Me devolve minha faca!
Eu estava segurando minha faca, entediada, cavando pedrinhas à beira do rio quando aquilo aconteceu. A primeira vez que eu o vi. Não era um dia ensolarado, e, para ser sincera, o cinza nublado combinava perfeitamente com aquela ocasião.
Estava entediada, irritada por ter que lidar com minha pequena irmã, e cansada depois de cortar toda a lenha. Vivíamos numa pequena vila, esquecida pelo reino, mas com certeza lembrada pelo lorde daquela província. Ele sempre mandava, todo terceiro dia do mês, alguns soldados pessoais dele pegar nossa comida em forma de imposto; eles tinham aquelas ombreiras de metal estranhas em forma de passarinho, e um sorriso de deboche, como se tivessem adorando levar nossos grãos. Nunca sobrava nada, e tínhamos que ser bem inteligentes e cooperativos com o resto da vila para que não morressemos de fome.
Mesmo com um povo bem intencionado, aquilo me deixava nervosa. Eles estavam sempre felizes, aparentemente. Sempre encarando aquela situação com firmeza e bom humor... Mas eu não os entendia. "O Deus da Fartura vai nos abençoar," eles diziam. Deus da Fartura isso, Deus da Fartura aquilo; eu é que estava farta disso tudo.
— Como é?! – Eu ouvi uma voz vindo da porta de casa, enquanto eu estava varrendo. Em minha casa não havia homens, minha mãe era viúva, minha irmãzinha era pequena demais, então, era facilmente invadida pelos homens do Lorde quando eles vinham pegar nossa comida.
Me aproximei, e um homem alto, muito mais alto do que eu, olhava direto para minha mãe, que parecia atordoada pelo grito do homem.
— Você vai pegar o que estamos mandando, senão... – O homem olhou para mim na hora, e eu recuei – Lorde Samson vai ter uma nova concubina para se divertir essa noite.
O homem falou isso e esperou, pois minha mãe prontamente se pôs a pegar o que ele queria. Uma porção de comida muito maior do que de costume... Esse maldito!
Respirei fundo, não podia ter um ataque de nervos ali na frente deles... O que não mudava a realidade. A condição de ter que caçar bem mais, ou pedir ajuda para as guildas de aventureiros... Segurei minhas lágrimas até os soldados irem embora, depois, abracei minha mãe e minha irmã. Eu não deixaria que elas passassem fome!
...Okay, pensei isso aquela hora, mas agora aqui, na beira desse rio, eu não sabia mais o que fazer. Enfiei a ponta da faca na terra molhada, e levantei a terra pra cima, exasperada. Nervosa só de olhar pra tudo o que eu teria que fazer pra reverter isso. Todos as horas a mais na floresta, caçando com os outros moradores me enchendo a paciência por eu ser só uma garota e blá blá blá. Já conseguia ver a raiva que passaria no futuro.
E nesse momento, lá estava ele. No fundo da minha visão, andando alegremente pela correnteza do riacho, plataformas de gelo fino apareciam a cada passo dele pelo rio, e ele assobiava, sorrindo. Isso me deixou muito irritada! Acho que pessoas felizes me irritam. Inclusive, tão irritada que não havia percebido o quão excêntrica era sua aparência.
O homem vinha devagar, vestido de uma forma que eu nunca havia visto antes. Claro que, aventureiros costumam se vestir de formas estranhas, e meu vestido com tecido grosso e quentinho estava mais do que bem, mas ele vestia uma túnica roxa, com um chapéu branco que se estendia de sua cabeça. A túnica roxa era revestida com algo que parecia muito um avental, e seus cabelos e barba eram brancos, mas ele não parecia ser velho.
Eu o olhei passar assobiando de boca aberta. Nunca havia visto magia daquela forma, tão de perto... eu estava tão surpresa, que mal percebi ele se aproximando de mim. Minha nossa, ele parecia tão jovem assim de perto, eu estava atônita.
— Olá, senhorita — O homem chegou perto, ele era alto, e hmmm... cheirava como hortelãs — Pode me emprestar essa faca?
— Ahn... claro...?
Entreguei para ele. Não faria isso em condições normais, eu prometo, mas... para ser sincera, aventureiros não costumam conversar com plebeias como eu, mesmo ele não parecendo exatamente com um aventureiro... ele era diferente. Toda a estranheza da situação me levou a isso, mas me arrependi instantes depois.
Ele pegou minha faca e atravessou o rio, a correnteza era baixa ali, mas mesmo assim ele andou por cima das águas, usando suas plataformas mágicas. O homem se embrenhou na floresta, e depois de alguns minutos, meu rosto de surpresa deu lugar a um rosto de impaciência e inconformidade.
Ele... não havia roubado minha faca, não é?
Essa dúvida pairou na minha cabeça por 10 minutos. 10 minutos! Ali, sozinha, na margem do riacho, esperando esse infeliz reaparecer com a minha faca!
— Não acredito nisso! — levantei meu vestido e passei pelo rio, o seguindo.
