Capítulo III - Aos pesares da alma
— Já tamo quase lá.
A voz de Sol corta o vento, que estava uivando sozinho por horas. A garota demora para processar, soltando um "hã?" quase inaudível antes de responder. Ela volta a pensar e olha para os arredores, buscando algo diferente, mas é o mesmo de sempre.
Neve, gelo e a sensação de estar sendo observada.
Calíope não estava contando, mas se surpreenderia se soubesse quantas vezes fez isso nas últimas horas. E todas as vezes sentia dor de cabeça pelas memórias que ameaçavam inundar sua mente.
— Falta pouquinho.
— Para...?
A princesa questiona genuinamente, sem lembrar do que estava fazendo. Sol abaixa a cabeça e murmura algumas frases, mas decide ir direto ao ponto com seu tom de sempre, mesmo estando preocupada.
— Pra nóis chegar, uai.
— Ah. — o tom desinteressado da princesa causava desconforto na mulher, que estava acostumada com seu lado tagarela. — Entendo.
Sol era uma mulher alegre. Ela se via desse jeito e muitos outros concordariam. Ainda assim ela não falava muito. Não era por uma questão de timidez, ela só preferia se manter em silêncio caso não tivesse nada para falar. E isso nunca foi um problema, na verdade Sol preferia ser assim, ela odiava preencher silêncio desnecessariamente.
E, por alguma razão, aquele momento estava deixando ela desconfortável. A mesma mulher que viveu toda a sua vida com essa atitude de falar pouco estava com vontade de falar muito. Ela queria ouvir a princesa falando pelos ombros e soltando perguntas estranhas em momentos igualmente estranhos. Era divertido de uma forma única, e até ela estava se sentindo induzida a fazer mais brincadeiras.
Afinal, não era sempre que Sol estava acompanhada.
— Inclusive, desculpe viu.
Sol fala a primeira coisa que vem a sua mente, com uma esperança grande de que dê certo.
— Por que?
— Destruir a cidade, derrubar as coisas, sei lá. — ela justifica seu pedido de desculpas e dá de ombros, sendo recebida com silêncio. — Eu sei que tu ia querer ver mais depois da gente dar cabo daqueles diabos.
Enquanto termina a sua frase, Sol sente a garota tremendo e balançando a cabeça por um instante. Assim que se vira para trás, ela vê a princesa encolhida e com as duas mãos no rosto, gemendo de dor. Ver ela dessa forma era terrível, pois ela sabia exatamente o que estava passando na cabeça dela.
Nesse momento, Sol — que estava se sentindo uma idiota — lembrou do estado de Calíope quando as duas se encontraram no fim da batalha.
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O punho de Sol encontrava mais uma vez o rosto da comandante, dessa vez com impacto o suficiente para arremessá-la para longe. A luta havia acabado, tinha sido fácil demais. A mulher se aproxima da soldado lentamente, vendo as tentativas desesperadas de sobreviver.
— Sua m-maluca... desgraçada...
— Cês tão tratando a menina como se fosse um pedaço de carne e eu que sou maluca?
A comandante estende seu braço o máximo possível para alcançar a sua arma, mas tem a sua mão pisada por Sol, que estala a língua e aponta as extremidades do seu dedo do meio e indicador para a mulher no chão.
— O plano é bom... o Raum tá fazendo certo. — seu tom muda para um de desespero, suplicando para tentar mudar a mente da pessoa que tem sua vida nas mãos. — Qual foi Si-
Antes que ela possa terminar a frase, Sol dispara o projétil, executando ela na hora. Suspirando fundo, ela para por alguns segundos para resfriar seu corpo. Nesse meio tempo, ela estala os dedos e convoca todas as chamas espalhadas pela cidade para si, formando uma capa de fogo que a segue enquanto volta a se mover.
Com tudo resolvido, a única coisa que faltava era voltar até a princesa. E é nesse momento que ela sente algo de errado. As chamas que ela havia dado como último caso estavam ativas, e isso significava perigo iminente.
Sol não sabia como, mas era bem possível que tenham achado a garota enquanto estava fora. Ela sabia da possibilidade, porém não estava tratando como algo certo. Usando o fogo como impulso, Sol corre na direção que sabe onde Calíope está, chegando em alguns instantes. Assim que tem ela em seu campo de vista, ela vê outra pessoa jogada no chão com ela.
E essa outra pessoa estava morta.
A mulher desacelera quando já estava próxima, mas ainda não conseguia ver o rosto da garota. Enquanto se aproximava, ela ouviu um som estranho vindo da princesa, que ouve os passos de Sol, virando-se para trás.
O rosto que a mulher viu nesse momento foi um de puro terror. Sua boca aberta e trêmula prometia palavras que nunca eram terminadas, seus olhos marejados não sabiam para onde olhar, e sua expressão inteira gritava em medo. Calíope, ainda confusa, olha para as suas duas mãos e vê que seus dedos de fogo haviam desaparecido completamente.
— Princesa?
— Eu... — Calíope gagueja enquanto sua respiração acelera mais e mais, ficando inquieta. Ela se levanta e vai até Sol, que segura a garota pelos ombros. — Não é minha culpa, eu juro! Foi ele quem atacou primeiro, por favor, você tem que acreditar em mim. Eu não queri- eu...
— Princesa.
— Foi tudo tão rápido, ele tentou me matar, ele me pegou pelo pescoço. Eu tentei correr, eu juro, eu não... — Calíope começa a chorar descontroladamente, fazendo com que Sol a puxe para um abraço apertado, segurando ela com os dois braços. — Eu... matei... ele...
— Princesa! — Sol interrompe ela enquanto segura a garota e passa a mão lentamente pelas costas dela, fazendo carinho. — Tá tudo bem, eu tô aqui agora. Vai ficar tudo bem, gatinha.
— Me perdoa...
— Tu não fez nada de errado.
Eu fui irresponsável.
Se ela só tivesse deixado algumas armadilhas, qualquer coisa. Se ela não se deixasse levar toda vez que vê a oportunidade de lutar. Os "se" eram infinitos naquele momento, mesmo não importando no fim das contas.
