4: Um Cacto No Carro
Aquilo era uma piração tão grande que eu me perguntei se os parafusos remanescentes na minha cabeça estavam em seu devido lugar.
Certamente que não. Era fato. Talvez o açúcar que colocara no meu café matinal não fosse açúcar. Deveria ser alguma substância bem mais alucinógena, do tipo que muitíssimo em breve me faria ver porcos alados saltando nas nuvens e o mundo pulsando em cores fluorescentes feito constelações vivas imersas em ultravioleta.
Precisava avisar para o Paulo que não iria para casa junto com ele. Então, cacei meu digníssimo irmão logo depois de falar com Jader, e não tardei a encontrá-lo no canto em que ficava me esperando para voltarmos juntos. Fazíamos isso porque a carona costumeira com seu par de amigos gêmeos era inexistente na volta, além de ser divertido para burro flutuar por entre as conversas devaneantes de Paulo sobre jogos, músicas indie e o que aprendera no colégio, mesmo que ele se entediasse às vezes com as minhas acerca do motivo do pão se chamar pão e de não existir um masculino para "seta".
Esfregando os cadarços cheios de nódoa cinza do meu tênis com a ponta plástica do outro, o avisei que voltaria para o apartamento somente dali a algumas horas.
— Coisas importantíssimas para se resolver. — foi o que respondi, sob o seu olhar apertado em uma mescla de desconfiança e confusão faiscante. — Sabe o que dizer para a mamãe caso ela chegue antes de mim. Casa da Cris, ouviu? — salientei, recebendo em troca o seu menear de cabeça.
— Certo, certo, não vou te ferrar. Quer dizer... depende. Tu sabe o meu preço. — Seu tom foi sugestivo.
Rolei os olhos e mergulhei a mão nos bolsos da calça, fisgando algumas notas velhas que deveriam ter criado uma família inteira de mofos ali dentro, com mini-filhos-mofinhos e seus respectivos parentes verde-musgo.
Apesar de ter ganhado uma carteira de presente no meu último aniversário, eu não conseguia me livrar da mania de rechear os bolsos de moedas e cédulas.
Estendi os reais na direção do meu irmão e ele sorriu, satisfeito, capturando-as por entre os dedos.
— Aliás, pode levar minha bicicleta, também? — pedi, lançando-lhe um sorriso torto.
O garoto concordou, um tanto a contragosto. E, pouco depois, eu já estava acomodada dentro do carro que Jader me mostrara há alguns minutos, com a plena certeza de que as minhas faculdades mentais não estavam nem um pouco intactas por ter aceitado embarcar nessa situação.
O ruivo dirigia um Uno 1998 que foi reformado pelo seu tio e dado de presente ao irmão mais velho do garoto, João, no ano anterior. Pelo que me contara rapidamente, João usou o veículo por um curto período de tempo, pois no ápice dos seus vinte anos, conciliando faculdade e alguns bicos, estava à procura de algo mais novo e impressionante.
Então, a não-mais-lata-velha passou para Jader. Ele possuía, até mesmo, uma carteira de motorista tirada há pouco tempo, com a ajuda do mencionado tio.
Arrependi-me amargamente de ter lhe perguntado sobre isso, porque foi como se eu tivesse apertado um botão mágico que acionou sua função de fala. E, pelo amor de Deus, aquele indivíduo semi-alienígena não parecia cansar de tagarelar em momento algum, o que, aliado à forma estranha com que dirigia, estava quase me fazendo ter um colapso nervoso.
Era uma cena, no mínimo, degradante. Eu estava dentro do carro de um parcial desconhecido, segurando-me no banco para não ser arremessada para frente com a velocidade do veículo, enquanto ouvia Jader despejar uma coletânea de aleatoriedades que eu não fazia ideia de que canto do universo ele poderia ter pescado.
Estava tão calmo que chegava a ser surreal. Nem parecia que, em um segundo, tínhamos chegado a oitenta por hora em uma pista com o limite de quarenta.
Seu jeito de conduzir me permitia duvidar se voltaria para casa — ou se sobreviveria pelos próximos cinco minutos —, devido a uma mania muito esquisita de acelerar repentinamente às vezes e, depois, frear de forma abrupta quando estávamos quase colidindo com outro carro.
Nessa fração de segundo, eu conseguia sentir o gosto sanguinolento da morte se dissolvendo na minha língua.
Perguntei-me como ainda estava vivo.