Eu conhecia aquele lugar bem mais do que ele, tenho certeza que eu me moveria por ali muito mais rápido. Eu acharia ele, eu acharia ele e pegaria aquela faca e ainda ia talhar aquele rosto só pra ele ver o que é bom pra tosse.
Tudo isso passou pela minha cabeça bem rápido, porque não mais do que 2 minutos dentro da floresta, percebi o homem de cabelos brancos de sorriso radiante e cheiro bom parado, de cócoras, colhendo com a minha faca raízes de uma planta venenosa que nascem nos pés de algumas árvores.
— O que está fazendo?!
— Oh, senhorita! Você demorou. — ele falou com uma voz suave e bem humorada, o que me irritou profundamente.
— O que quer dizer com isso? Fiquei te esperando, sabia? Me devolve minha faca.
— Relaxa.
Ele falou, arrancando completamente as raízes. Olhei ao redor dele e vi uma pequena vasilha com água, ela borbulhava.
O homem colocou as raízes na água fervendo.
— Você sabe que essa planta é venenosa, não sabe? — eu o avisei — O priminho da minha amiga ficou três dias de cama comendo uma folha dessa erva aí.
Ele olhou para mim e deu um sorriso... pareceu muito com o sorriso do guarda de hoje mais cedo.
— Escuta aqui! — eu gritei com ele, assustando até a mim, acho que eu estava muito nervosa — Olha, só devolve minha faca, tudo bem? — falei, depois de ter respirado fundo.
— Você é realmente preocupada com os outros ao seu redor. — ele se levantou, ficando de frente a mim. Ele era alto, mas não era forte como os guardas, contudo, sua presença ainda era imponente, como todo homem — Eu gosto disso... venha comigo.
Ele falou isso quando terminou de colher as raízes, jogou-as na vasilha que estava fervendo a água com magia e a tampou. Eu não sabia o que ele queria, estava mais parecendo que ele ia envenenar alguém... Por um momento eu pensei em pedir para que ele fizesse isso com os guardas das ombreiras de falcão, mas ele nunca aceitaria isso sem um pagamento. É assim que esses aventureiros são.
Ele se levantou com a panela em mãos, que deveria estar quente, mas ele a segurava sem problemas; e sem falar nada, ele só começou a andar. Ele era mais alto e mais forte que eu, então eu não conseguiria tirar a minha faca dele.
— Que saco, pode me devolver logo? — eu andava atrás dele o mais rápido que meu vestido permitia, mas aquele maldito tinha pernas maiores e era mais ágil, mesmo estando de túnica.
Estávamos entrando cada vez mais no coração da floresta, mas, naquele momento, eu não tinha percebido isso.
— Segura isso pra mim? — antes que eu pudesse dizer não, ele me entregou a sua panela para que eu segurasse.
Por reflexo eu segurei embaixo, quase a deixando cair, achando que iria queimar minhas mãos... mas não, ela estava fria. Conseguia sentir a água borbulhando, e o vapor quente escapando pelas frestas da tampa, mas a panela estava fria.
— Eu falei pra você relaxar, senhorita...
— Marla, meu nome é Marla — eu disse, ofegante. Não tinha reparado que eu estava andando tão rápido, mas já conseguia sentir o suor se formando em minha testa, e o clima abafado de uma tarde ensolarada — Afinal, o que você quer fazer? Por que precisa de mim? Tenho certeza que você tem uma faca muito melhor que a minha aí em algum lugar dessa sua cintura.
Ele parou, olhou para mim e olhou para minha faca.
— Eu gostei da cor dela — falou, olhando para os detalhes laranjas que eu havia desenhado nela com uma pedra, pouco tempo atrás — Não quer me deixar usar ela um pouquinho?
Eu fiquei boquiaberta. Não esperava uma resposta tão simples.
— O que diabos você veio fazer aqui então? — resolvi fazer perguntas mais simples, se esse cara era só um maluco, talvez se eu fingir que confio nele, eu pego minha faca e vou embora correndo.
— Fiquei com fome sabe — o olho dele começou a brilhar — E essa floresta está cheia de Horneiros, então... — ele falou como se parecesse óbvio, mas não era!
— Pera, tá me dizendo que quer cozinhar um? — certo, ele era maluco — Horneiros são gigantes, e têm uma boca enorme e são mais rápidos que um javali normal. Você tá maluco? — eu olhei em volta mais uma vez — Por isso eu tava achando estranho essa parte da floresta. É porque NINGUÉM vem aqui. Por causa dos Horneiros! Eu vou morrer por sua causa, sabia?! Sério mesmo, se eu morrer por sua causa, eu vou ficar muito, muito nervosa.
Não tinha condições de argumentar com um cara desses. Ele estava raspando uma árvore com a minha faca enquanto eu estava falando. Juro, segurei meus punhos pra não voar em cima dele! Nem toda beleza do mundo iria salvá-lo.
...Okay, eu falei aquilo por falar, certo? Eu não poderia bater nele nem se eu quisesse... mas não podia deixar minha faca para trás, também...
