10 | Gosto de Estrelas e Volúpia
I don't know what to do
(Eu não sei o que fazer)
To do with your kiss on my neck
(O que fazer com o seu beijo no meu pescoço)
...
But this feels right so stay a sec
(Mas isso parece certo, então fique um segundo)
Hostage - Billie Eilish
Talvez eu tenha demorado mais do que o normal para fechar a loja, porque meus neurônios definitivamente pareciam estar funcionando ao reverso diante do olhar inquietante de Aart.
A noite banhou nossos poros de fragmentos de estrelas e luar assim que começamos a caminhar pela calçada, em meio a um silêncio que eu sentia que precisava romper, mas não sabia como.
As luzes amareladas dos postes se derretiam por entre os cachos coloridos que modelavam as feições serenas do garoto ao meu lado, ressaltadas pelos lábios ligeiramente partidos e os olhos fixos no caminho que percorríamos com ar de devaneio, como se, assim como eu, estivesse vagando por muito outros lugares.
Enfiei as mãos nos bolsos da calça, comprimindo os lábios com força enquanto lutava para não ser engolfado pela minha maré de pensamentos.
Fala alguma coisa, seu idiota.
- Como... foi seu dia? - Deixei escapar.
Sério isso, Valentim? Teria sido melhor acertar uma pá na cabeça dele. Ou na sua própria cabeça.
As íris escuras atingiram as minhas e um sorriso se esticou nas suas bochechas, fazendo-me pensar que tinha dito a coisa certa.
Então, ele começou a falar. Narrou com uma empolgação evidente sobre ter finalmente conseguido montar seu cubo mágico, o prato novo que aprendera a cozinhar e mais uma centenas de coisas que nos fizeram dar voltas na lua sem sair da vizinhança.
Percebi, então, que Aart não comentava sobre as coisas que realizava no dia a dia exatamente para se exibir. Ele o fazia simplesmente porque gostava de falar, sobre tudo e qualquer assunto, sem medo de compartilhar o seu universo e sem ter exata noção de que nem todo mundo de fato se importaria com o que tinha a dizer.
No fundo, sabia que Lea possuía uma pontada de razão. Parte do meu suposto ódio por ele era, na verdade, inveja.
Porém, naquela noite, eu não senti a costumeira acidez que inundava meu peito sempre que falava sobre si.
Era uma sensação diferente, que não corroía, apenas embebia meu coração em um frescor de leveza e espalhava curiosidade pelas minhas células, incitando-me a perguntar cada vez mais, apenas para continuar ouvindo seu timbre recitar qualquer coisa, especialmente se dissesse respeito à ele.
Tive a impressão de que estávamos andando por rotas inventadas pela cidade, mas não poderia me importar menos.
Havia estrelas no céu e Aart ao meu lado, e isso soava estranhamente suficiente.
Fomos parar na praia depois de um recorte indefinido de tempo, os dois de pé há poucos metros das ondas que desmanchavam sua espuma na areia. A brisa marítima com notas de frescor e sal convidava nossos fios para dançar, as mechas esverdeadas do garoto se sacudindo em meio ao breu que nos envolvia.
Minha camisa esvoaçava ao vento e o frio se infiltrava na pele, envolvendo meus poros em um abraço gelado.
- Posso fazer uma pergunta? - ele indagou, de súbito.
Mirei suas íris, contemplando o brilho hipnótico que nadava por entre elas.
- Perguntar se pode fazer uma pergunta é um paradoxo incrível, Aart. Mas você pode, sim. - descontração se refugiou no meu tom.
- Por que você às vezes era tão estranho comigo? Eu... te fiz alguma coisa? Quer dizer, eu sei que teve a coisa da gangorra, e eu... peço desculpas por isso, não foi minha intenção fazer você se prejudicar, quer dizer, eu nunca fiz nada com a intenção de te prejudicar. - entoou, as palavras banhadas de uma convicção eufórica, enquanto seus ombros caíam levemente.
- Tudo bem, Aart. Acho que já está na hora de deixar isso para trás. - murmurei, expulsando o ar em um suspiro. - Eu achava que te odiava por muitas razões, mas acho que a principal é porque eu... - Levei a mão à nuca, baixando o olhar para o chão para tentar disfarçar a nuvem desbotada de constrangimento que nublava meus sentidos. - Talvez eu... goste de você. Talvez eu... sempre tenha gostado. Tipo, de um jeito meio... diferente, que eu achava que não deveria gostar, porque era... errado. Tipo, um garoto olhar para outro garoto desse jeito. E isso me deixava com medo. Mas sei que não justifica a forma como te tratei. Então... me desculpa, também.
Um instante de mudez quebrou sobre nós feito as ondas contra o litoral, sendo cortado apenas pelo chiado do mar e o eco distante dos carros chatos atravessando a rua que dava acesso ao resto do mundo, há alguns metros, com suas buzinas barulhentas.
De súbito, senti a maciez morna dos dedos de Aart escorregarem sob os meus, infiltrando-se nos espaços por entre os nós até que sua mão abraçasse a minha em um aperto firme, e voltei a fitá-lo.
- Está tudo bem. -— assegurou, baixo. — E eu... também meio que gosto de você, Valentim.
Pude ver o contorno dos seus lábios esboçarem um sorriso, que se replicou, de forma involuntária, no meu rosto, conforme apertava minha palma contra a sua em um toque que me desencadeou terremotos internos.
- Posso fazer duas perguntas? - quis saber, em um murmúrio. - Tipo, uma eu tô fazendo agora, aí vou fazer outra depois...
Soprei um riso.
- Faz.
- Por que você estava no parque, no dia da gangorra?