— Eu matei ele. Eu matei ele, Sol, eu atirei nele...
— Tá tudo bem, tu fez o que tinha que fazer.
É culpa minha.
Sol gostaria de dizer isso, mas as palavras não saem.
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— No caminho vai ter umas paradas legais pra ver também, tá? — Sol promete enquanto dá um sorriso para tentar acalmar a princesa, que tenta se impedir de pensar. — A melhor que tu vai ver por aqui, papo sério.
— O... o que?
Calíope parece conseguir voltar a se concentrar no que estava ouvindo, mas não a tempo de entender o que foi dito.
— Deixa lá...
— N-não, por favor, repita.
— Eu só falei que tinha umas coisas legais pra tu ver, já que tu tá indo atrás dessas coisas antigas. — a mulher repete e é respondida pelo silêncio da garota, que parece não se animar muito com a proposta. — É uma estátua.
— Temos tempo para esse tipo de coisa?
— É caminho.
— Mesmo assim, creio que seja melhor só... seguir em frente.
Mesmo que distrair Calíope seja a melhor opção para Sol, aos poucos ela vai aceitando que não é o que ela queria, ou ao menos conseguia. A garota estava completamente imersa em seus pensamentos, quaisquer que sejam eles. Não é como se Sol não tivesse muita coisa para pensar também, havia a questão de Raum.
Deixando de lado a péssima escolha de nome falso — uma tradição na família — ela não conseguia ignorar as ações dele. Esse pequeno exército estava crescendo, provavelmente o suficiente para ser considerado um exército rebelde. E o império atual era conhecido por sua força bélica esmagadora. Na cabeça dela era tão simples quanto dois mais dois: Raum e seus subordinados iam encontrar um trágico fim nessa briga.
Além do plano dele não resultar em nada além de morte, a princesa não merecia isso. Ela não era um dos pilares do império. No máximo era uma garota inocente por ir a um planeta desses apenas por estudos, mas algo não encaixava para Sol. Raum era inegavelmente forte, também aparentemente sendo um comandante decente, mas ele não era um profeta. Era impossível saber que Calíope iria para Xey, a menos que ele tivesse sido informado disso.
E se fosse realmente isso, a princesa tinha problemas maiores.
Por conta disso, Sol sabia que tinha que acompanhar o ritmo da situação. Ela não estava fazendo um trabalho tão bom em manter Calíope sã e salva, principalmente na parte de sã. Ela tinha tomado essa responsabilidade para si, e sabia exatamente o quanto o coração da garota estava confuso nesse momento. Matar pela primeira vez nunca é fácil, ainda mais quando podia ser evitado.
E ela precisava começar a evitar isso se quisesse nunca mais ver a expressão de horror que a princesa havia feito.
Com a dupla imersa em pensamentos, elas mal conseguiram notar quando seus arredores começaram a mudar. Talvez já estivesse assim faz muito tempo, ou talvez fosse uma mudança recente. O horizonte continuava impossível de ver, o céu ainda estava cinza e carregado, mas o chão estava diferente. Calíope foi a primeira a observar: o cenário ainda estava preenchido pela morte branca que era a neve, mas por baixo daquela camada tênue tinha uma superfície transparente.
Sempre que o cavalo dava um passo, o chão ficava mais fácil de ver. E com a dádiva da visão, alguns pontos negativos acompanhavam. Um formato familiar se repetia por toda a extensão do caminho em que estavam, e parecia não acabar mais. Ela não havia visto muitos desses ao longo de sua vida, mas não precisava.
Eram corpos.
Corpos decompostos ao ponto em que eram apenas ossos. O esqueleto de diversos outros viajantes que ainda tinham suas roupas até no momento de sua morte. Todos os corpos estavam encostados no outro lado do que Calíope havia reconhecido como gelo. Uma camada grossa de puro gelo.
Instintivamente, ela buscou se afastar daquilo, mas se desequilibrou em cima do cavalo. Sua perna tinha perdido o apoio na lateral do animal flamejante, fazendo com que ela não conseguisse se segurar por cima. Antes que pudesse tocar no chão, no entanto, sentiu uma mão segurar a sua.
— Cuidado, rapaz. — a mulher fala com uma entonação séria, puxando Calíope de volta para o animal e dando tempo para a garota se ajeitar. Percebendo a expressão confusa da princesa, ela começa a falar. — Esse fim de mundo é o tal do mar de gelo, o povo costuma evitar.
— C-com razão! Por que há tantos corpos aqui?
— Gente que quebra o gelo e cai na água, é morte na certa. — sua explicação faz com que o silêncio tome conta por uns instantes, e quando a mulher se vira ela vê Calíope ficando pálida e boquiaberta. — Uai, fica de boa! A gente não vai cair não, o cavalo aqui num faz peso.
— Você tem certeza?
— Tenho. Eu passo aqui sempre, num se preocupa não, tem que praticamente fazer de propósito pra quebrar um gelo grosso desses.
— E... e se quebrar?
— Num vai quebrar.
— Apenas hipoteticamente falando. — a princesa insiste em seu questionamento, fazendo Sol sentir que a confiança de Calíope nela talvez não esteja tão firme. — Tudo pode acontecer, né...?
— Tá. — Sol mais uma vez se vira, se sentando de frente para Calíope e colocando uma mão em cada lado do rosto dela, fazendo com que o olhar das duas se conecte. — Se tu cair na água, eu evaporo ela inteirinha e tu vai sair como se nada tivesse acontecido, tendeu?
Calíope acena com a cabeça em resposta, tendo seus movimentos limitados pelas mãos de Sol. A garota se sentia estranha, sua família nunca foi de mostrar afeto, muito menos por toque, e Sol já havia segurado ela assim algumas vezes nesse meio tempo, e estranhamente ela não era contra isso. Pelo contrário, era algo novo e ela estava gostando. Ainda assim, ela não consegue evitar de olhar de relance os corpos submersos, e a mulher nota isso.
