1: Pinguins e Cabelo de Salsicha
Existem poucos fatos incontestáveis no mundo.
Um deles, facilmente comprovado por qualquer ser humano possuidor de massa encefálica, é sobre o quanto os acontecimentos que ocorrem nas nossas vidas estão interligados, fazendo da existência uma combinação de circunstâncias estranhas que, na maioria dos casos, sequer eram para acontecer.
O meu nascimento - e o de quase todas as pessoas do globo - são exemplos disso.
Se Gertrudes, minha amada mãe, não fosse tão desastrada ao ponto de cair por cima do meu pai em 1999, no meio do show de uma banda decadente em uma cidadezinha que ela sequer lembra o nome, é provável que nunca tivessem conversado e, muito menos, se apaixonado.
Mas aconteceu; de repente, inesperado e um tanto quanto bêbado. E, de um cruzar completamente aleatório de destinos, nasceu o bebê com a maior cara de pudim que se poderia existir.
Ou, se preferir, apenas eu.
Eu vim ao mundo no meio do apagão que atingiu a minha cidade em 29 de fevereiro de 2000, quando um pombo com tendência irrefutável à cegueira crônica esbarrou na rede elétrica e conseguiu causar uma pane no sistema de abastecimento.
Foi no mesmo dia, também, que a senhora Medeiros da rua de baixo expulsou seu infiel primeiro marido de casa com um cabo de vassoura nas costelas dele.
Não acho que esses fatos estão interligados, mas, ainda assim, acontecerem simultaneamente foi muito esquisito.
Confesso que passei boa parte da minha infância acreditando fielmente que eu ia envelhecer diferente das outras pessoas por ter nascido em ano bissexto. Foi surpreendente descobrir que não se dá para enganar o relógio da vida, e que eu chegaria no estado de uva passa de saquinho com a mesma idade da maior parte do mundo.
Você deve estar se perguntando o motivo de começar toda essa joça falando sobre coisas que estão conectadas, mas eu garanto que tem sentido.
Por exemplo, se eu não aceitasse o convite da minha melhor amiga para passar a tarde interminável de uma sexta aparentemente aleatória na praça da cidade, apenas para que ficasse babando em cima do canavial de pintos em cima de skates que sempre estavam por lá, é provável que não tivesse me metido em toda a maré de acontecimentos estranhos que me engolfou pouco depois.
Quer dizer, é difícil acreditar que não. Mas eu tenho o direito de tentar criar um clima de suspense em cima disso tudo.
Deixe-me contextualizar para você. Cris era minha melhor amiga há uns bons cinco anos, desde o dia em que entrara no colégio e eu, que já sentira na pele o horror de ser novata, tentei me aproximar do meu jeito torto e, curiosamente, deu certo.
Ela tinha uma paixão irreprimível por todos os tons de rosa do mundo e eu poderia jurar que o seu guarda roupas era 87,69% composto por peças tingidas dessa cor. Era, assim como eu, considerada estranha pela maioria, o que só piorou quando tingiu o cabelo de uma tonalidade vibrante da sua já mencionada cor favorita, que contrastava bem com a pele retinta da garota.
Formávamos uma dupla um tanto improvável para quem olhasse de longe - e, de perto, também -, mas eu gostava de pensar que nossa amizade fazia sentido.
Dentro de uma saia jeans e a blusa rosa amarrada na lateral do corpo, Cris tinha os lábios comprimidos e as sobrancelhas estreitas em concentração, sentada ao meu lado no terceiro e último degrau da pequena arquibancada que circundava as rampas.
As nuvens pairavam em espirais desbotadas no céu cintilante, e o sol perpassava por entre suas fendas pálidas, derramando tentáculos de luz oleosa sobre o mundo com um fervor descomedido. Se o astro-rei fosse meu amigo, eu com certeza o ofereceria um picolé gigante feito de meteoros congelados, para, quem sabe, amenizar um pouquinho sua temperatura. Mas, como ele não passava de uma orbe flamejante a mais anos-luz de distância do que conseguia mensurar, precisava me contentar apenas em xingá-lo mentalmente.
