29: Sobre Você e Outras Coisas Infinitas
A velha lanchonete de esquina, conhecida pela sua higiene um tanto precária, estava estranhamente legal naquela noite.
Talvez fosse pelo fato de só ter dois pares de tênis tocando o chão meio sujo de ketchup, pertencentes a mim e à Jader. Ou, talvez, da suave luz amarelada que se desmanchava por entre os seus cachos, bem como nas íris de caramelo que se fixaram em mim assim que sentamos no banco acolchoado encostado na parede.
Nela, havia uma janela de vidro, cuja superfície mostrava as promoções do dia riscadas em tinta preta de piloto e, também, permitia-nos ver a pouca movimentação da rua que exibia o derramar dos feixes cor de óleo dos postes por trás da sua camada translúcida, debaixo do céu cujas estrelas dançavam aos milhões com suas explosões internas semelhante às que expandiam suas bordas fumegantes pelo meu interior.
- Como foi o encontro? - indagou o ruivo, esticando a mão para capturar um dos guardanapos dentro do recipiente no centro da mesa.
Suspirei, enquanto afundava o cotovelo no tampo plástico, encaixando a bochecha sobre os nós dos dedos logo depois.
- Honestamente, foi uma porcaria. Detesto a dinâmica dos encontros. É sempre uma coisa tipo "Qual é a sua cor favorita?", ou "O que você planeja para o futuro?", ou "O que mais gosta de comer?". - Tédio enfeitou as palavras. - Sei lá, às vezes as coisas parecem tão forçadas com algumas pessoas.
- Meio antinatural. - ele concordou, a atenção oscilando entre meu rosto e o papel que dobrava. - Tipo, sei lá, às vezes parece que você tá tendo que escavar concreto com uma pá de brinquedo.
- Exatamente. Acho que, sei lá, quando é assim, talvez não seja pra acontecer. Quer dizer, quando parece que tudo é tão forçado, e as ideias sobre o que importa não batem, entende?
Suas íris faiscaram na minha direção.
- E o que importa, cactozinho?
Comprimi os lábios, ponderando.
- A importância que se dá pra arte, o jeito com que se fala da vida, a forma como vê a vida, o modo como pensa sobre as coisas, sem perceber só a função mecânica que elas têm, mas... além, entende?
- É tipo a beleza que as coisas possuem, por mais simples que sejam. - completou, um sorriso pequeno lhe riscando os lábios.
- Isso.
Ele soprou um riso e, pouco depois, finalizou sua dobradura. Minha atenção se desviou para seus dedos, a tempo de vê-lo estender a pequena tulipa para mim, suas orbes varrendo meu rosto como se buscasse ler o que poderia estar se passando pela minha cabeça.
- Eu sei que não é tipo um buquê, mas eu... poderia fazer dessas a noite toda, se você quisesse um.
Tomei a flor contra minhas digitais, escorregando o polegar pelo seu caule ligeiramente áspero conforme sentia um sorriso se esboçar nas minhas feições.
- Nada de flores de verdade?
- Elas morrem muito rápido, aí passam uma ideia de efemeridade que eu... meio que não quero. - Torceu o nariz em uma pequena careta, suas sardas se repuxando com o movimento. - Mas essas duram tempo pra cacete. E são, sei lá, mais originais e menos piegas.
Dei risada, refugiando a dobradura no bolso lateral da calça.
- Obrigada. Eu... achei bem legal. - confessei, escorregando a palma para base dos fios na minha nuca. - Ainda tenho a primeira, aliás. Sabe, do dia que eu levei banho de milk-shake.
Seus cílios se apertaram em surpresa.
- Você achou?
Sacudi os ombros.
- É. Tá na minha caixinha de joias. Essa também vai pra lá, mas se você continuar fazendo dessas pra mim, vou ter que arrumar um lugar só pra elas.
Ele sorriu, deixando que um pequeno silêncio se estendesse sobre nós por alguns segundos.
- Eu vi uma lagarta listrada hoje, no jardim. - contou, resvalando os dedos por entre as mechas do cabelo. - Ela era meio azul, tipo aquela de Alice no País das Maravilhas, e eu vi que você tem muita foto de bicho na parede do quarto. Daí, pensei que talvez fosse gostar de tirar foto dela e quase sequestrei pra colocar em um pote e te dar. Mas lembrei que você não estava querendo me ver e desisti da ideia.
Dei risada, genuinamente deslumbrada por ter reparado naquele detalhe sobre o que eu fotografava.
- Jader, eu nunca disse que não queria te ver, só disse que seria melhor se fosse assim. - esclareci, recebendo seu repuxar singelo de lábios logo depois. - E eu nunca vi uma lagarta azul. Se você chegasse com uma pra mim, eu garanto que seria o melhor presente da minha vida e com certeza não ia reclamar.
- A gente pode procurar, depois. Talvez ela ainda esteja lá, se não tiver fugido ou virado borboleta. - sugeriu. - Podem ter mais dela, também, mas realmente espero que não. É o tipo de praga que ninguém quer ter. Aliás, ninguém quer ter praga nenhuma no jardim, eu acho. - completou, com um pequeno riso que prenunciou meu.