— Não olha pra isso não, olha pra mim, ok? Só olha pra mim, já tamo chegando. — Calíope, que ainda está processando a situação, começa a tentar encarar os olhos de Sol, mas se torna uma tarefa mais difícil do que havia imaginado. Era um olhar gentil e ao mesmo tempo penetrante, seus olhos dourados pareciam brilhar como duas estrelas, e mesmo assim ela não se sentia intimidada, só acolhida. — Até a gente chegar, finge que só tem eu e tu nesse mundinho.
Só elas duas nesse mundo.
Perdida nos olhos da mulher a sua frente, Calíope começou a entreter aquela ideia. Seria mais como um passeio, uma excursão pelos pontos turísticos. Se tudo tivesse sido assim desde o início, aquele seria o melhor lugar no universo para a garota, mas essa não era a realidade que ela vivia. O mundo de Sol e Calíope não existia, mas ela queria muito que existisse.
Existiam, entretanto, planícies vazias e preenchidas com a ausência da vida. Uma corrente constante de vento que já gritava em seu ouvido por tanto tempo que ela demoraria a se acostumar com o verdadeiro silêncio, e até assim não sabia se conseguiria se sentir em paz. Os gritos e uivos do vento às vezes carregavam palavras indecifráveis que a princesa sabia serem só ilusões, construções de uma mente aterrorizada. As ilusões, no entanto, eram reais o suficiente para essa consciência ser posta em dúvida.
As vezes ela se sentia observada, como se algo estivesse à espreita logo depois de onde seus olhos não conseguiam mais alcançar. E mesmo isso não tendo sido um problema até então, ela havia finalmente confirmado que aquele frio seria bem pior caso Sol não estivesse alí. Assim que ela disparou e seus dedos flamejantes sumiram, ela finalmente sentiu o seu calor indo embora. Não foi muito tempo, somente o bastante para ela aceitar que se estivesse sozinha, já estaria morta.
E enquanto aqueles olhos dourados paravam de estar sobrepostos com os olhos raivosos do homem que matou, Calíope sentiu uma vontade de chorar que beirava o incontrolável. Vendo os olhos marejados da garota, Sol instintivamente sorriu em uma tentativa de confortá-la, e alí a princesa ficou: sendo segurada por Sol e segurando o choro o máximo possível, sem muito sucesso.
Cali sentiu calor, afeto, segurança, seu rosto nas mãos dela era a única coisa que importava. O coração dela tremia com a vontade de falar algo que nem ela mesma saberia explicar.
— Tá tudo tão... ruim...
— Eu sei flor, mas eu tô aqui pra te ajudar, relaxa. — Sol usa os dedões para fazer um carinho na face da princesa, que seca as lágrimas e tenta se acalmar. — Daqui a pouquinho tu vai voltar pra casa e descansar.
— Não sei se quero... retornar para casa...
— E pra onde tu quer ir?
— Não... não tenho ideia. Eu não tenho ideia de para onde devo ir.
Enquanto Calíope via conforto nos olhos de Sol, a mulher via confusão nos olhos da garota.
Antes que pudesse prosseguir com a conversa, Sol viu Calíope olhar para algo atrás dela, e a mulher se virou, vendo o seu objetivo. Uma cratera gigantesca, com suas dimensões na casa dos quilômetros. Além de largo, parecia ser fundo, visto que nenhuma das duas conseguia ver o final daquilo. Embora a tempestade constante prejudique a visão, ainda era possível observar quatro estruturas, uma em cada lado daquele círculo imperfeito. Torres metálicas e desgastadas saiam de dentro das profundezas e se erguiam como gigantes, tendo em volta de cinquenta metros de altura apenas na parte visível.
A torre mais próxima estava bem populada, mas Sol não parecia recuar. Calíope por sua vez estava ansiosa, imaginando a possibilidade de serem inimigos. Após poucos minutos, a dupla já estava perto o suficiente para descerem do cavalo e seguir o resto do caminho andando. Enquanto ainda tinham tempo, no entanto, Sol parou a princesa.
— Ó, se liga, esse povo é de boa, mas a gente não é boba nem nada. — a mulher absorve as chamas do cavalo enquanto começa a instruir Calíope. — Tu vai fazer o seguinte. Fecha o casaco e bota isso aqui.
Enquanto a princesa obedecia sem questionar, Sol começou a tirar o manto que cobria seu braço, seu pescoço e ombros. Ela então se aproximou da garota e começou a colocar a peça de roupa nela, levantando o capuz que até então não via uso. Aproveitando o momento, Sol bagunçou o cabelo de Calíope com a mão, fazendo com que a garota soltasse um grunhido e afastasse a cabeça.
— Isso é um disfarce?
— Depois a gente troca de roupa, isso aí é pra improvisar. — Sol fala enquanto sinaliza para a garota segui-la. As duas caminham em direção à torre por pouco tempo até as pessoas ali apontarem suas armas. Quando Sol levanta as mãos para mostrar que não oferece perigo, Calíope faz o mesmo. Imediatamente, um portão começa a fazer sons de motor e lentamente é aberto. Nesse momento, uma mulher armada sai e faz um sinal para que os soldados abaixem suas armas. — Opa.
Descendo uma rampa estava uma pessoa que Sol reconhecia como a comandante da guarda da cidade que estavam tentando adentrar. Ela tinha um cabelo loiro longo preso em um coque, uma pele branca pálida e usava — como em todas as outras vezes — um uniforme militar preto pesado, com colete e equipamentos de proteção avançados. Seu rosto estava sempre com marcas de expressão e olheiras, e Sol percebeu que agora estava pior.
— Seu timing é impressionante.
— Bom te ver também.
A soldado para de se mover e olha a dupla dos pés à cabeça, eventualmente soltando a sua arma e deixando ela pendurada pela faixa. Ela abre um sorriso propositalmente falso e acena com a cabeça.
— Eu posso dizer o mesmo?
— Claro que pode.
— Não tenho tanta certeza. — a comandante se aproxima da dupla, que agora já estava com as mãos abaixadas, e vai em direção a Calíope, cruzando os braços quando chega perto. — E quem que é você?
— E-eu sou Dafne. — a garota mente instintivamente, olhando de relance para Sol, que aparentava estar surpresa. — Me acidentei não muito longe daqui e Sol graciosamente me ajudou.
