Capítulo 1
Tudo contribui para que aquela não seja uma subida fácil: a escuridão da noite encobre as pedras sujas de barro que rolam sob a fina sola da sandália feminina, a lua não mostra o seu brilho, os buracos da antiga rua de terra tentam torcer o ligamento do tornozelo magro... Ela merece. Todos carregam sentimentos bons e maus, e a mulher tem uma tendência a privilegiar os ruins.
— Vai ficar tudo bem. — Imaculada escuta a voz imaginária sussurrar próximo ao ouvido. — Eles irão cuidar de você.
A garota inventa a história de uma mulher que subiu a colina como um animal soturno, que se aproveita da ausência de iluminação da rua para se esconder entre as sombras das árvores. Com um bebê nos braços, ela não quer ser vista. O estúpido recém nascido nem mesmo tem o instinto de chorar.
Chore — Imaculada pensa. — Chore seu imbecil.
Inconformado com o destino, o bebê se contorce nos trapos imundos, a mulher não se deu ao trabalho de conseguir panos limpos. Ele não gosta da pressão dos braços rígidos, braços que o aprisionam; do movimento rápido; do barulho das pedras. O pequeno idiota não tem a menor experiência de vida, mas sente que o maior dos acontecimentos está prestes a começar.
— Vai ficar tudo bem. — Imaculada escuta a voz imaginária sussurrar próximo ao ouvido. — Eles irão cuidar de você.
Porque a mulher sussurraria isso, se no topo da colina está a casa que um rico fazendeiro doou ao município? Ela conhece a casa ou não estaria ali.
— Vai ficar tudo bem. — Imaculada escuta a voz imaginária sussurrar próximo ao ouvido. — Eles irão cuidar de você.
O mais provável é que a mulher não disse nada, nem um psiu para o estúpido bebê calado. Os pés apressados querem chegar logo a unidade de acolhimento, abrigo, lar: a casa-grande que, em outro tempos, abrigou a família de um barão do café e sua centena de escravos, e que agora recebe o rejeito da cidade de interior que repousa aos pés da colina.
De cabelo escuro e ressecado; — ela imagina — narinas largas que se expandem na face; pele negra, talvez alguns chamem de parda, mas não branca; a mulher é mais uma descendente de escravos que não teve oportunidade em uma sociedade de brancos.
A mulher é Imaculada.
A mulher é mais uma sem condições de criar um bebê. É a amante de alguém poderoso que ameaçou matar a criança. A mulher nem negra é. Ela não quer ser mãe. A mulher é um homem. O homem é o avô. O avô encontrou o recém nascido em uma lixeira qualquer...
A garota inventa a história de uma mulher que subiu a colina, porque, no fim das contas, ninguém sabe o que aconteceu.
Sabe que foi durante a noite.
Pela manhã, Cecília, uma das educadoras, encontrou o bebê na porta do lar. Enrolado em trapos imundo, ele não chorou. Enfrentou a noite fria, a fome, o corpo magro e sujo com a própria fezes, e o idiotinha não chorou.
É manhã quando Maria Imaculada, Bubu, vê a cabeça de Agatha despontar na porta de um dos quartos da antiga casa.
— Pode vir comigo? — A mulher jamais desceu até o subsolo, e a atitude inesperada confunde a outra. A garota segue Agatha até o escritório, e reconhece a apreensão na face tratada a creme antirrugas; o corpo esguio alimentado com salada, implora por uma batata frita.
Não que sirvam batata frita no lar.
— Veja bem. Essa situação não está sendo fácil pra nós. — A assistente social se acomoda atrás da mesa de mogno. O tampo opaco já quase não exibe os veios da madeira, negligenciada como quase todos os móveis da casa, a mesa é tão rejeitada quanto os seus inquilinos.
— Que situação? — Maria aceita o convite para se sentar.
— Da sua estadia conosco. O governo não acolhe qualquer criança no lar, existem condições específicas.
— Que são?
— Quase todas que você preenche.
Maria não entende o que Agatha quer.
Ela pensa que a mesa precisa de uma lixa fina, horas de trabalho, deslizar para frente e para trás ao longo da madeira. É preciso seguir os veios, a garota leu em algum lugar. Precisa repetir o processo até eliminar todas as imperfeições, então se aplica duas camadas de verniz, talvez três, e um bom móvel é recuperado.
A mesa antiga esconde histórias e Maria tenta ouvir uma voz sussurrada do passado: um barão; uma sinhá; a sentença de morte de um escravo indisciplinado. A casa maldita não tem um fantasma, os únicos amaldiçoados são as crianças.
— Você já vive há muitos anos conosco, Bubu.
— Minha família não apareceu.
— Isso não quer dizer que o governo abrigará você pra sempre.
A face tratada a creme antirrugas se contrai: tudo o que conhece sobre os escravos, ela leu em um livro de história; o que entende por solidão, é uma ou duas noites que passou só; o que sabe sobre indiferença, é como soletrar a palavra. A assistente social não é rica e desconhece a verdadeira pobreza, os pais bancaram os estudos, roupas, maquiagem e todas as festas que ela quis frequentar. Casada com um homem bonito e bem sucedido que ela pensa combinar com a própria aparência, a mulher esconde até mesmo da melhor amiga, a mãe, que no ano passado fez a laqueadura em uma clínica de princípio duvidoso.