— De onde tira dinheiro pra pagar todas as multas que devem chegar por mês? — questionei, em um dado momento, ganhando seu olhar estreito no meu rosto. — Porque, dirigindo desse jeito, você tem que ser no mínimo um traficante muito incrível, tipo o rei deles. E se você for, é bom parar esse carro agora, ou eu salto pela janela.
Uma risada lhe escapou, dissolvendo efervescência pelo espaço.
— Primeiro, não sou um traficante. Segundo, não são todas as ruas que têm fiscalização e radares. Eu só faço isso nas que não têm. — As palavras, que carregavam uma esperteza quase criminosa, saíram estranhamente naturais. — Foi um bom tempo pra aprender esse tipo de coisa, mas meu tio me ajudou. Ele foi a primeira pessoa que me ensinou a dirigir. — comentou, soprando um riso. — Nem sei por que aceitei isso na época. Aquele velho já bateu o próprio carro umas cinco vezes.
Arregalei os olhos de forma involuntária.
Ainda bem que havia tomado aulas de direção depois disso.
- Você é oficialmente o maior lunático que eu já conheci.
- Só gosto de um pouco de velocidade às vezes. – Deu de ombros, como se estivesse falando que prefere pão com ovo no café da manhã.
Pressionei as costas contra o banco, deixando um suspiro escapar. Uma música de Rubel se pôs a incendiar o veículo com suas notas solenes e, repentinamente, Jader abandonou o posto de papagaio de pirata e começou a cantar, sugando toda a beleza típica da melodia com aquele pretenso tom de ganso se afogando na privada.
Desejei que voltasse a falar sobre os seus pesadelos com escapamentos de carro depois das férias do ano passado, quando começou a ajudar o tio na oficina para compensar o dinheiro que o velho gastara para pagar sua carteira de motorista, apenas para que interrompesse aquela cantoria infernal que estava prestes a me dar hemorragia nos tímpanos.
Não era possível que não fosse uma tentativa — muito bem sucedida, aliás — de encher a minha paciência.
— Será que dá para você ficar quieto? – Meu tom foi áspero feito uma bucha de coral, enquanto massageava as têmporas para acalmar os neurônios borbulhantes sob a pele.
- Não tô afim. Que eu saiba, eu sou o motorista. – Ergueu uma sobrancelha, lançando-me um olhar rápido.
- Isso não quer dizer nada!
Movi a mão rumo ao rádio visando desligá-lo e, depois que o fiz, Jader levou os próprios dedos para o ligar novamente, as orbes estreitas na minha direção em um desafio faiscante que me impeliu a voltar a apertar o botão para interromper a música, sustentando seu olhar com uma sobrancelha erguida.
Até que lembrei de um detalhe: O carro estava em movimento.
Quando olhei para frente de novo, só tive tempo de ver uma lata de lixo se aproximar perigosamente do capô e soltar um grito. Jader fez uma manobra abrupta que nos barrou de subir na calçada, mas nos colocou na contra mão, onde quase passamos por cima de um ciclista muitíssimo apressado.
- Filhos da puta! – o cara gritou, assim que finalmente voltamos para a pista certa.
Uma risada carregada de desespero explodiu da minha garganta. Ao meu lado, Jader também entrou em crise, e os vislumbres do nosso alívio polvilharam o ar por tanto tempo que minha barriga doeu.
- Você tem um sorriso bonito, cactozinho. Deveria sorrir mais vezes. – ele murmurou, os olhos fixos na pista. — Quer dizer, você não tem dentes muitos tortos, nem muito grandes ou pequenos demais. Não que tenha problema ter essas coisas, não tem nada demais, é só que... sei lá. É um sorriso bonito, com dentes bonitos e tudo o mais.
Pude ver tons suaves de vermelho enfeitarem suas bochechas depois do comentário.
Eu não era uma pessoa que ficava constrangida com facilidade. Por isso, surpreendi-me quando um calor estranho se diluiu no meu rosto e inflamou cada canto da minha garganta, como se tivesse acabado de comer um sanduíche inteiro de sóis luminescentes.
— Ah, obrigada. É o elogio mais estranho que já me fizeram. — afirmei, estreitando os olhos enquanto rebobinava o meu histórico de elogios sinceros recebidos.
Provavelmente, nenhum tinha sido tão genuíno e esquisito para cacete como o de Jader.