— Sol?
A comandante e Calíope olharam para Sol ao mesmo tempo, que por sua vez alternava seu olhar entre as duas. Ambas pareciam confusas, mas por motivos bem diferentes. Chegando a uma conclusão, a líder respira fundo e coloca a mão no rosto.
— Você veio causar confusão.
— Não, pô, tu me conhece.
— Conheço o suficiente para saber que você veio causar confusão.
— Olha só... — ela começa a elevar o tom de voz, mas decide que aquilo não vale o seu tempo. — Só não... só se controla, por tudo que é mais sagrado. Ninguém tá com tempo pros teus surtos de adrenalina aqui, embora tenha gente lá que tá merecendo.
— Raum?
Sol fala enquanto faz sinais de aspas com os dedos.
— Raum.
— Vixe...
Já sem paciência, a comandante se vira de costas e a dupla a segue. Aproveitando que ela não estava vendo, Calíope olha para Sol com uma expressão de indignação e sussurra "Sol?". Em resposta, a mais alta usa seu dedo para indicar que elas conversariam sobre isso depois.
— Então é por isso... que se você for fazer o que você faz, é melhor fazer lá na saída do Salvador.
— Entendi o recado.
O trio entra na torre e alguns soldados parecem se assustar quando reconhecem Sol, dando um passo para trás ou só ficando boquiabertos. Calíope, por sua vez, puxou o capuz ainda mais para baixo, escondendo sua cara de uma forma exagerada. Seguindo até a área do elevador, Calíope e Sol vão até o meio da plataforma, enquanto a comandante fica para trás ao lado de um painel.
— Se liga no que você faz com minha cidade hein, "Sol".
A loira pressiona um botão com força e acena um tchau com a mão. Enquanto as duas retribuem o adeus, sons mecânicos ficam cada vez mais altos, até a plataforma começar a se mover para baixo. A viagem inteira até a parte de baixo parecia ser protegida por paredes, mas essas eram cheias de buracos hexagonais, dando vista para a cidade. Com a vista menos prejudicada, Calíope pôde ver a arquitetura única do lugar.
A cidade inteira parecia ter sido construída em um sistema imenso de cavernas, com estruturas dentro das paredes em sua maior parte. Mesmo assim, o lado de fora era imensamente populado por casas, muitas vezes umas em cima das outras. Algumas pontes de madeira ligavam um lado da caverna para outro, e as ruas principais ficavam a alguns metros do chão por conta do nível da água. Na distância e se destacando, Calíope vê uma estalactite imensa, tendo algumas estruturas tanto em volta quanto dentro dela.
Esse tipo de cidade, embora incomum para a princesa por conta das particularidades de ser subterrânea, continha alguns elementos familiares para ela, que teve a oportunidade de visitar um lugar parecido uma única vez.
— Dafne.
Sol comenta em um tom sarcástico, impedindo a garota de se perder nos pensamentos. Assim que Calíope entende a intenção do comentário, ela se vira com uma sobrancelha arqueada.
— Algum problema, "Sol"?
— Oxe, nenhum, só tô pensando em voz alta.
— Pois eu tenho uma reclamação.
— E é? — Sol solta ar pelo nariz e cruza os braços, abrindo um sorriso provocante. — Diga aí.
— Não se faça de desentendida, por que a moça de antes confundiu-se ao ouvir seu nome?
— Porque ela me conhece por outro nome.
— E qual deles seria o nome real?
— Os dois. — Sol responde indiferente, confundindo a princesa, que estava esperando uma resposta mais direta. Ela se perguntou se era como antes: apenas o jeito de Sol se comunicar, mas chegou a conclusão que não era esse o caso. Os olhos da mulher pareciam sorrir junto com a sua boca, ela estava sendo intencionalmente vaga, e Calíope passa por diversas expressões faciais antes de se cansar e respirar fundo. — Sol é meu nome, mas também é o nome de dezenove outras cabeças da minha família. Aí eu vim aqui um tempo atrás com meu irmão e num tinha como dizer que os dois tinham o mesmo nome.
— Tens dezenove familiares?
— Dezenove irmãos e irmãs.
Ao ouvir isso, a expressão de Calíope se torna uma de choque, não conseguindo conceber a ideia de tantos irmãos, e ela acreditava ter muitos. E para adicionar no topo de tudo isso, o nome de todos eles era "Sol" também? Que tipo de família é essa?
— S-sério?
— Tá achando que uma estrela é pouca bosta, princesa? — Sol se aproxima da garota lentamente, ficando próxima o suficiente para fazer ela ter que olhar para cima se quisesse encontrar os olhos da mulher. — É muita coisa pra uma pessoa só, até uma que nem eu.
Piscando um único olho após esse comentário, Sol deixa Calíope desconcertada e confusa em níveis iguais. A princesa tenta afastá-la com a mão, mas é incapaz de mover a mulher um único centímetro para trás, o que incomoda ela.
— Não consigo compreendê-la. Está insinuando que você e vossa família são estrelas?
— Eu te explico esse lance depois, agora a gente tem coisa mais importante a fazer. Primeiro, a gente vai até um cantinho seguro que eu conheço e vamo dormir, tu tá só o pó.
— E-espere, é muita coisa...
— Segundo, a gente acorda e vai reto achar um maluco que me deve, ele tem uns rádios que alcançam até o outro lado do universo, e é aí que tu entra. Tu fala com o povo do teu planeta de algum jeito e é isso, esperar o resgate pacífico e sem dano colateral.
— Minha cabeça... dói... — Calíope resmunga enquanto bota as duas mãos na testa e massageia, encarando o chão. — Você fala as coisas mais confusas e passa para outros assuntos como se não fosse nada.
A mulher estala a língua e olha indignada para a princesa, que não percebe o olhar por estar tentando ignorar a situação. Assim que a plataforma chega ao seu destino, Sol segura uma das mãos de Calíope e começa a guiar a garota até seu destino. Enquanto a menor resmungava, Sol toma seu tempo para analisar quão ruim a situação estava do melhor jeito que conhecia: olhando para as pessoas.
