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Nely abriu os olhos e viu a claridade do dia que já despontava.
Pela primeira vez em dois anos ela não acordava aos berros e com o corpo molhado de suor.
Ela ficou ali, deitada em sua cama contemplando o teto e repetiu em voz alta aquelas palavras. Palavras ditas há muito tempo mas que ainda ecoavam em sua mente como um sino que ficava rimbombando alto:
— Amigas para sempre. Amigas até morrer.
As palavras pareciam não ter qualquer sentido agora.
Nely sentiu uma lágrima descer por seu rosto e a enxugou.
Chorar era tudo o que ela podia fazer, e remoer o passado.
Ela pensava no passado, mas pensava nele como algo que acontecera ontem.
Dois anos haviam se passado, mas as marcas profundas ainda estavam lá. As feridas, e eram muitas, ainda não haviam cicatrizado, e ela achava que jamais cicatrizariam. Certas coisas marcavam para sempre. Nely sentia-se marcada por um estigma que a acompanharia para o túmulo.
Ela se levantou suspirando e foi para o banheiro.
Abriu a torneira da pia e lavou o rosto olhando sua fisionomia no espelho, quase não se reconhecendo. Era como se estivesse olhando para uma mulher muito mais velha, e não apenas com trinta e cinco anos.
Saiu do espelho, abriu o chuveiro e tomou um banho.
O banho quente foi bom, ajudou a aliviar a tensão. O sonho que tinha acabado de ter já se dissipava em sua mente, mas não o final, a coisa na cachoeira era forte o bastante para perdurar para sempre em sua memória. As quatro peladas dentro da água firmando um pacto que com o tempo não perduraria, Angélica sorrindo e dizendo à ela que a amava, e depois o surpreendente beijo lésbico, mas puro e cheio de amizade sincera.
Aquilo fizera, e ainda fazia, a coisa ser mais dolorida.
(— Por quê?! Por que fez isso?!).
Por que Angélica? Eu só queria entender porquê.
Por que o sonho se transformara em pesadelo?
A coisa da fazenda em Sapucaí-Mirim transformara-se realmente em pesadelos. Nely dormia e sonhava com a casa ensanguentada, incapaz de fazer alguma coisa, ouvia os gritos daqueles que tinham sido seus amigos e que pagaram um alto preço por isso, o preço de suas próprias vidas. Agora eles se tornaram fantasmas que insistiam em assombrá-la, e em seus sonhos eles a culpavam por estarem mortos.
Parte da culpa era dela, ela sabia. Ao menos ela era culpada por permitir que Codder entrasse em sua vida. Codder, um lobo disfarçado de ovelha, um galanteador nato que a encantara , que fez com que ela ficasse completamente cega. Cega de amor. Houvera amor no início (ou talvez fosse apenas uma miragem), ela pudera sentí-lo. Ela pudera, pelo menos por um tempo, acreditar que a vida era um mar de rosas. Era o erro da maioria das pessoas, hoje ela sabia. Não existe nada de mar de rosas na vida. Existe apenas a dor e o sofrimento, e Nely descobriu isso da pior maneira possível. Ela fora transportada de volta para a realidade de uma maneira brusca, e no meio da realidade nua e crua, ela viu o que de fato era a vida, não aquele mundo maravilhoso de sonhos em que se vive quando se é adolescente, mas sim um mundo tenebroso de pesadelos, choro e decepções. O que sobrara daquele mundo mágico e encantado em que ela pensara ser feliz, eram fantasmas que ainda a assombravam.
Dois anos haviam se passado, desde que um homem chamado Ezequiel Codder assassinara brutalmente seus amigos em busca de uma vingança cruel e implacável. Codder desaparecera desde então, desde o último telefonema que ela recebera enquanto dirigia uma viatura de polícia, era como se ele tivesse evaporado.
Marcas profundas mudaram a vida de Nely. Hoje ela vivia na casa de sua amiga Sandra, a última que sobrara daquele quarteto inseparável, a casa que se tornou também a sua casa. Nely não saia na rua, Nely não tinha o que se podia chamar de relacionamentos pessoais, seu círculo de amigos era fechado resumindo-se a algumas poucas pessoas, que na verdade eram mais amigas de Sandra do que dela própria. Nely arranjara um emprego onde ela se enfiava no escritório de manhã e passava o dia na frente do computador. O emprego era também uma desculpa para não ter que enfrentar o mundo lá fora e as decepções que ele oferecia. Nely só saía de casa para ir ao psicólogo. Ela fazia tratamento psicológico há quase um ano e aparentemente não tinha feito nenhum progresso para superar o passado. O passado que ainda era recente, que ainda sangrava. Ela não queria se divertir, fazia isso lendo algum livro na biblioteca surpreendente de Sandra, ou assistindo algum filme no vídeo.
Nely não tinha perspectivas de mudar isso, ela não sonhava e não queria arranjar um namorado, como sugerira Sandra, porque ela simplesmente não acreditava em amor. Ela amara uma vez e recebera em troca a morte. A morte de seus amigos e a morte de si própria, sua morte interior.