Eu não queria lhe dizer o motivo.
Não me agradava a ideia de admitir que eu tinha ido parar no parque infantil porque estava prestes a chorar e só queria me trancar em uma bolha, para esquecer de todos os alunos que tinham me chamado de tantas coisas relacionadas ao meu porte físico muito magro naquela manhã.
- Isso... não vem ao caso, agora.
Suas orbes reluziram em uma compreensão que não o fez insistir.
- Mas, afinal de contas, por que você enfiou uma bomba lá? - questionei, a fim de mudar o foco da conversa.
Uma risada sem muito humor lhe escapou.
- Eu só queria... fazer alguma coisa que fosse muito radical. Eu estava perturbado por tudo que estava acontecendo lá em casa, meus pais estavam em pé de guerra e eu... não sabia exatamente como lidar com tudo isso. Só tinha vontade de explodir tudo, de me explodir e... Eu tô falando demais, não é? Ah, desculpa... - pediu, de súbito, parecendo ligeiramente embaraçado. - Depois que você disse aquilo, sobre eu falar demais, percebi o quanto isso é... chato.
Meu peito se contorceu ao saber que, por causa do Valentim idiota que ocupava parte de mim, ele estava se julgando daquela forma.
Em um ímpeto, cortei o espaço entre nós com um passo, estacionando a uma distância tão curta dele que o sopro da sua respiração se derreteu contra meus lábios em uma nuvem de calor.
- Esquece o que eu disse. - Carimbei as digitais na maçã do seu rosto. - Só seja você.
Ele demorou alguns segundos para assentir, seu olhar derramando uma intensidade de oceano no meu por entre os sopros curtos que deixava escapar.
As faíscas começaram a dançar em um caleidoscópio vibrante de cores sob minha pele, assim que inclinei o rosto e deixei que meu nariz resvalasse pela linha do seu maxilar, inspirando para sorver os vislumbres do seu cheiro mesclado à maresia.
Pincelei os lábios no ponto abaixo do seu lóbulo e pude senti-lo temer suavemente sob mim, seus dedos alcançando minha nuca em um toque firme que irradiou mais fagulhas incandescentes na minha corrente sanguínea, a eletricidade me fazendo pulsar sob a calça.
Minha boca atingiu a lateral do seu pescoço e ele inclinou ligeiramente a cabeça, dando-me passagem para tatuar minha pele na sua, mas não o fiz. Afastei-me um pouco, mirando seus cílios fechados e os lábios entreabertos em uma entrega que me fez ficar ainda mais duro.
Quando ele abriu os olhos, sua boca se curvou levemente em um sorriso torto.
- Você vai me beijar, ou eu vou ter que pedir?
A pergunta foi tão inesperada que fiquei sem reação por um momento, até que Aart venceu por completo a distância entre nós e uniu os lábios nos meus, em um enlace que explodiu um milhão de centelhas ao nosso redor.
Agarrei seu quadril e, com um puxão, selei nossos corpos, deixando que minha língua deslizasse pelo seu lábio inferior até encontrar a sua, em uma dança sem compasso e qualquer noção de ritmo, mas que parecia carregar todo o sentido do mundo, porque era nossa.
Não éramos dois garotos se beijando; éramos dois seres, dois amontoados de células que nascem destinadas a morrer, e que, embora saibam que a sua existência é apenas um nanossegundo no tempo do mundo inteiro, veem sentido em compartilhá-la com outros seres, igualmente feitos de substâncias químicas, e igualmente fadados ao fim.
Depois que Aart foi embora, mais tarde naquela noite, eu ainda o sentia em mim. Havia fragmentos do seu cheiro na minha camisa, seu gosto de estrelas e volúpia líquida engarrafado na minha língua, a textura da sua pele carimbada nas minhas digitais e seu timbre impresso em algum canto do meu cérebro que eu não fazia ideia do nome.
Subi as escadas de casa com tanta pressa que quase tropecei em um dos últimos degraus, disparando pelo corredor até alcançar a maçaneta do quarto de Léa. Abri a porta com um empurrão que fez a garota saltar sobre o tapete, os fones nos ouvidos e uma camisa gigante descendo até os seus joelhos.
Seu olhar confuso queimou sobre meus poros, ficando ainda mais crepitante no momento em que me aproximei e envolvi sua cintura com os braços, agarrando-a com o máximo de força que existia dentro de mim.
- Eu te amo, filha da puta! - exclamei, eufórico.
Ela segurou meus ombros e tentou me jogar para longe, fazendo uma pressão absurda na esperança de me repelir.
- Tá me estranhando, garoto? Desencosta de mim!
Dei risada, aumentando o meu aperto sob seus grunhidos insatisfeitos.
- Obrigada pelo que você disse na loja, mais cedo. Eu não... sabia como dizer.
- De nada. Agora, pode me soltar, filhote de demônio que deu errado?
Obedeci, imprimindo distância entre nós.
- Como você sabia que eu... gosto do Aart?
Ela ergueu as sobrancelhas com ar de incredulidade, cruzando os braços em frente ao corpo.
- Te conheço desde quando nasceu, Valentim. Acha que sou lerda a ponto de não perceber a forma como você olha pra ele e o jeito que fica quando o garoto está por perto?
Fingi pensar por um instante, apertando os cílios em uma falsa expressão reflexiva que fez minha irmã estreitar os olhos na minha direção.
- Cuidado com a sua resposta. - avisou, com aquele pretenso tom de homicídio que lhe era típico.
A única coisa que pude fazer foi soltar um riso meio frouxo, debaixo das suas íris que me fitavam como quem encara um ser humano possuído por forças malignas.
Não me lembrava da última vez em que estive tão feliz.
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