E para isso ela precisava elevar seus sentidos ao máximo. Como de costume, o tempo ao seu redor parecia desacelerar e todos os sons pareciam deixar de existir, deixando apenas ela e Calíope naquele mundo. Caminhando pela multidão, ela começa a buscar os olhares direcionados a elas. A maioria estava surpresa em vê-la, alguns até assustados, mas não era isso que ela buscava, portanto, eles deixavam de existir também.
Poucos instantes depois ela finalmente encontrou o que buscava: um trio em uma das pontes de madeira logo acima delas. Eles inicialmente olham com uma expressão séria, mas quando o do meio cochicha algo, os dois ao seu lado se separam e vai um em cada direção. Isso se repetiria mais algumas vezes durante a caminhada da dupla, muitas delas sendo até no meio da multidão, pessoas paradas fingindo naturalidade, mas olhando de relance para Sol.
Isso faz com que ela fique inquieta. Se ela tomasse seu tempo, um disparo rápido em cada um acabaria com eles em questão de segundos, e talvez, mas só talvez, ela deixasse um vivo para saber onde Raum estava se escondendo. Então por que ela não deveria?
A mulher para de andar e levanta seu braço esquerdo, invocando as chamas no dedo indicador e do meio, apontando para um homem que estava se aproximando pela multidão. Seu sentido aguçado já estava deixando claro onde os outros estavam posicionados, apenas um disparo e...
— Sol.
A sua razão para não atirar fala, e a mulher se assusta. Sua audição seletiva havia deixado Calíope passar, e isso foi o suficiente para tirar ela do estado de fluxo em que se encontrava. Virando para trás, ela vê que a princesa parecia hesitante.
— Você está bem?
— Tô uai, por que? Pareço tar mal?
Calíope olha para os olhos de Sol e vê que eles estavam brilhando muito mais forte que o normal, até mesmo sua esclera estava escurecida, se aproximando da cor preta. Por conta disso, sua expressão estava intimidadora, mesmo ela tendo o meio-sorriso de sempre no rosto. Porém, a princesa só estava vendo isso agora, já que o que entregou que algo estava acontecendo foi a temperatura da mão da mulher, que estava subindo exponencialmente.
— Você está estranha. Seu olho parece... diferente.
— Diferente co- — Sol começa a questionar, mas percebe exatamente o que está acontecendo, e aquilo não era bom. Ela ia perder o controle novamente. — Ah. Só fica perto, tô sentindo cheiro de merda no ar.
O resto da andada foi relativamente mais calmo, qualquer pessoa estranha que se aproximava fugia assim que via o olhar de Sol, e a quantidade de suspeitos diminuía aos montes. Quando Calíope já estava distraída novamente, a mulher puxa ela para um beco repentinamente, assustando a garota.
— Chegamos.
Assim que Sol diz isso, ela estala os dedos e usa o indicador e o dedo do meio para "puxar" uma parede de fogo atrás delas, cobrindo completamente a visão de qualquer um. Assim que ela faz isso, ela tira um tijolo de uma das paredes e tira uma chave de dentro. Ela caminha até o fim do beco e enfia a chave em uma fresta aparentemente inocente, girando-a e resultando em um clique.
Devolvendo a chave e o tijolo ao lugar, Sol retorna até a tranca e empurra a parede, abrindo-a como se fosse uma porta. Calíope a segue inexpressiva, sentindo a fatiga alcançá-la. Assim que a dupla passa pela parede falsa, Sol a fecha e limpa as suas mãos, virando-se apenas para ver o rosto confuso de Calíope.
— Qual foi?
Na perspectiva da princesa, ela estava prestes a passar por algo muito bem escondido, um túnel talvez. Em realidade, assim que passou pela porta ela se deparou com um hall relativamente bem cuidado, com um homem de meia idade apoiado em uma bancada e com um sorriso gentil.
— Olá! — ele acena para a dupla e elas acenam de volta antes dele prosseguir. — Minha cliente favorita! Com uma amiga, inclusive!
— Fala Milo, tudo na paz? Essa daqui é a Dafne. — Sol introduz a sua parceira. — Dafne, Milo, Milo, Dafne.
Ambos respondem com "Prazer." quase que ao mesmo tempo, fazendo com que Sol perceba a semelhança dos dois em relação ao jeito estranho de falar. Indo direto ao ponto, ela se aproxima do balcão e apoia os dois braços.
— Então, a gente tá com um cansaço que só, o 46 tá prontinho?
— Está do jeito que a senhora deixou, gostaria de outro colchão?
— Não, que nada, um só tá bom, valeu amigão. — Sol agradece enquanto o homem entrega uma chave para ela. — Amanhã a gente vaza, é só pra passar a noite.
Sol e Calíope se retiram, indo até o segundo andar e chegando até o final do corredor, onde o quarto 20 pula para 46 repentinamente. A princesa nota a discrepância, mas só atribui a uma das individualidades da sua companheira. Nesse momento ela estava preocupada com a informação que foi passada agora a pouco.
— Sol... — Calíope começa a indagar a mulher, extremamente acanhada e corada. Quando a outra parece dar atenção quando é chamada, ela coloca para fora o que estava pensando. — P-p-por que uma única cama?
— Num queria dar trabalho pro bichinho, por que? Não quer dormir comigo não?
Cobrindo um pouco do rosto, Calíope mal percebe quando fica corada.
— N-não é isso! Eu... eu...
Sol ri, mas eventualmente decide dar uma trégua para a garota. Ela estava visivelmente cansada e provocar ela dessa forma não traria bem nenhum, então elas apenas entram no cômodo. Calíope toma aquele momento para se familiarizar com o ambiente: uma cama de solteiro encostada no canto do quarto e uma mesa pequena com uma gaveta logo ao lado. Em cima da mesa havia um pote de flores simples, mas a flor era desconhecida para a princesa.
Ela possuía um caule grosso e robusto de cor verde, mas a flor em si era amarela nas extremidades e escura no centro. Além disso, havia um guarda roupas e uma porta no quarto, completando a parte das mobílias. Na questão da aparência, era um lugar simples, feito de madeira e muito bem cuidado. A madeira no chão e no teto era mais clara, enquanto que a da parede era escura.