O motivo: medo de perder o marido.
Agatha faz parte de um grupo de mulheres que teme pelo fim do casamento, e acreditam que o sucesso da relação está por inteiro nas mãos da mulher. Barriga flácida e seios caídos, é dar motivo para ser traída.
— Em alguns dias você fará dezoito anos. — Os cotovelos da assistente social sobem até a mesa, os dedos se entrelaçam em súplica. — Depois disso você poderá permanecer no lar por um curto tempo.
— E então?
— Estou tentando conseguir uma vaga em uma república para você.
— E então?
— O que quer dizer com então?
Eles não entendem.
Não podem entender.
Maria não tem uma cidade natal, uma porta para bater, um destino, um passado, um motivo para morrer de saudade ou matar por ódio.
Ela não tem nada.
— O governo concluí que com dezoito anos você já tem condições de se cuidar.
— Eu não estou melhor do que estava ontem.
— Olha, não se preocupe com isso. — Agatha puxa a gaveta à direita, bate uma agenda aberta sobre a mesa e apanha uma caneta. — Nós vamos encontrar um lugar pra você. — A folha branca não tem risco de tinta sobre as pautas, não conta uma história, não marca eventos. A agenda aberta é um ponto focal para a covardia.
— Por que me contou isso? — Maria estuda a postura da mulher.
— Se tiver alguma ideia... traga ela até mim.
O olhar de Agatha é incapaz de se fixar na garota à sua frente, ela não encara a face insensível que Maria construiu meticulosamente ao longo de anos, em sua memória ela ainda escuta os risos do tolo bebê, ela precisa ajudar ele por mais alguns dias.
A caneta escapa da mão trêmula, e rola sobre a madeira: não há barreira que impeça a queda rápida, retilínea. O corpo transparente revela o sangue nobre em seu interior, azul, sangue que não jorra em vão.
A caneta mergulha.
Da mesa, não da colina.
Ela mergulha porque tem a certeza de que sobreviverá.
Ninguém quer morrer, mesmo os suicidas.
— Eu me comportei. — Maria não espera resposta.
— Sou prova disso, Bubu.
— E ainda assim não pôde me dar uma chance.
A mesa sussurra a história de um bebê embosteado. Um bebê que como todos os outros, cresceu. Se o pequeno idiota tivesse chorado, a garota teria ao menos uma pessoa a quem culpar.
Maria se levanta. O pé pousa sobre a caneta.
— Você sabe como as pessoas criam um cachorro e, quando se cansam dele, jogam o bicho na rua? — A sola dura do chinelo vagabundo, uma doação do governo, faz o poliestireno ranger.
— O que está fazendo?
— Você acha que é justo o cachorro dormir na chuva e revirar o lixo atrás de comida? — O corpo translúcido estala, e Maria sente no pé os trincos se multiplicar.
— Por que está falando de cachorro? — Agatha se encolhe com o baixo estouro. A mulher não se levanta, não se retira da mesa, e a garota estuda o tubo azul; o nobre sangue azul sempre protegido e que permanece intacto sob o plástico que resiste.
— Por que levam a droga do cachorro pra casa, se não querem ele lá? — O calcanhar ossudo sobe e arremessa sua fúria contra a caneta, aquela que acaba de assinar a sua sentença. Uma sentença metafórica e não menos real, que a morte dos escravos, que um dia dormiram no mesmo quarto que Maria.
— É uma questão de leis, Bubu. Nós estamos fazendo tudo o que podemos...
— Um cachorro inocente. Logo vai acabar morto em uma rua qualquer.
A sola dura sobe e desce, e Maria pensa que para algo serve a esmola que o governo envia para o lar: chinelo vagabundo que não oferece o mínimo conforto — os rejeitados não merecem conforto — ao menos não permitem que os pedaços pontiagudos atinjam a pele ressecada de seu pé.
— Nós vamos te ajudar! — O grito não para as investidas.
— Não sabiam que a droga do cachorro ia crescer? — Maria gosta do som dos estalos, das vibrações que antecedem o quebrar, dos pedaços e restos que sujam o chão, do medo nítido na voz de Agatha. Ela sente o prazer dominar o seu corpo, sentimento que a garota abandonada até então desconhecia. — Ele pode ser grande, mas não vai conseguir comida sozinho e um teto pra morar. Esperaram ele crescer pra que assistisse a própria morte?
— Não é minha culpa. São as leis!
O jato de tinta respinga no calcanhar, Maria observa o azul tingir o chão de madeira, uma mancha que não poderá ser apagada. Sangue azul também jorra — ela pensa.
A cabeça da garota se move lenta, ela se debruça sobre a mesa até que esteja próxima do rosto assustado da assistente social.
— O problema de mexer com bicho... — Às mãos da mulher tremem abaixo dela. — é que ele pode te atacar.
Maria um dia foi um bebê embosteado.
Um bebê crescido já é não indefeso.
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