Sandra tentava ajudá-la, Nicolas fazia o que podia para se aproximar dela, mas Nely estava fechada. Ela sabia que tinha que superar a coisa de alguma forma e retomar sua vida, mas não tinha forças, ou simplesmente não acreditava que pudesse superar.
Teria Codder realmente desaparecido? Ela sabia que não. Ela tinha plena convicção de que ele estava à espreita, escondido nas sombras em algum lugar onde a polícia não podia capturá-lo, à sondá-la, vendo até onde ele a destruíra, querendo ter certeza de até onde ela tinha sido afetada pelo que acontecera; e, ela tinha certeza, planejando terminar a vingança não totalmente consumada. Porque Nely matara sua amada Angélica, então ela tinha que morrer, ela merecia ir para o mesmo lugar que Angélica: à sete palmos em baixo da terra.
Nely sentia a iminência desse perigo a cada instante. Codder era um psicopata, um psicopata que a polícia não conseguira prender e que ela não conseguira matar.
Nely comprou um revólver, um trinta e oito, que mantinha consigo. Sandra não sabia disso.
Ela vigiava Sandra, tinha medo. Codder poderia tentar machucá-la para atingir Nely, e ela achava que não suportaria perder a amiga, a única família que ainda lhe restara.
Sandra dizia que ela não devia se preocupar, Codder sabia que se desse as caras a polícia cairia em cima dele como cães sobre a caça. Ele se manteria nas sombras. Para Sandra Codder deveria ter fugido e elas nunca mais voltariam a vê-lo.
Era uma esperança, vaga, mas era uma esperança.
Nely saiu do chuveiro completamente nua, foi ao quarto e se vestiu.
O passado pulsava, ele era como um coração recém arrancado do peito, e por mais que lutasse ela não conseguia se ver livre dele.
*****
Nely desceu ao térreo e foi até seu escritório onde pegou as chaves do carro. Eram quase sete horas, dava tempo de dar uma corrida até a padaria e comprar um saco de pães bem quentinhos do jeito que ela gostava de comer.
O caminho até a padaria era uma das raras ocasiões em que ela podia respirar um ar puro e sair um pouco de casa, mesmo assim era um caminho de apenas cinco minutos. Cinco minutos que ela tinha para remoer as lembranças de um passado que a fizera chorar.
E ela ainda chorava. Mais por dentro do que por fora.
Por fora havia lágrimas, mas por dentro havia feridas que se recusavam a cicatrizar.
Nely não conseguia se livrar do passado. Um passado recente que ainda sangrava.
Às sete da manhã daquele dia primeiro de junho, aquele passado a atingiu com força suficiente para fazê-la chorar.
Nely se levantara cedo naquele dia, geralmente ela acordava por volta das nove da manhã, ao contrário de Sandra. O sono fora conturbado, ela acordara várias vezes durante a noite achando que estava de volta à versão assombrosa da casa de Érika, onde encontrava o cadáver apodrecido (e enlouquecido) de Angélica. As imagens do sonho agora não passavam de fleches obscuros em sua memória.
O banho ajudou a aliviar um pouco a tensão, entrar no carro e dirigir em direção à padaria com os vidros abertos, deixando o ar frio e úmido da manhã bater em seu rosto, também ajudava, mas enquanto dirigia, o passado a atingira como uma flecha, dilacerando seu coração.
Ela se lembrou que também dirigia naquela manhã, aquela trágica manhã de 26 de abril de 94 quando puxara o gatilho. O estampido do tiro ainda ecoava no recondito de seus pensamentos, ainda assombrava seus sonhos, sonhos que se arrastavam em noites tenebrosas sem que ela pudesse fazer alguma coisa para evitar. Para certos males não havia remédio. Ela só podia se conformar e reviver as lembranças que lhe causavam tanta dor.
Dois anos era um tempo curto demais para apagar os fantasmas de um passado que assombrava.
Quem sabe com o tempo aquilo podia mudar e ela pudesse ter uma vida normal que era o que ela almejava. Mas agora a coisa parecia recente demais, as feridas ainda estavam abertas, sangrando e causando dor.
O que acontecera causara-lhe um trauma que Nely achava que levaria para sempre preso em sua alma. Ela não esqueceria, mesmo quando estivesse velha, as lembranças a atormentariam enquanto ela respirasse, seriam a sua sina, algo do qual ela jamais conseguiria se livrar, por mais que se esforçasse.
Às vezes ela queria se convencer de que tudo não passara de um pesadelo, apenas mais um daqueles terríveis sonhos que ela tinha desde quando dera o tiro que matara Angélica, e com os quais aprendera a conviver, pesadelos que a levaram para a sala de um psicólogo, que lhe receitara uma infinidade de remédios que não serviam para nada mais senão dopá-la.
Mas as lembranças eram nítidas demais para um sonho.
Num sonho, todos os seus amigos estariam lá, vivos e sorridentes; num sonho o inseparável quarteto que se reuniu sem roupa em uma cachoeira em 1979 e fizera um pacto de amizade eterna seria uma realidade, uma realidade que ela queria viver para sempre, se pudesse. Mas não podia. Não podia porque a realidade era bem diferente. Na realidade tudo aquilo estava enterrado em um tenebroso passado, um passado que queria dominar seu presente.
