Epílogo
Diante do espelho, eu estava parecendo um guarda-chuva virado ao contrário.
Já havia xingado Carolina Ribeiro de palavrões que sequer existiam por ter escolhido trajes formais para sua festa desde o início daquela manhã de sábado, que não era verdadeiramente o dia dos namorados, mas como não havia possibilidade de fazer uma comemoração no meio da semana para que tal evento fosse realizado na data certa, optaram por deixar no final de semana que a precedia.
A ideia de me enfiar dentro do vestido azul que me abraçava o corpo foi da minha mãe, dona da peça em questão. Não poderia mentir e dizer que não gostara nem um pouco do modelo esvoaçante que ia até a ponta dos meus tênis recém lavados, porque, no fundo, ele havia enchido meus olhos de estrelas.
Gertrudes queria que eu colocasse, também, um par de saltos que me deixavam a pelo menos dois andares do chão, mas assim que me viu sair do quarto com meu tênis velho que parecia ter acabado de voltar de uma guerra, mesmo estando limpo, percebeu que não tinha dado muito certo.
As orbes de Paulo e Donato viajaram do vídeo game que jogavam até mim, e as gargalhadas de ambos se mesclaram no ar.
– Tu tá parecendo aqueles bolos de casamento com andar. — Paulo zoou.
— Ou um daqueles guarda-sóis gigantes. — Seu namorado complementou, erguendo as sobrancelhas.
– Obrigada pela parte que me tocam. – Rolei os olhos.
— Estamos brincando, maninha. Tu tá linda demais. A lua vai ter que competir com você pelo posto de coisa que mais brilha no mundo essa noite. — A sinceridade daquele que partilhava meu sangue foi palpável.
Don assentiu, com um sorriso que somente reforçou a afirmação do garoto ao seu lado. Não contive um sorriso.
— Você não vão para a festa?
A careta simultânea — e muito parecida — de ambos denunciou a resposta.
– Nem. Estamos no meio da parte mais emocionante do jogo. — Donato se manifestou.
- Você está radiante, querida! — A exclamação súbita de mamãe, vinda de um ponto que meus olhos caçaram de imediato, foi enérgica.
Ela estava parada no arco que dividia a sala da cozinha, encarando-me com um milhão de centelhas de deslumbre enfeitando seu castanho.
- Mãe, é só uma festa idiota. Não precisava de tudo isso. – Apontei para mim mesma.
– É a sua primeira festa de Dia dos Namorados, filha! Isso é memorável, até porque você nunca teve um namorado!
– Mas ele não é exatamente o meu...
A frase foi interrompida pelo toque do interfone. Empolgada, mamãe correu para permitir a subida, e eu esperei até a presença do ser de cabelos laranja se anunciar na porta.
Assim que Gertrudes girou a maçaneta e abriu o retângulo de madeira, seus olhos se arregalaram até o limite diante da visão que teve do ruivo, para, depois, se estreitarem em uma análise minuciosa dos seus trajes.
– Minha nossa senhora! – exclamou, em meio a um riso leve. – Menino, às vezes eu esqueço do quanto você é esquisito.
Pude ouvir a risada ruidosa de Jader. Aproximei-me com alguns passos derradeiros até onde estavam, e um sorriso deslumbrado se aflorou nos meus lábios quando tive a visão de Jader dentro de um terno azul com diversos detalhes bordados repletos de brilho, com pedrinhas coloridas enfeitando a superfície do paletó. O cabelo estava secando, de modo que os cachos incendiários escorriam por toda parte.
Assim que suas orbes amareladas encontraram as minhas, o canto dos seus lábios se repuxou em um sorriso que portava toda a imensidão da sua alma.
– Boa noite, senhora. – Cortesia enfeitou sua entonação, conforme voltava a encarar a minha mãe. Então, tomou a palma dela na sua e depositou um beijo suave na pele, a boca trêmula para rir diante do próprio gesto exagerado, mas se conteve.
– Tá vendo aí, Paulo, como se trata uma dama? — ela brincou.
Paulo gargalhou, e minha atenção se voltou para ele à tempo de vê-lo lançar um aceno para Jader, voltando a se concentrar no seu jogo logo depois.
– Mas, vem cá... Vocês estão usando camisinha, não estão? – A pergunta nada discreta da minha mãe direcionada ao rapaz à sua frente fez mil tons de vermelho subirem às bochechas dele, e às minhas, também.
Porcaria. Por que raios fui inventar de dizer à mamãe que já tínhamos transado?
Bom, o lado positivo compensou; ela, aparentemente, desistiu de forma definitiva de me puxar para o seu papo sobre sexo depois de me ouvir falar que tudo dera certo sem muitos deslizes, embora parecesse duvidar um pouco de que estávamos nos protegendo, por causa dos “ hormônios adolescentes à flor da pele”, nas suas palavras.