Entretanto, assim que repassei sua fala na cabeça, percebi um detalhe. Mais especificamente, uma palavra.
Cactozinho.
— Chegamos! — Sua exclamação súbita ecoou antes que pudesse materializar minha observação revoltada acerca do apelido, fazendo-a se diluir rapidamente em arabescos de fumaça no ar.
A casa de Jader tinha o jardim circundado por várias plantas suspensas e em vasos no chão que chacoalhavam ao sabor do vento. Mais adiante, o cubículo da garagem se posicionava ao lado da varanda, que se abria através de uma porta de madeira para o interior da residência.
Distraída em observar algumas flores que irrompiam do quadrado de terra encostado no muro, pensando em como o pôr do sol faria aquele lugar ser um ótimo cenário para as minhas fotografias, quase bati a cabeça em um caqueiro que escorria do teto da varanda, mas, felizmente, consegui evitar o impacto.
Assim que o ruivo girou a chave na fechadura e o retângulo amadeirado se abriu, adentramos na sala. Reparei, então, em como tudo era monocromático ao extremo ali dentro, exceto pelo único cômodo cuja porta estava aberta e se revelava um verdadeiro arco-íris há poucos metros.
Segui Jader rumo ao espaço, até meus tênis tingirem a cerâmica bege do piso com seu tom fosco de preto. Subi as vistas, e contemplei a decoração formada por discos de vinil amontoados, meio trôpegos, ao lado de uma vitrola de modelo muito antigo, um pote de pincéis de tamanhos diversos sobre a mesa de estudos repleta de papéis inteiros e amassados, um pequeno caderno e um livro que parecia ter sido tirado da estante logo ao lado, porque só havia um pequeno espaço vazio em meio a todos os escritos empoeirados que a enchiam quase por completo.
Era uma bagunça organizada de um jeito muito inusitado, mas que fazia sentido.
— Mas e aí, por que você quer tanto ir à essa festa com o Toni? — Ouvi o dono do ambiente questionar e direcionei minhas íris à ele.
Jader agarrou a parte de trás do casaco que usava e o puxou para cima num movimento rápido, que fisgou a camisa de baixo e ergueu levemente seu tecido, exibindo um pedaço do seu quadril e os contornos iniciais dos músculos discretos do abdômen.
Não que eu tenha reparado que tinha músculos ali. Minhas retinas, assim como com todo ser humano portador de curiosidade, só se sentiram atraídas pela movimentação. Mas juro que olhei somente por um milésimo de segundo, e sem um átomo sequer de interesse.
- Bom... como já deve ter percebido, - comecei, cruzando os braços em frente ao corpo. – Eu estou na base da cadeia alimentar daquele colégio. Isso seria a minha última chance do Ensino Médio de não ser mais vista como “a garota esquisita”.
Uma risada fluiu dos seus lábios, enquanto colocava a peça que retirara sobre um suporte na parede. Em seguida, abriu a porta do guarda-roupas e, quando alcançou a bainha da farda para retirá-la também, virei-me de costas, mirando a parede revestida com recortes de atores, jogos e pôsteres de bandas clássicas como Os Beatles, Legião Urbana e Ultraje a Rigor. Ele parecia gostar muito da última, pois o primeiro vinil da sua pilha de discos era de um dos seus álbuns, cuja capa exibia a nostálgica imagem do homem loiro sem camisa, com um dos pés sobre um gorila jogado ao chão, enquanto o nome do disco, “Crescendo”, pintava-se em amarelo no fundo.
Eu era secretamente fascinada por essa banda.
— Qual é a graça? — inquiri, ligeiramente distraída em passar os olhos por cada pedaço de papel.
— Nada. É só que... eu não entendo essas pessoas que buscam a popularidade a todo custo. O que tem de tão bom lá em cima?
Era uma pergunta válida. Nem eu sabia, mas tinha certeza de que era muito bom, até porque a maior parte das pessoas parecia querer.
— Só sei que quero chegar lá. — Sacudi os ombros. — Aliás, discos legais.
Girei sobre meus pés para fitar seu rosto, observando a nova camisa abraçar seus ombros assim que a gola terminou de escorregar pelo pescoço. Seus dedos viajaram até os fios desgrenhados no topo da cabeça, esfregando os cachos afogueados rapidamente como o vento chacoalha o mar para erguer as ondas — se o mar fosse feito de algum tipo especial de suco de laranja com ketchup.