O quarteto já não mais existia, Angélica, a franzina e ingênua garotinha que conheceram na escola no verão de 1974, e Érika estavam mortas, e o pacto de amizade eterna quebrado para sempre.
Talvez tenha sido por isso que tudo acontecera: o pacto fora quebrado, e pactos não deviam ser quebrados nunca.
Nely enxugou as lágrimas e tentou limpar sua mente, mas as lembranças não iam embora, pulsavam como um coração bombeando o sangue.
Ela já estava acostumada, achava que conseguiria viver com aquilo. Ela precisava, afinal a vida continuava. Ela tinha que encontrar forças para reconstruir sua vida, devia fazer aquilo por Érika, Érika iria querer que ela continuasse. Além disso, não podia viver presa ao passado.
Nely estava tentando, ela tentava todos os dias. Mas havia uma sombra ameaçadora que a perseguia.
Novamente ela se viu pensando em Codder.
(EU SEI ONDE VOCÊ ESTÁ).
Mais uma vez ela se convencia de que Codder podia estar à espreita observando seus passos, planejando uma maneira de terminar o que começara.
(vingança).
Dois anos haviam se passado, a polícia procurou mas não o encontrou, continuava procurando mas ela desconfiava que ele não seria encontrado. Ele andava nas sombras como uma ameaça iminente, uma ameaça que ela não fora capaz de eliminar. Ainda não.
Nely andava previnida. Seu 38 estava no porta luvas, ela tinha feito treinamento de tiro, aperfeiçoando sua pontaria.
Ela o esperava todos os dias, estaria pronta para ele quando ele aparecesse, e quando isso acontecesse, ela o mataria. Faria isso por cada ano de sofrimento que Codder a fizera passar, por cada amigo seu que ele matara. Aquilo era um juramento, e Nely não descansaria enquanto não o cumprisse.
O pensamento aliviou a tensão e ela conseguiu parar de chorar.
Comprou o pão e voltou para casa.
O relógio marcava sete e cinco da manhã. Uma manhã gelada, tomada por uma densa camada de neblina que encobria a paisagem, deixando-a pálida, lúgubre.
Nely odiava dias assim porque as lembranças que ela queria esquecer pareciam ganhar forças, ela sentia-se como uma prisioneira, incapaz de se livrar dos grilhões que a prendiam.
Ela suspirou, deu sinal e entrou à esquerda deixando a avenida.
A estrada que conduzia até a casa de Sandra, a casa que agora era o seu lar, era ladeada por um bosque, ao longo da estrada ficavam algumas propriedades, entre elas o imponente sobrado onde vivia com sua amiga, a única que restara daqueles velhos e bons tempos.
Nely parou diante do portão e acionou o controle remoto, o portão se abriu e ela passou voltando a fechá-lo. Parou o carro na garagem subterrânea ao lado do karmanghia vermelho de Sandra que era o seu xodózinho tratado como um verdadeiro membro da família. O karmanghia tinha pertencido ao pai de Sandra. Nely se lembrava muito bem de seu Rafael e da maneira como ele a recebeu em sua família assim que os pais de Nely morreram no trágico acidente de carro em um dia chuvoso do verão de 1973.
Ela pegou os pães e subiu a escada que ia dar diretamente no lobby central da casa. O lobby era dividido entre dois ambientes, uma sala de estar com lareira à esquerda e um home theater à direita.
Ao sul do lobby , na parte central da casa, ficava um jardim de inverno com as paredes envidraçadas, onde ficava a piscina aquecida. À direita havia uma sala de jogos e uma biblioteca, à esquerda um escritório, um lavabo e o hall com a escada que dava acesso ao andar superior; ao fundo ficava a cozinha e a sala de jantar.
Nely deixou os pães na cozinha e voltou para o home theater. Ligou a TV e colocou um filme no vídeo cassete, um filme de Stephen King, que ela simplesmente adorava. O que acontecera com ela podia muito bem ser confundido com uma história de terror de Stephen King.
De repente ouviu barulho de panelas caindo na cozinha e se assustou. Desligou a TV e foi até lá.
Sandra estava parada diante da pia usando apenas uma blusa e calcinha, pegando algumas panelas que tinham caído pelo chão.
Nely sorriu e disse:
— Bom dia, moça.
Sandra deu um salto.
— Deus do céu, Nely! Você me assustou!
— Me desculpe, querida.
— Você parece gato, não faz barulho!
— O que faz ai quase pelada?
— Estou procurando a frigideira. Você acordou cedo hoje!
— É. E já fui na padaria comprar pão.
— Fico feliz que tenha saído. Mesmo que seja até a padaria.
Sandra deu uma cheirada embaixo do braço e fez cara feia.
— Nossa! Estou cheirando cebola!
Nely sorriu.
— Deixe que eu preparo o café. Vai tomar banho e colocar uma roupa. Está frio hoje para ficar desfilando só de calcinha.
— Está bem mamãe.
Sandra sorriu e lhe assoprou um beijo.
Nely meneou a cabeça e começou a preparar o café da manhã.
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