Caminhei até ficar ao lado de Jader e me agarrei em seu braço.
– Mãe, já vamos indo. – anunciei, querendo fugir o mais rápido possível dali para evitar mais alguma pergunta potencialmente constrangedora.
Mal ouvi sua resposta, e já estava puxando o garoto pelo corredor.
– Se divirtam! Vê se volta antes das onze, mocinha! – dona Gertrudes quase gritou – E não esqueçam da proteção!
– Ela acha que somos dois coelhos. – Jader sussurrou, o timbre baixo.
– Ela é meio doida. – falei o que o próprio já haveria de ter confirmado por si só, apertando o botão do elevador que saíra do conserto recentemente.
As portas metálicas se abriram em poucos instantes, e ele me seguiu quando entrei.
– Tal mãe, tal filha.
Acertei uma leve cotovelada nas suas costelas, rindo.
Seu cheiro estava por toda parte daquela caixa pouco espaçosa, incendiando o ar com as notas inebriantes do perfume extremamente agradável. Senti quando os dedos quentes de sua mão tocaram os meus, despretensiosamente, e eu entrelacei nossas palmas.
Eram oito andares até o térreo. No sétimo, seus orbes alcançaram as minhas, com um brilho surreal nadando em meio ao caramelo líquido das suas íris.
No sexto, sua mão livre alcançou minha bochecha e a minha vagou, instintivamente, até a lateral do seu pescoço, sentindo suas digitais espalharem furor por todos os poros do meu corpo.
No quinto, ele estava tão perto que sua respiração ondulava minha face, banhando a pele sensível de calor.
No quarto, nossos lábios se chocaram, espalhando faíscas por todo lado.
No terceiro, a porta do elevador se abriu abruptamente e eu quase caí para trás. Uma senhora entrou, lançando um olhar fulminante para nós dois.
– Essa juventude perdida de hoje! Perdoa, senhor! – Pude ouvi-la clamar num sussurro.
Segurei tanto a risada que achei que fosse explodir. Mas quando olhei para o lado e vi Jader na mesma situação, tive um ataque tão grande que provavelmente fiz a senhora do 403 me odiar pelo resto da vida.
A casa de Carolina Ribeiro era imensa, banhada de um luxo que eu nunca tinha visto antes, com piscina, estátuas pálidas espalhadas pelo jardim e até mesmo uma fonte cuja água se assemelhava à cristal líquido jorrando por toda a sua estrutura.
Centenas de adolescentes se amontoavam, desfilando em seus vestidos elegantes e ternos elaborados.
Senti-me um tanto deslocada, não por não ter nada daquilo, mas por não estar me importando em não ter. Pelo contrário. Eu desejei nunca ficar como a maioria daquelas pessoas, que exibiam seus parceiros ricos e bem arrumados como troféus na multidão, cumprimentando uns aos outros com sorrisos falsos e palavras carregadas de ironia disfarçada.
Com os dedos entrelaçados aos de Jader, deslizei por aquele amontoado de gente em busca de rostos conhecidos.
Deparei-me, após desviar de um amontoado de jovens em profusão, com Cris conversando animadamente com seu novo grupo de amigos, ao lado do mesmo garoto que a vira rindo ao seu lado no parque, e que ela tanto falava antes das coisas entre nós ruírem; Rubem.
Seu foco recaiu sobre mim, e o riso que pendia em seus lábios se dissipou rapidamente.
– Oi! – falei por cima da música, abrindo um sorriso educado na sua direção.
Cris me varreu de cima à baixo e, em seguida, fez o mesmo com Jader, deixando sorriso carregado de malícia transbordar ácido em suas feições.
– O que foi, Carmelita? – Seu timbre escorreu sarcasmo. – Perdeu alguma coisa por aqui?
Ela riu e os outros a acompanharam, na proporção que meus dentes trincavam sob o ódio borbulhante que passou a preencher meu sistema, diante de todos os flashes de momentos que tivemos juntas, e que foram convertidos em pó pela certeza de que nunca foram, de fato, reais.
Senti a mão de Jader pressionar de leve a minha, como que para me trazer de volta ao mundo.
– O que ainda está fazendo por aqui? Vaza, idiota. – As palavras da minha ex-amiga foram poços de desprezo.
Um coro de risadas se fez audível, seguido de alguns comentários que não consegui ouvir.
– Sabe de uma coisa? – Abri um sorriso forçado. – Essa porra toda é ridícula, e eu não faço a menor questão de ter a amizade de alguém tão de plástico como você!