Alguma música com o potencial nato de explodir tímpanos reverberava do único lado do fone encaixado no meu ouvido, que se ligava ao celular que eu teimava em esconder entre as pernas por baixo da minha camisa-vestido de alguma banda qualquer, como se fosse alguma espécie de pinguim humanoide protegendo seu humilde ovo do frio e das intempéries do mundo.
Eu observava, à beira de morrer de tédio, a movimentação dos skatistas subindo e descendo nas rampas alguns metros à frente, enquanto me entupia de salgadinho de bacon, desejando secretamente afundar no concreto embaixo de mim.
Meu irmão estava no meio daquele furdunço, conversando com Daniel e Donato, os irmãos que tinham o título de seus melhores amigos há alguns anos.
Eles eram o tipo de gêmeos que você identifica quem é quem de forma imediata. Don, por exemplo, sempre estava de preto, mesclando-se às sombras que escorregavam pelas ruas à noite sob letreiros de gás néon, com os fios escuros do cabelo picotados em um corte militar e a fumaça costumeira de um cigarro se dissolvendo em formas abstratas por entre seus dedos.
Dan era o completo oposto; vivia com sua coleção de camisas florais que sempre casavam com as bermudas coloridas, uma pochete estilo anos noventa em volta do quadril e um sorriso torto nas suas feições que julgava ser galanteador, mas, na verdade, o fazia parecer uma capivara com derrame.
Não que eu já tenha visto uma capivara nessas condições.
De qualquer forma, ambos eram como uma pintura de acordes em tons quentes e frios que reverberavam por uma tela, em uma antítese gritante, mas que se complementava.
- Olha, ali! - Cris apontou, de súbito, para um garoto no topo da rampa mais alta, posicionando-se sobre o skate para descer.
O cara tinha os bíceps quase da largura de uma rua, trajava uma regata desbotada e calça jeans e tinha as íris escuras fixas no chão cimentado à sua frente, sem parecer notar a enxurrada de garotas em seu entorno que nadavam nas poças da própria saliva observando cada movimento que ele fazia.
O cabelo de chocolate voava em todas as direções em uma revolta de fios, com algumas mechas grudadas na testa devido ao suor.
- O que tem? - questionei, desviando o olhar para Cris enquanto enfiava mais um punhado do câncer frito na boca.
- Como assim "O que tem"? - praticamente berrou, indignação refugiando-se sob as palavras. - Antônio é, tipo, o maior gato da escola!
Observei-o mais uma vez, apertando os cílios em uma tentativa de enxergar onde raios ela estava vendo toda aquela beleza extraordinária em um cara salpicado de suor.
- É, é bonitinho, sim. - confirmei, após um tempo.
Cris suspirou ao meu lado.
- Ah, Carmelita, você não entende muito de caras.
Dei de ombros, aceitando com casualidade a verdade escondida nas suas palavras.
Quando mergulhei os dedos no saco novamente e encontrei somente o fundo plástico vazio, salpicado com alguns resquícios de sal e corante, reprimi um gemido de frustração.
Estava tão gostoso.
- Vou comprar um cachorro quente. - avisei à minha amiga, que mal ouviu por estar focada demais no cara que se afogava em seus próprios fluidos.
Sextas-feiras eram os dias mais alegres da semana. Por isso, eu me dava o direito de comer uma dose extra de porcaria, que vinha acompanhada de prováveis porções de hipertensão e, certamente, o risco iminente de diabetes.
Escondi o celular entre o jeans da bermuda e meu quadril e caminhei para longe dali, movida pela imagem de um belo cachorro-quente com recheio transbordante.
O sol ia desfalecendo na linha do horizonte, levando toda a sua luz para o ocaso desconhecido de astros mortos. Os ruídos de vozes, rodinhas e protestos despretensiosos de bichos de estimação se mesclavam numa cacofonia de sons que o Épica em meu ouvido não conseguia abafar.