— Pela terceira vez, relaxa — ele olhou pra mim sorrindo, momentos antes de ser atropelado.
Fiquei atônita. Um Horneiro passou por cima dele como se ele fosse papel. Eu sabia que era besteira me meter ali, esse monstro era do meu tamanho, mas pelo menos uns 200 quilos. Ele tinha essa cara de porco selvagem, mas sua boca se abria como a de um jacaré, era horrível de se ver. Principalmente se você tinha experiência em caça, como eu. Eu sempre evito esse monstro, mas agora...
Reagi a ele atropelando o Aventureiro dando alguns passos pra trás e sacando minha fa— Certo, esse idiota estava com a minha faca...
— Olha, foi mal aí, mas não tem como eu te ajudar não, meu querido! — eu voltei uns 5 metros, enquanto falava isso.
Me apressei e subi numa árvore, desesperada para sair do nível do chão. Por sorte, eu já estava acostumada a isso graças à caça que eu faço semanalmente. Puxei meu vestido e pedi ajuda aos espíritos da floresta para poder subir nessa árvore.
E de repente...
— Ai, que dor de cabeça! — o homem aventureiro se levantou, e, aparentemente sem arranhão, apanhou a panela com as raízes borbulhantes que eu havia deixado cair no chão anteriormente.
O Horneiro olhava para ele como um búfalo bufante, preparando para a próxima investida. Ele abriu sua grande boca cheia de dentes enquanto o Homem esquisito pegava aquele veneno com as mãos e...
— Não faz isso! — gritei, preocupada pela primeira vez. Juro.
— Relaxa! — ele falou, um pouco alto demais... pela quarta vez.
E então, quando o Horneiro veio para cima dele, com a boca aberta, pronto para morder e arrancar aquele braço fora, o homem socou o... ele apertou todas as raízes venenosas numa mão— que antes eu não havia reparado, mas estava protegida por uma luva de couro—, e socou dentro da goela do Horneiro, que com certeza estava tão surpreso quanto eu. O monstro tremeu no punho que subitamente invadiu sua garganta, e, enquanto sua investida levantou o aventureiro do chão e o levou por alguns metros, seu braço na goela do bicho o fez parar muito mais rápido do que qualquer árvore de tronco duro.
E tudo o que eu podia pensar na hora era...
— Ele vai arrancar seu braço, seu maldito! — eu gritei, pulando da árvore imediatamente, e indo de encontro ao homem — Tira seu braço daí, caramba! Você é louco?!
Ignorei o Horneiro e agarrei na cintura do homem, o empurrando para longe do monstro, tentando o ajudar de alguma forma, mesmo que pouco, para que ele tirasse o braço da garganta do bicho. Mas, isso não foi necessário por muito tempo, o homem deu um tranco e soltou-se do Horneiro, que estava estranhamente imóvel. E ele estava rindo! Eu preocupada com esse esquisito, e ele rindo!
— Eu juro que vou te matar se você não parar de rir.
— Eu senti tanta falta disso, sabia? — ele disse, batendo a mão uma na outra, tentando se limpar, eu acho.
Eu soltei sua cintura com cheiro de hortelã, e... não, prioridades.
— Dá pra me falar por que fez aquilo? — eu olhei para ele, e logo depois de volta para o Horneiro, que não reagia, por algum motivo.
— Sabia que o estômago de animais como esses são preparados para comer quase que o dia todo? — ele tirou a luva que o protegia, e ela estava corroída e esbranquiçada, como se eu tivesse a deixado de molho no sabão por semanas sem lavar — Esse tamanho todo, e energia, precisam ser mantidos de alguma forma, então ele está sempre comendo. Plantas, carne, o que for.
— Onde quer chegar com isso?
— Significa que se algo atinge o estômago dele, é dissolvido quase que imediatamente, pra dar lugar a mais coisas pra ele comer. Entendeu...? — ele me olhando como se eu fosse burra era a pior parte disso tudo, mas... fazia sentido.
— Quer dizer então, que as raízes eram pra isso?
— Isso mesmo, Marla! — ele me olhou animado — Elas chegaram lá e foram dissolvidas pelo organismo do Horneiro. Isso deixou ele paralisado, e logo deve matar ele. Mas...
Ele sacou minha faca e perfurou o animal rapidamente, pouco abaixo da boca larga do monstro. A faca perfurou fácil, como se tivesse sido feita para isso. O sangue esguichou, como se ele tivesse matando uma galinha gigante.
— ...a gente não precisa esperar que ele morra pelo veneno. Não é?
Eu pisquei, desacreditada. Sentia como se tivesse sido feito de boba, mas ao mesmo tempo aprendido algo valioso em troca. Quem era este homem? O que mais ele sabia? Eu queria muito saber... mas também queria matar ele de pancada.
— Qual seu nome? — eu perguntei, antes de tudo.
Ele olhou para mim, enquanto captava parte do sangue de horneiro, por algum motivo.
— Eu sou um cozinheiro viajante — ele sorriu, com aquela cara de deboche, parecia ter dito algo engraçado — Meu nome é Daniel.
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