— Óia quem tá aqui. — Sol comenta enquanto se aproxima da flor, que se move quando a mulher se aproxima. Ela levanta um único dedo e fica movendo-o de forma circular. O que é curioso para Calíope, no entanto, é que a planta parece seguir os movimentos fielmente. — Sentiu saudades?
— Que... fascinante. — a princesa se aproxima mais, tentando imitar os movimentos de Sol, mas sem os mesmos resultados. — Como se chama?
— Lillia, uma querida.
— Digo o espécime.
— Ah, é Girassol. É uma raridade hoje em dia, acho que essa é a única que restou. — a mulher deixa de brincar com a planta, que volta a sua posição original: encolhida e olhando para baixo. — Muuuuito tempo atrás, diziam as más línguas que era uma mulher tão apaixonada por uma estrela, que ela encarava a estrela o dia todo e chorava a noite toda, até virar planta.
— Então você é mesmo... uma estrela? Já que a planta está seguindo você.
— Em todo sentido da palavra. — Sol responde e cruza os braços, olhando para a princesa esperando alguma coisa, mas a garota não soube dizer o que. Depois de um tempo, a mulher desistiu de esperar e abriu a boca. — Tá, vou te dar esse gostinho já que tu tá insistindo, senta aí que eu vou te contar uma história bem real.
Vendo a alegria contagiante de Sol e sentindo a sua própria animação voltando depois de muito tempo, Calíope se senta na cama enquanto tira as botas e cruza as pernas, olhando com brilho para a mulher, que sorri.
— Escuta bem. Como tu deve saber, o universo existe faz muito muito muito tempo. E ele vai continuar existindo por mais uma cacetada de tempo, então nós não vamo' tar aqui pra ver o fim disso. Pouquinho depois da primeira explosão, teve um monte mais, e daí vieram as estrelas.
— Eu conheço a história de origem do universo!
— Calma aí, fia, eu tô criando um clima. — Sol limpa a garganta e se apoia na parede, acenando para ela se acalmar. — Então, em uma galáxia muito longe dessa daqui, num sistema planetário que nem existe mais, tinha no meio uma grande estrela amarela e longe dali um pequeno planeta verde e azul. Bem, no tempo que eu tô falando ele não era verde e azul, não tinha muita coisa, até ter. De lá saiu vida, a primeira que existia. E a estrela sentiu a origem daquela vida.
— Sentiu?
— É, sentir é uma palavra forte, estrelas não tão vivas né. É mais que os raios tocaram coisa se mexendo e que não devia tar lá. Enfim, foi passando um bom tempo e essa vida foi tomando forma, alguns foram saindo da água e outros ficaram. Alguns eram gigantescos e outros eram tão pequenos que a estrela não conseguia nem sentir com seus raios. E tanto tempo passou que às vezes as coisas só... explodiam e deixavam de existir. Às vezes literalmente.
Sol se move e abre o guarda roupas, aparentemente se lembrando de algo importante. Vasculhando o móvel por alguns instantes, ela tira peças de roupa e uma toalha, arremessando-as para Calíope, que se surpreende e segura tudo em seu colo, agitada para a continuação daquilo. Ela precisava saber se Sol estava falando a verdade ou mentindo, mas o grande sorriso da mulher já dava uma dica.
— Ó, as coisas só mudaram quando apareceu um animalzinho bem estranho, peludo e com cara de doido. Esse daí começou a criar coisas, se juntar e fazer algumas coisas que a vida não fazia antes. E a estrela começou a mudar, foi a primeira coisa que ela sentiu de verdade: curiosidade. Os raios estavam ficando lentamente mais fortes e esses animaizinhos começaram a mudar também, uns deixaram de ter tantos pelos e outros começaram a cobrir seus corpos. E com isso a curiosidade da estrela foi só aumentando, mas curiosidade demais matou o gato.
— E-eu não entendo, a estrela estava sentindo emoções?
— Ainda não. Isso foi um tempinho depois, quando a estrela viu arte, felicidade, tristeza, várias vidas e várias mortes. A estrela viu que era o animal mais doido que existia ali: ele criava as coisas e as destruía ao mesmo tempo, passavam as suas vidinhas curtas se preocupando com coisas além de sobreviver, e aquilo era único. Quando menos esperava, veio o primeiro pensamento da estrela, a vontade de viver. Aquela foi uma das maiores mudanças, com pensamentos vieram sentimentos, e com sentimentos veio o afeto com aquelas criaturas naquele planetinha.
Sol vai até a porta que estava fechada e a abre, dando uma boa olhada antes de confirmar que estava tudo certo. Nesse momento Calíope pôde ver de relance o que estava ali dentro: um banheiro. Apenas isso. A mulher volta e se aproxima da garota, ela parecia estar eufórica, incapaz de ficar parada
— E com o afeto veio a vontade de ser igual, de viver daquela forma, de trocar sentimentos como eles trocavam. E foi isso que a estrela fez: ela mostrou o que sentia. Só que as coisinhas de lá num entenderam muito bem, e faz sentido, não é sempre que tu vê uma estrela mudando de cor no meio do dia, né? Enfim, aí a estrela viu desespero geral, alguns estavam enlouquecendo, e a estrela não entendeu muito bem o motivo da loucura. Então, por uns bons anos, a estrela ficou só matutando as ideias.
Um silêncio longo preenche o cômodo, deixando a princesa nervosa.
— E...?
— E a estrela chegou numa conclusão, né. Ela percebeu que aquilo nunca tinha acontecido antes, não que ela fosse saber. Uma estrela criando vida, emoções, pensando. É coisa de doido, e olha que sou eu quem tô contando. — enquanto observa a mulher andando de um lado para o outro sem parar, Calíope mal consegue segurar um comentário como "precisamente por isso que a história é duvidosa". — E foi aí que as perguntas da estrela foram mais além, pro universo. Se ela tava confusa assim, então como ficava o universo? E é aí que as coisas mudaram um pouco. Ela chegou a conclusão que o universo era igualzinho, que tudo nele era uma forma dele experienciar ele mesmo. Toda a vida é criada pelos mesmos materiais que estrelas e todas as outras coisas, é só uma questão de como que montaram.
