compreendia isso, ou não via dessa forma. A cartomante fora até a rodoviária para salvar pessoas que nem conhecia. Ela era prioridade. Nele, a dor não tinha a ver com quase ter morrido, mas sim com o fato de saber que alguém se sacrificara em vão.

- Você devia ter salvado ela, não eu. – Indicou Abner, olhando o chão arenoso.

- Não tive escolha. Minhas chances de sobreviver sem você são zero. – Replicou a garota vermelha.

- Você só pensa em si mesma! Até quando vai roubar coisas das pessoas em benefício próprio?!

Abner já gritava. Externara todo o choro que havia suprimido minutos antes. Sentia que tinha perdido algo, um vazio.

- Eu não roubei nada! – Defendeu a Solari.

- Roubou! Minha mãe, minha casa, minha vida! Roubou até a vida daquela senhora! – Houve uma pausa... – Eu me arrependi de ter dado ouvidos a você.

O garoto choroso deu meia volta e começou a se distanciar dela. Caminhou passos lentos, sofridos, como se um fardo estivesse sobre ele. Tudo estava perdido. Nem ao menos sabia onde estava, como poderia voltar para casa? E se na verdade muitos dias já haviam se passado e a sua tia tivesse entendido que ele não queria mais morar lá? Ainda seria aceito? Perderei minha mãe?

- Ela me pediu pra te salvar! – Exclamou a garota vermelha para que Abner pudesse ouvir de onde estava.

- Como é? – Parou, mas perguntou ainda de costas.

- Ela ainda estava viva quando o carro parou de rodar. Disse que precisávamos cumprir o nosso destino e para isso, deveríamos deixá-la para trás. Seu nome era Ágata... Fomos salvos, Abner.

Abner não disse nada. Só chorou. Sentou no chão, sentindo o incômodo da areia meio quente. Silenciosos minutos divagaram entre os dois. Ele sabia que a cartomante tinha visto algo naquele dia que ele foi procurá-la, o qual poderia ser algo tão terrível ao ponto dela não conseguir contar. Isso o assombrou. O fato mais curioso é que Abner achou ser parte de algo intimista, pequeno, somente da garota vermelha e dele, mas longe disso, existia uma grande teia de pessoas e coisas envolvendo esse "mito galáctico" de uma fusão entre humano e corpo celeste. Se ele unisse o início e o fim desse emaranhado de linhas, talvez desvendaria não só o que Ágata tentou dizer, mas também como continuar na Terra e salvar sua mãe.

- Sabe, essa foi a primeira vez que você chamou meu nome. – Abner comentou, mais para si do que para os outros, no seu velho hábito – Eu gostei.

- Já chamei outras vezes, humano – embora ela disfarçasse bem, podia-se ver que a garota vermelha estivesse "sem jeito". Ela estava focada na verdadeira razão por vir a esse planeta rochoso e cheia de água, mas às vezes, esquecia o seu lugar. – Seja como for, você não pode ir. Preciso, quer dizer, nós precisamos cumprir o que nos foi dado. Ágata disse que eu não vim para a Terra para me fundir, vim para resgatar alguém.

Abner aguçou os ouvidos, caminhou de volta a garota vermelha e agarrou seus braços. Exigiu que ela lhe explicasse o que acabara de afirmar.

- Eu não sei! Juro que quando fui mandada para cá, achava que deveria me fundir a você.

O Universo é mesmo um grande sacana¹! Pelo menos foi isso que Abner pensou. Enviou aquela Solari para a Terra só pra aborrecer um ser humano? Não, claro que não. Se não se fundiriam, outra coisa ele deveria fazer. O que poderia ser então? O que poderia ser então?! O garoto martelava consigo mesmo. Caminhou de um lado para o outro até que se lembrou; a echarpe! Ela poderia ter a resposta. O guri lembrava perfeitamente o que a cartomante dissera no carro. Eles tinham algo a ver e talvez aqueles desenhos pudessem revelar o futuro que tanto desejava saber e verdades ocultas que clareariam a mente dos dois.

- Cadê o cachecol da cartomante?! – Abner, agora, se levantara e dialogava olhando para a garota vermelha.

- Ficou no acidente, achei que não tinha importância.

Abner pensou um pouco.

- Não tem problema, – disse ele – acho que me lembro de boa parte dos desenhos.

Graças a memória fotográfica que tinha, Abner pode lembrar com exatidão quase todos os desenhos do velho pedaço de pano de Ágata. Até a forma como foi bordado ele se recordava, mesmo que vagamente. Usou um graveto e fez do chão sua tela de pintura. Suas calças sujaram no joelho e ele não se importou. Minutos depois, um grande conjunto de retalhos arenosos foi concluído, mas bem no canto superior, do lado direito, um desenho faltava. A ausência dele incomodava o ar artístico e levantava suspeitas de sua importância.