Sentindo o peso de lágrimas amargas em meus olhos, dei as costas para todos e disparei sem rumo por aquela festa, ouvindo a voz de Jader chamar por mim, cada vez mais distante.
Estava me sentindo tão ridícula, tão fora de compasso, tão dissonante daquele lugar e de tudo o que ele simbolizava... e era estranho pensar no quanto eu tinha me divertido nas últimas semanas com coisas tão simples, como porções de batatas fritas, um carro velho, conversas malucas, uma história significativa de amor e Jogos de tabuleiro, enquanto passar vinte minutos ali estava me matando por dentro.
Não entendia mais por que sonhei tanto com aquilo. Existir naquele espaço o qual eu não me identificava era tão estupidamente vazio...
Sentei num canto afastado do jardim e abracei meus joelhos, enquanto fitava a infinitude estelar pintada no manto escuro acima da minha cabeça.
Estava distraída na minha bolha quando senti alguém tocar meu ombro e, ao virar o rosto, me deparei com um garçom empunhando uma bandeja repleta de docinhos.
– Você está bem? – ele questionou, os olhos estreitos.
– Não. Estou péssima! – declarei, resoluta. A ponto de explodir, entoei as palavras que estavam entaladas em mim desde quando cheguei naquele lugar: – Eu não faço a menor ideia do que estou fazendo aqui!
Minha angústia pareceu tocar o coração do cara, porque ele me deixou ficar com sua bandeja celestial. Estava me entupindo com os doces deliciosos que a enfeitavam quando a presença inconfundível se anunciou ao meu lado. Jader se sentou perto de mim e fisgou um brigadeiro, levando-o à boca antes que eu pudesse tomar de volta.
– Você é um filho da puta. – resmunguei, direcionando minhas orbes ao seu semblante preocupado, que reluzia parcialmente à pouca luz do jardim.
– Sua amiga foi uma total escrota. – entoou, com uma sinceridade palpável. – Não fica triste por causa dela, por favor...
– Vou ficar bem. – assegurei, soltando o ar em um suspiro pesaroso. – Me desculpa por ter fugido assim. Eu só... não queria mais ficar no meio daquela gente.
– Tá tudo bem. Só... Não faz de novo, por favor. – Torceu o nariz em uma careta. – Eu fiquei preocupado. Não te achava em lugar nenhum.
Assenti, com pesar.
Seus dedos deslizaram por entre os meus, com o típico fervor que emanava dele trazendo conforto às minhas células. Um longo momento de silêncio se seguiu, enquanto observávamos de longe o amontoado de adolescentes bebendo, se esfregando uns nos outros e dançando no embalo da música que ecoava, distante.
Eu sentia tanto na sua presença. Estar perto dele era transbordar, como se tudo em mim fosse rio, fosse mar, fosse oceano, fosse mundo, fosse galáxia, universo em expansão, big-bang eterno que estende suas bordas até um infinito que não conhecemos.
Apertei os lábios, e uma gota de todo o sentimento que me preenchia por dentro trilhou caminho pela minha bochecha.
— Eu... acho que te amo. — soprei, e a declaração se mesclou ao vento gélido que nos embalava, tornando-o muito mais acalorado junto aos salpicos do orvalho que abraçava nossas peles.
O sorriso trêmulo que me lançou evidenciava o quanto também ficara prestes a transbordar.
— Eu também te amo, cactozinho.
Encarei seus olhos, percebendo que a forma como brilhavam me remetia ao céu acima de nós. Ele levou a mão ao cabelo, sacudindo as mechas com um sorriso embaraçado no rosto.
– Quer ir para minha casa? Meu irmão fez outro brownie. A gente pode comer enquanto joga baralho, ou sei lá... dança.
Juntei meus lábios nos seus, em um selinho que se findou rápido demais.
– Considere isso como um sim.
Pude vê-lo sorrir. Levantamo-nos, mas antes de ir embora, fisguei o último brigadeiro da bandeja.
Então, corremos em direção à multidão como dois loucos, desviando do mar de pessoas e rindo para o vento de um jeito que provavelmente faria nossas bochechas doerem.
Os olhares de julgamento que foram despejados sobre nós não incomodaram. Porque, embora não soubesse exatamente qual era o meu lugar, eu tinha certeza que não era, e nem nunca seria, ali.
Quem sabe, eu não fosse de canto algum; somente de mim mesma.
Ser esquisita, no final das contas, não era tão ruim. Pois eu aprendera, em meio a risadas açucaradas de coisas sem sentido, acidentes e desventuras, que o mais importante é viver a verdade individual que habita dentro de todos nós. Apenas sermos, completamente, inteiramente.
E dançarmos sob a galáxia até o fim de tudo.
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