- Ótima ideia.
Pedimos as batatas fritas pouco depois e, durante os minutos que se seguiram, demos voltas incontáveis em torno do universo com nossas conversas sobre tudo.
Enquanto nossos sapatos escorregavam lado a lado pela calçada, após irmos embora, e a risada de Jader sobre alguma coisa que eu tinha dito ondulava meus ouvidos, tive certeza de que aquele momento iria importar mesmo quando tivesse quarenta anos.
Talvez, até o fim de tudo.
O percurso até o prédio foi rápido, em meio às casas e estabelecimentos iluminados que corriam por trás da janela do carro e uma música meio chiada que reverberava do rádio, embalada pelo cantarolar baixo do ruivo.
Assim que o veículo parou ao lado da calçada, eu saí e fechei a porta. Pude escutar a do motorista batendo contra o trinco quando Jader repetiu o meu ato.
- Carmelita, eu... tenho que te falar uma coisa. - As palavras soaram receosas, conforme ele girava a lataria do Uno até estacionar na minha frente.
Ergui o queixo, mirando os olhos que reluziam sob o breu parcial que nos abraçava.
- O que é?
- Eu... acho que não deveria continuar saindo com o Toni. Quer dizer, não tô querendo me meter na sua vida, você pode fazer o que quiser com ela, mas é que eu acho que o Antônio é um cara foda, só que ele não faz o seu tipo, e acho que não vai ser feliz se continuar insistindo nisso, por qualquer motivo que seja.
Meu coração começou a entrar em descompasso, suas batistas frenéticas ribombando contra meu esterno e espargindo um amontoado de centelhas em todas as direções.
- Então, quem faz meu tipo? - sussurrei, devagar. - Você?
Ele comprimiu os lábios com força, suas íris se convertendo em dois poços castanhos de pensamentos indecifráveis que pareciam guerrear entre si, queimando meus poros sem que ao menos precisasse me tocar.
- É. - confirmou, com simplicidade. - Eu... acho que talvez a gente seja o tipo um do outro.
A resposta fez o meu coração palpitar ainda mais, em batidas desenfreadas que espalharam todo um caleidoscópio de emoções flamejantes por minhas células.
- Não vou mais sair com o Toni, porque... acho que nunca senti essa coisa que tô sentindo agora só com a porcaria da sua presença, Jader. - Fiz uma pausa, desviando o olhar do seu por um instante. - É... confuso, estranho, diferente de tudo. Eu não sei explicar, só sei que me deixa com medo. Muito medo.
- Eu tô apavorado, cactozinho. - A confissão me fez voltar a encará-lo. - Meu coração tá batendo tão forte que eu tô com medo dele parar de repente. - Soprou uma risada nervosa. - Mas... não é ruim.
Sua mão alcançou a lateral do meu pescoço em um toque feito de eletricidade, o indicador roçando no ponto sensível atrás da minha orelha. Seu polegar escorregou pelo meu maxilar em uma carícia suave, conforme matava ainda mais o espaço que separava nossos corpos, e as palavras ficaram presas na minha garganta por um segundo.
- Jader... - entoei, sem saber exatamente se soou como advertência ou uma súplica para que me beijasse até a morte.
Aparentemente, a segunda opção, porque no instante seguinte seus lábios estavam contra os meus, sugando qualquer resquício de resistência que pudesse existir no meu corpo, cuja reação automática foi esticar os pés e mergulhar os dedos nos seus cachos, assim que nossas línguas se encontraram em uma dança explosiva que libertou fagulhas incandescentes em todas as direções, feitas de cores que sequer existiam.
Suas mãos alcançaram minha cintura e os dedos pressionaram a pele sob a camiseta, puxando-me para ele até que meus seios se apertassem contra seu tórax, que ardia feito brasa, irradiando um calor que flutuava em cada partícula de oxigênio e tornava o ar cada vez mais denso.
De súbito, ele se afastou suavemente, um emaranhado de sensações quase palpável crepitando no castanho dos olhos. Seu peito subindo em descendo em descompasso imitava o meu, enquanto eu tentava desesperadamente puxar ar, na iminência de uma morte por falta dele no meu corpo.
Seu polegar alcançou minha bochecha, trilhando a pele até chegar ao queixo, onde se uniu ao indicador em uma carícia suave que trouxe uma onda de torpor às minhas células.
- E quanto à Mari? - Minhas palavras se dissolveram contra sua boca.
Um suspiro lhe escapou.
- No início, eu queria sair com ela. Mas... conforme fui passando tempo com você, eu fui... gostando cada vez mais de estar na sua companhia. E fui percebendo que não fazia mais sentido sair com outra pessoa. - Seu tom se reduziu a um murmúrio. - Eu já não queria esse encontro antes da gente se beijar, e... assim que aconteceu, tive certeza que não ia conseguir simplesmente fingir que não tinha me importado e avançar em outra pessoa.