— Estão meio fora de moda há uns trinta anos, mas acho que é uma daquelas coisas que nunca perdem o brilho. — disse, os lábios se curvando em um sorriso.
— Exatamente. Coisas clássicas são fantásticas. — concordei. — E como conseguiu?
— Alguns eram do meu pai, mas a maioria eu consegui de segunda mão. A vitrola, ganhei de presente do meu avô.
— Maneiro. — Torci os lábios, ponderando. — Eu sempre achei que vitrolas tinham um formato muito estranho. Quer dizer, elas tem aquele bico enorme, parecem um guarda-chuva que deu errado ou sei lá.
— Eu fico pensando como eles descobriram que tinham que fazer desse formato. Quer dizer, como as pessoas que inventaram as coisas descobriram que elas tinham que ser daquele jeito? — indagou, genuinamente intrigado. — Por exemplo, um disco redondo. Por que não poderiam ter feito um em forma de triângulo?
— Aí não seria mais um disco, Jader. Seria, sei lá, um trisco.
As notas do seu riso preencheram o ar.
— É um ótimo nome.
Minha boca se curvou levemente.
— Ultraje a Rigor também é foda, com todo aquele humor característico deles. — Apontei para o primeiro álbum sobre a pilha, atraindo sua atenção para lá.
– Com certeza. Eles são, tipo, um fenômeno da música brasileira. — Um sorriso pequeno se esboçou nos seus lábios e manteve as íris nas minhas por um instante, antes de estalar os dedos no ar e continuar: — Preciso comer alguma coisa. Você tá com fome? Meu irmão fez uns brownies ontem. Ainda não experimentei, mas devem estar bons.
Em seguida, venceu a distância até mim e passou para o corredor, afastando-se na direção de onde eu presumi ser a cozinha.
Fui atrás, recostando o corpo na soleira da porta para observá-lo vasculhar os armários. Suas escápulas se contraím em meio ao trapézio das costas a cada porta que abria.
— Brownie no almoço? — Ergui a sobrancelha.
— É claro, o lado bom da vida mora nesse tipo de coisa. — afirmou, lançando-me um sorriso por sobre o ombro logo que capturou dois pratos de vidro. — Quer dizer, aqui também tem biscoito e feijão. Acho que não fica uma combinação muito boa, mas se você quiser, a gente mistura e vê no que dá. — Seu tom não carregou resquícios de brincadeira, o que me fez soltar uma risada cética.
— Você não cozinha?
— Um pouco. — Uma careta se desenhou nas suas feições. Depositou os pratos sobre a bancada e se pôs a caminhar na direção do fogão. — Quer dizer, meu irmão costuma se encarregar dessa parte. Eu só aprendi o básico pra não correr o risco de morrer de fome quando for morar sozinho. — explicou, abrindo o forno e puxando como um filho a forma quadrada de alumínio que carregava o falso bolo de chocolate. — Basicamente, minha parte é a de não deixar que a casa vire uma zona, já que normalmente fico mais tempo por aqui, quando não passo a tarde ajudando meu tio na oficina.
— Então, você é o tipo de pessoa que tocaria fogo na casa com um pano de prato... — testei, sem conter a provocação no meu timbre.
— Será que dá pra você me respeitar? — Sua entonação foi fingidamente indignada. — Aconteceu só duas vezes...
Não consegui conter o riso.
Ali, enquanto contemplava todo aquele retângulo de chocolate, meu estômago reclamou comigo, gritando o quanto estava faminto. Se esse cara não matou a gente até agora, acho que não mata mais, foi o que o infeliz disse. Na minha cabeça, obviamente.
Certo, eu tinha 96,74% de certeza que Jader não queria me matar, e as incríveis estatísticas que tirava de lugar nenhum costumavam ser confiáveis.
O que poderia acontecer de pior em aceitar doce de um parcial estranho, além de ir parar no hospital por causa de uma infecção intestinal ou envenenamento e sofrer uma possível morte dolorosa enquanto me contorço de dor e peço clemência divina?
— Passa esse negócio pra cá.
Saudações, terráqueos!
E aí, curtiram o capítulo bônus?
O que estão achando da Carmelita e do Jader? E da história, no geral?
Teriam aceitado o brownie também?
Acham que o Jader é confiável?
Contem aqui, quero saber tudo, hahaha.
Tenham uma ótima noite! Beijos de nuvem pra vcs <3
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