— O universo também está vivo?
— Não, não, num é pra tanto. Ele ainda é infinito e complexo demais, num tem como explicar com "vivo" ou "morto", ele só é. A questão é que essa estrela e tu são iguais, extensões do universo, tipo uma câmera. O universo não pensa ou sente, você e eu sim, é essa a diferença. E a gente tenta entender o universo, foi nisso que a estrela se apegou. Uma criatura feita pelo universo para tentar entender o universo, isso é incrível! Agora tenta chutar qué que a estrela fez.
— E-eu não sei? Ela virou uma pessoa?
— Mais ou menos. Ela copiou o universo, criou um montão de extensão dela, umas 20. Ela podia até pensar e sentir antes disso, mas era quase que uma imitação ruinzinha, então a melhor forma foi criar vida.
— Essa estrela... era o Sol? A estrela da primeira civilização?
— Isso! — Sol segura os ombros de Calíope e a encara diretamente nos olhos, esperando a reação da princesa com um grande sorriso brilhante. —
— I-isso é muito difícil de processar, ou até mesmo de acreditar. — Calíope descansa sua cabeça em suas mãos, pensando sobre tudo que havia acabado de ouvir. A garota se joga para trás na cama, mas rapidamente se levanta em um pulo, pensando em uma possibilidade. — Você por acaso teria as memórias do Sol? No caso, a estrela Sol, você entendeu.
Se separando de Calíope e andando até o outro lado do quarto, a mulher respira fundo e controla seus ânimos, envergonhada por ter ido além em contar essa história. Retornando para seu tom quieto de sempre, ela responde a princesa.
— Não. É só... algo que eu nasci sabendo. — evitando contato visual com Calíope, Sol ainda tem dificuldades em conter seu sorriso, ela estava visivelmente animada com aquilo, e isso faz com que a princesa sorria também, mesmo com algumas dúvidas. — Foi mal, eu me empolguei.
— Não peça desculpas! É uma história que você parece gostar muito, não tem para que se envergonhar disso. Devo dizer... eu também estou fascinada com o que disseste. Nunca pensei na vida como algo além de uma coincidência fortuita, na verdade nunca sequer pensei nos motivos para isso.
— É, eu penso muito sobre. É que eu acho tão...
Com o silêncio que veio a seguir, Calíope tenta completar a frase de Sol.
— Intrigante?
— Foda.
— Ah.
Soltando uma risadinha por conta da reação de susto da princesa, a mulher controla seus ânimos e volta para o que precisavam fazer. Sentindo o cansaço do dia, ela pede para Calíope tomar banho primeiro e a garota obedece. Assim que ela está prestes a passar pela porta do banheiro, ela pergunta.
— S-sol...
— Fala.
— Por que me contou essa história? Não teme que eu possa espalhar? — a princesa faz uma questão válida, mas a mulher não tinha uma resposta preparada para isso. — Digo, não o farei, mas não tens como saber disso.
— Eu acho que... quando eu tô contigo eu fico com vontade de falar mais. Só isso.
Corada e com os olhos mais abertos que o normal, a princesa lentamente se vira de costas e fecha a porta do banheiro, cobrindo o próprio rosto mesmo estando sozinha. Soltando sons inexplicáveis, ela olha para o espelho e se vê, ainda extremamente vermelha. Com a sua cabeça já doendo de tantas informações e coisas para pensar, ela se pega pensando nessa sensação que preenchia seu corpo agora.
Sol não havia dito nada demais, nenhuma provocação e ela estava assim. Isso indignava a garota, que não estava pronta para o que vinha a seguir.
— Princesa, sabe ligar o chuveiro ai fácil?
A voz da mulher que estava na maioria dos seus pensamentos ressoa levemente abafada, pegando a garota de surpresa.
— Sei.
— Não quer que eu entre aí pra te ajudar não?
— N-NÃO!
Rindo, Sol dá de ombros e abre a porta para sair do quarto, planejando instalar algumas medidas de segurança. Cuidadosamente ela estala os dedos duas vezes para cada corredor, cada janela e cada porta no hotel. Ao fazer isso, fios de chamas cobrem cada passagem até o quarto em que estavam, e ao modificar os fios, as chamas se tornaram invisíveis. Não satisfeita, a mulher passa quase meia hora sem perceber, apenas inspecionando todo o edifício.
Quando finalmente nota que não tem mais o que investigar, ela decide retornar até o quarto, vendo a sua companheira sentada no pé da cama, parecendo que ia cair dormindo a qualquer momento. Ela estava vestindo as roupas que Sol havia fornecido: uma camisa de manga longa e gola alta e uma calça moletom pesada, ambas as peças eram pretas. Seu cabelo escuro estava completamente solto e desembaraçado, sem nenhuma evidência das tranças de antes.
Distraída com a beleza da princesa, Sol passa alguns segundos antes de lembrar o que devia dizer.
— Aí. — ela bate duas vezes de leve na porta, assustando a princesa que estava cochilando sentada. — Deita aí, pode dormir, tamo segura.
— Promete?
Calíope pergunta sem perceber o beicinho e os olhões que estava fazendo, tornando a sua expressão em uma de fofura para Sol, que acha engraçado o quão grogue ela estava. Levantando apenas o seu dedão direito em resposta, a princesa acha que é o suficiente e se arruma na cama, mas não fecha os olhos ainda.
— Vou de banho, já volto.
Fazendo o que disse, Sol entra no banheiro e se fecha lá, entrando embaixo do chuveiro e se limpando minuciosamente, aproveitando o momento para pensar nos seus próximos passos. Era simples, mas o que havia pensado antes ainda estava preso na sua mente. A esse ponto a mulher estava convencida que alguém estava repassando as informações para os rebeldes, então o seu plano de contatar o planeta natal dela poderia falhar.
Claro, a princesa talvez tivesse outros métodos, mas até confirmar, Sol não poderia abaixar a guarda nem para os soldados da garota.