Suas palavras causam um avalanche de sensações no meu interior, mesclando-se em uma combinação explosiva de receio, angústia e... felicidade?
Felicidade. Ela, que entrou em combate direto com o medo assim que a detectei, pulsando em minhas veias como um vírus para o qual eu não tinha mais defesas.
- E como a Mari ficou, quando... conversou com ela sobre isso? - questionei, baixo.
- Ela me falou que também não achava certo o encontro, porque tinha certeza que você estava gostando de mim, mesmo que não admitisse.
Assenti, devagar, mantendo-me em silêncio para sorver cada detalhe do que me falara.
Então, a consciência de algo que estava implícito em tudo aquilo me atingiu, fazendo-me apertar os cílios com a linha de raciocínio.
- Espera. Se você já não queria sair com a Mari há um tempo, começou a usar essa coisa do encontro como uma... desculpa para ficar me vendo, e inventando coisas para fazer comigo?
Ele levou uma mão à nuca, o nariz se torcendo em uma careta que denunciava o seu embaraço.
- Meio que... sim. Me desculpa por isso. - Genuíno pesar banhou as sílabas. - Eu... pensava que não podia falar para você como estava me sentindo, e também sabia que não deveria estar sentindo coisas por você no meio de tudo isso, mas ao mesmo tempo, eu só queria estar perto. Porque a sua companhia se tornou a minha favorita, cactozinho. E eu... tô ciente que não é perfeita. Eu também tô longe de ser. Mas... a gente pode ser imperfeito junto, se você quiser.
As palavras fizeram uma torrente de sensações se desmanchar no meu organismo, impelindo-me a engolir o seco com a atenção fixa no garoto à minha frente, que me encarava com uma intensidade quase palpável.
Não poderia culpá-lo por não ter me contado sobre como se sentia antes, porque, se ele tivesse o feito antes de tudo o que descobrira sobre mim mesma e meus sentimentos nos últimos dias, eu provavelmente o afastaria, como havia feito com a maior parte dos outros.
Porém, isso não parecia mais ser uma opção na minha cabeça. Ali, observando-o debaixo da luz sutil que um poste próximo diluía sobre nós, percebi que, por mais que não possuísse muitas certezas acerca de quem eu era no mundo ou de como a vida funcionava, tinha convicção de que estava disposta a ir até as estrelas com Jader.
Porque, apesar do espaço possuir as suas partes escuras, cometas e objetos não identificados, as luzes faziam tudo valer à pena.
- Eu entendo caso você não queira me desculpar, entendo mesmo, entendo também caso esteja me achando um idiota, porque eu sei que fui, não deveria ter te dado as costas quando a gente discutiu, eu deveria ter falado como estava me sentindo, ter contado a verdade e... - Suas palavras cessaram assim que meus dedos agarraram a gola da sua camisa, puxando-o para mim até que as sílabas se dissolvessem contra a minha boca no enlace dos nossos lábios.
Suas palmas viajaram até a minha cintura e seu quadril se chocou contra o meu, empurrando-me levemente na lataria do carro, enquanto uma torrente de volúpia inundava minhas células em meio aos volteios que as nossas línguas imprimiam uma na outra.
Quando o contato se findou, um sorriso de sol riscou suas bochechas, instigando-me a fazer o mesmo. Escorreguei a mão pela sua nuca, imprimindo minhas digitais nos cachos incendiários dentro do seu toque, ainda firme em volta do meu corpo.
- Tenho medo disso, Jader. Dessa... coisa de ficar junto. - admiti, o desconforto diante da vulnerabilidade contida na fala pulsando no meu sangue. - Quero tentar, com você. Mas... tenho medo de te machucar. Machucar nós dois.
- Isso ainda não é um pedindo em namoro, Carmelita. - As palavras foram descontraídas. - Só quero que pare de tentar me afastar. E o resto, a gente vai descobrindo como faz junto.
- Só... isso? - Cerrei as sobrancelhas.
Um pequeno sorriso se formou em seus lábios, e o universo inteiro que se revolvia em seu olhar despejou toda a sua infinitude abismal em mim, mergulhando-me no cosmos em que me pus a pairar feito uma astronauta, bebendo planetas e engolindo estrelas que desciam com seu brilho imitigável pela minha garganta.
- Só isso. - afirmou, baixinho, o nariz roçando no meu em um toque suave, que me fez fechar os olhos para sorver a textura macia e o calor da sua respiração ondulando meu rosto.
A ternura em seu tom aqueceu meu peito como um manto em dia de inverno, e a sensação me fez soltar um riso breve, enquanto tentava conter o calor que subia às minhas bochechas.
- Tudo bem. - As palavras escaparam dos meus lábios, fluidas e simples, carregando toda a miscelânea de sentimentos que transbordava do meu peito; maiores do que eu, do que o mundo, do que todas as coisas.
Saudações, terráqueos!
Mais um dos meus capítulos favoritos, hahaha.
E aí, o que acharam?
Surtaram?
Acham que as coisas vão dar certo daqui pra frente?
Espero que tenham gostado! Beijos de nuvem pra vcs <3
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