- O que seria isso? – quis saber a expectadora, até então.

- Os desenhos da echarpe. Lembra que Ágata falou sobre eu ser o motivo daquilo estar nos ombros dela? – Abner sacudiu a calça e uma pequena nuvem de poeira cercou suas pernas – Acho que eles podem nos dizer o que realmente devemos fazer. Talvez foi assim que ela descobriu sobre nós, veja só aquele desenho – apontou para um deles perto do seu pé – Aquilo parece ser eu na rodoviária sendo levados pelos homens maus.

Os dois ponderaram a teoria.

- Quem eram eles? – Abner externou a dúvida que há muito pairava no ar.

- Eu não sei. Mas desconfio que já sabem sobre nós, porque eles foram atrás de você. Mas a pergunta é: como?

- Você acha que eles são do Governo? Tipo, existem várias teorias da conspiração que falam sobre esconder muita coisa da população. Talvez descobriram sobre o seu povo e querem estudar a gente.

- Sem chance! Só existiram dois duplicatas na Terra até hoje, você é o segundo e o primeiro foi a milhares de anos atrás quando a tecnologia nem era pensada.

- E se existisse outros de nós? – dessa vez, Abner mostrou um dos desenhos mais estranhos de toda aquela coleção; uma figura humanoide com expressão de medo, ao lado de uma estrela e uma foice, tinha como plano de fundo a frase "metade branco" em inglês – A julgar por esses dois símbolos, acho que aconteceu no período da Guerra Fria². Naquela época, os meios de comunicação ainda estavam sendo desenvolvidos, então era fácil manipular qualquer informação. Não existia nenhum site nem internet que conseguisse espalhar para o mundo a notícia de uma grande bola de fogo vermelha que cruzou o céu e tempos depois um humano se fundiu numa poeira cósmica.

- Consideramos que isso é verdade, mas então como conseguiram ver o outro Solari? Se você não se lembra, só você pode me ver em meu estado normal.

Abner então se lembrou que viu, ainda na rodoviária, a garota vermelha lutar com alguns dos homens de ternos pretos. Não usam nenhum tipo de óculos especial e duvidava que estivessem com algo no olho, como uma lente super tecnológica. Sendo assim, eles a enxergavam, nitidamente a luz do dia.

- Ágata te viu e ouviu, eles também. O outro Solari pode ter se descuidado e revelado quem era no lugar e na hora errada.

- E como sabiam do humano? – a garota vermelha indagou, duvidosa.

- Da mesma forma que sempre somos atraídos um pelo outro. O Solari pode ter sido capturado e como estava sempre com o humano, os homens de preto se esbaldaram!

Os dois ainda ficaram analisando os desenhos por um período de duas horas. A ideia era absurda. A coisa lembrou que o seu tempo para se tornar a Grande Estrela Vermelha estava acabando, visto que se passaram três anos terrestres e Abner ainda não se fundira a ela. Como forma de aviso do seu povo, duas bolas de fogo azul cortavam a atmosfera da Terra. A primeira viera, testemunhada por muitos no céu de Magé, e se a segunda viesse era seu fim. Isso significava também que, se de fato outro Solari além dela tivesse vindo a Terra e fosse capturado antes de se fundir, ele estaria em grande perigo, talvez nem mais vivo.

- Como vamos descobrir se um terceiro Solari visitou a Terra? – quis saber a estrangeira.

- Eu acho que já sei por onde podemos começar – Abner parecia estranhamente confiante.

A garota vermelha ergueu a sobrancelha esquerda, como incentivo para ele continuar.

- Mas antes... – ele fez uma pausa dramática e desnecessária – Preciso saber onde estamos.

| N O T A S |

¹ Sacana, segundo a cultura nordestina, é um adjetivo dado àquele(a) que gosta de pregar peças, que é espoleto ou gosta de enganar as pessoas por diversão. Nem sempre é um adjetivo "leve", sem maldade. Pode ser atribuído ao lado ruim de enganar. [Fonte: desconhecida]

² O período da Guerra Fria aconteceu entre os anos de 1945 a 1991, logo após a Segunda Grande Guerra, marcada pela divisão do mundo entre duas potências, isto é, países mundialmente influentes. Quando o personagem se referiu aos dois símbolos (a estrela e a foice) no desenho, aludia justamente a elas: os Estados Unidos da América e a União Soviética. [Fonte: Wikipedia]

Nº de palavras: 1713

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