Decidindo que já estava pronta para sair, a mulher aumenta a temperatura do seu corpo a um nível absurdo, instantaneamente secando toda a água sem o uso de uma toalha. Colocando a sua nova roupa, ela se olha no espelho pela primeira vez em vários meses. Bonita como sempre. Ela pensou, vendo a sua roupa. Uma regata branca simples — que exibe seus músculos em qualquer movimento — e uma calça cargo bege, larga do jeito que ela gostava.
Não era a roupa que usaria num dia a dia normal, mas ela estava se sentindo particularmente estilosa naquele momento, então foi a escolha que tomou.
Saindo do banheiro, ela vê a princesa deitada, mas ainda de olhos abertos. Ela parecia estar brigando com o sono, cochilando e acordando no mesmo momento, até que ouve a porta se abrindo. O olhar das duas se encontra e Sol a encara questionando o porquê da garota ainda estar acordada, percebendo isso, ela responde.
— Eu estou... com medo... de sonhar...
Ela fala lentamente e quase sussurrando, como se estivesse com vergonha de admitir isso.
— Tá pensando em coisa ruim ainda?
— S-sim...
— Quer falar sobre isso? Eu tento te ajudar, sei lá.
Hesitante, a princesa puxa a coberta mais para cima, cobrindo metade do seu rosto e se deitando de lado, vendo Sol se sentando em uma cadeira ao lado da cama. Decidindo colocar o que pensa para fora, ela começa a falar o que estava afligindo seu coração.
— Eu me sinto péssima, não consigo deixar de pensar no que fiz. — ela fala rapidamente, evitando contato visual a qualquer custo. — Eu sinto que poderia ter evitado aquilo de alguma forma, ele não pre-
— Princesa. — Sol a interrompe quando percebe que ela estava começando a se agitar. — Tu não fez nada errado, é sério. Se tu tivesse hesitado, ele tinha matado você sem pensar duas vezes. E sei lá... é normal se sentir mal, é até melhor que se sinta mesmo.
— É?
— Claro, uai, matar não é coisa que se goste de fazer.
— M-mas, Sol... Eu... — mais uma vez a garota hesita, mas dessa vez por medo de como seria interpretada se continuasse aquela frase. Mesmo assim, ela diz. — Eu gostei daquilo. Eu senti como se tivesse vencido, e eu nunca tinha me sentido assim antes. É por isso que eu me sinto péssima, por ter sentido algo bom daquilo.
— Ah.
— Você acha que eu sou um monstro...?
— Não, princesa, tu não é um monstro. — Sol surpreende Calíope, que estava esperando uma resposta menos imediata. — O corpo da gente às vezes faz esse tipo de coisa, se não a gente não ia sobreviver. Vencer é bom, e tu venceu mesmo, mas assim... não. Não é pra tu fazer esse tipo de coisa.
— Você já sentiu isso?
— Se eu já senti? Ô, flor, tu não tem ideia. — a mulher abre um sorriso, confundindo a princesa. — Eu sinto isso sempre, eu também adoro vencer. No meu caso não é matar, eu odeio essa parte, mas eu gosto da briga. Eu gosto quando o corpo tá tão quente que ele entra no modo automático, só que isso é um problemão.
— E se eu acabar gostando? E possivelmente... queira fazer mais vezes?
— Eu não acho que tu vá, olha teu estado. Princesa, não é porque teu corpo te enganou uma vez que tu tem que levar assim pro coração, pode ficar tranquila. Quando não tem como evitar não tem o que fazer, mas eu duvido que tu vá atrás disso.
Aparentemente aceitando aquelas respostas até certo ponto, Calíope se ajeita novamente na cama, ficando em silêncio. Entretanto, Sol não parava de olhar para ela, vendo as expressões da garota traírem a sua confusão. A mulher sabia que isso era inevitável, palavras não mudariam isso tão rápido, mas ela estava contente por ter ajudado.
Fora isso, ela olhava para Calíope também por confusão, visto que ela estava sentindo um cheiro curioso vindo da garota: perfume. Ela estava se perguntando se ela havia trazido perfume de alguma forma ou se esse era o cheiro natural dela, e as duas possibilidades eram igualmente curiosas. Não era de forma alguma desagradável, na verdade era suave e doce, de certa forma a lembrava de flores.
Enquanto entrava em um veredito sobre esse mistério, Calíope abriu a boca mais uma vez.
— Sol...
— Oi?
— Você é mesmo uma estrela?
— Sim, princesa, eu num mentiria sobre essas coisas.
Novamente retornando ao silêncio, a dupla fica quieta por mais alguns minutos, antes de uma última interrupção vinda de Calíope, que estava lentamente ficando mais relaxada e sonolenta. Em verdade, essas perguntas não eram bem o que ela queria falar, mas ela não sabia o que queria falar. Tudo que sabia era que seu coração estava mandando ela dizer algo, só que sem explicar o que.
— Sol.
— Oi...
— Eu prefiro que você me chame de Cali.
Incapaz de segurar uma pequena risada, Sol tenta entender o motivo da garota ainda estar brigando com o sono, mas continua dando atenção para ela, afinal, ela também estava gostando das conversas. Bagunçando o cabelo dela com uma mão, ela se ajeita na cadeira e coloca os pés em cima da cama, em um espaço que a princesa estava deixando vazio.
— Beleza, Cali.
Abrindo um sorriso escondido, Calíope fecha os olhos e se acomoda na cama, preparada para dormir de vez. Vendo isso, Sol sussurrou um "boa noite" e continuou dando carinho na cabeça da garota. Sem planos de dormir, ela fecha os olhos e se concentra nas suas chamas, buscando qualquer movimento.
Mas, embora fosse uma estrela, ela não estava acima de alguns limites da vida. O seu cansaço se acomodou em seu corpo, que estava confortável até demais. Aos poucos a mão que estava acariciando Calíope foi desacelerando até parar e seu corpo foi esfriando. As pontas douradas do seu cabelo foram ficando azuladas sem que ela percebesse, seus olhos foram perdendo o brilho e se fechando.
E, com a sua mão repousando sobre a cabeça da princesa, ela dormiu.
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