Permiti-me vagar nas palavras soltas que flutuavam pela minha cabeça feito um amontoado de planetas não nomeados fora das suas órbitas, enquanto mirava um amontoado de flores que irrompia da grama próxima ao meus pés. Até que as minhas divagações foram brutalmente interrompidas por um impacto molhado que quase me levou ao chão.
Assim que mirei minha blusa, vi a mancha de molho rubro que enfeitava seu cinza.
Meu sangue começou a fervilhar, explodindo a sensação inflamável de raiva pelas veias e, gradativamente, senti-me entrar em ebulição.
Fechei os punhos com força assim que mirei as íris castanhas do sujeito que me atingiu, refreando o impulso de agarrar o cachorro-quente mordido na sua mão e esfregar aquela joça na cara dele.
O infeliz interrompeu sua mastigação por um instante, as orbes arregaladas em meio ao rosto salpicado de sardas. Suas bochechas se inundaram de um vermelho ainda mais forte que molho de tomate e muito semelhante à cor do seu cabelo, que faiscava notas de brasa sob o alvorecer caótico em que estávamos imersos.
- Ai, cacete, desculpa! - ele pediu, depois de engolir.
- Estava com a cara virada pra lua, idiota? - Chateação escorreu do meu tom.
Ele cerrou as sobrancelhas e seus lábios se partiram em um gesto estarrecido, como se não acreditasse que realmente tinha ouvido aquilo.
- Não era eu que estava viajando na maionese enquanto andava! - pontuou.
- Se não estivesse, não teria esbarrado em mim e manchado minha camiseta! - Cessei meu aborrecimento verbal para puxar o ar, na esperança de que ele viesse acrescido de algum tipo de paciência em aerossol. - Eu deveria pegar essa salsicha e enfiar todinha no seu...
- Já entendi! - ele interrompeu a frase, com os olhos tão arregalados que pareciam prestes a saltar das órbitas. - Olha, me desculpa por ter te sujado, eu já tô indo e vou fazer de tudo pra nunca mais encostar em você. - As palavras foram vomitadas com urgência.
Rolei os olhos enquanto o observava se afastar, levando para longe todo o seu colorido nem um pouco sutil, marcado na combinação de calça azul com blusa listrada verde berrante e púrpura que, aliadas a um par de tênis bicolores, faziam-no parecer um arco-íris andante. Ou a personificação do conceito de iridescência.
O sujeito era tão discreto quanto um elefante no meio de uma sala de estar.
Tentei regular meu fluxo respiratório, na esperança de não entrar em um colapso nervoso. E, depois de me esfriar por completo, pus-me a esperar meu lanche em frente à barraquinha de cachorro quente. Ali, lembrei-me que já tinha visto aquele ruivo algumas vezes zanzando pelos corredores da escola.
Não me recordava do seu nome, mas lembrava muito bem das coisas que falavam sobre ele e da sua fama de esquisito, que, observando-o mais de perto, fazia total sentido.
Após limpar minha blusa com alguns guardanapos e pagar o lanche, fui na direção de Cris, sem conseguir conter o ímpeto que meus olhos tiveram de mirar o garoto das cores imerso numa conversa casual com Antônio, em meio a gargalhadas e toques de mão.
De longe, eles eram um contraste gritante e impossível de não notar.
Estalei a língua, decidindo parar de bisbilhotar a vida alheia. Segui meu caminho e me acomodei ao lado da minha amiga, passando o olho no relógio de pulso para confirmar que, em pouco tempo, teria que estar em casa.
Fiquei alguns minutos viajando nos preparativos para o final de semana, que envolviam reassistir uma cacetada de filmes do Adam Sandler e, quem sabe, ter uma overdose de alguma comida estranha e certamente radioativa que estava pensando em inventar, sem ter a menor ideia de que aquele dia fora apenas o prelúdio de toda a desordem em que eu mergulharia em breve.
Saudações, terráqueos!
E aí, o que acharam desse primeiro capítulo? Teorias do que está por vim? Hahaha.
O que acharam dos personagens? Já conseguiram gostar de algum?
Espero que sim.
Muita água ainda vai rolar por aqui, rapaz. Espero vocês na próxima semana!
Beijos de nuvem <3
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