Você Importa | Capítulo Vinte E Sete
Elisa se assustou quando acordou e não viu Sara, embora Lena estivesse lhe esperando, sentada no banco do piano. Ela tinha os olhos preocupados e atentos, uma faixa de tecido preto prendia seus cabelos curtos.
— O que houve? Onde está Sara? — perguntou, fazendo um esforço para se sentar. Os machucados não arderam, percebeu. Não ficou surpresa quando olhou para os próprios braços e notou que estavam completamente curados.
— Ela está com Aislinn, seus machucados pioraram — respondeu ela, e Elisa conseguiu se sentar, mas apoiada em alguns travesseiros. — Deveria ter deixado que eu os curasse antes — reclamou Lena, e Elisa não sabia se o tom da voz dela era de preocupação ou irritação.
— Eu achei que fosse ficar bem — falou a ruiva, porque realmente achava que conseguiria curar aqueles machucados depois de descansar. Aparentemente, seus poderes estavam bem mais fracos do que percebera. — Não tive energia para curá-los, nem ajudar Aislinn — confessou. Se curar, curar os outros, era uma coisa básica, não exigia tanta energia, só prática. Não ter forças para isso significava que seus poderes estavam bem fracos.
— Você não deveria ter ido para a dimensão humana, não com os poderes tão fracos. No que estava pensando? — retrucou ela, arregalando aqueles olhos cor de mel e lhe encarando de maneira chocada. Elisa inspirou fundo, evitando o olhar de julgamento.
— Em procurar Clarissa — respondeu Elisa, cheia de convicção na voz. — Não posso ver o mundo pegar fogo e não fazer nada.
— Se jogar nas chamas achando que não vai se queimar também não vai ajudar — retrucou Lena, impaciente.
— O que mais eu posso fazer? — insistiu Elisa, levantando o olhar para as ondas de véu no dossel, sem saber se estava irritada ou frustrada. Frustrada por ter perdido seus poderes, irritada porque Lena estava lhe tratando como uma criança.
— Ficar segura, não se arriscar tanto e nem se colocar na linha de frente nas batalhas — respondeu ela, e a rigidez em sua voz fez com que Elisa se virasse para encará-la. — Não pode fazer isso se não consegue se defender dos poderes deles, Liz. — Lena suavizou a voz, desta vez as sobrancelhas mais relaxadas, os olhos brilhando com aflição e ansiedade. Ela estava realmente assustada, percebeu.
— Meus poderes continuarão diminuindo, não vai fazer diferença alguma me arriscar ou não — argumentou Elisa.
— Para mim faz — retrucou a outra, um tanto exasperada enquanto lhe encarava com os olhos inquietos. — Para Clarissa e Sara também. Faz muita diferença saber que você está segura e não se arriscando por aí.
— Lena...
— Posso pesquisar, tentar achar alguma forma de reverter isso e...
— Não pesquise.
— Mas...
— Vou falar o que todos estão pensando e ninguém teve coragem de dizer — interrompeu a ruiva, se ajeitando nas almofadas para encará-la seriedade. — Em algum ponto, vou deixar de ser querubim. Até lá, prefiro continuar lutando e ajudando como posso — falou sobre a expressão quase horrorizada de Lena, banhada em incredulidade. Elisa inspirou fundo, desejando que ela não reagisse daquela forma. Era pior assim, não queria que ela ficasse tão desesperada. — Está tudo bem, é claro que sinto falta dos meus poderes e de me defender, mas também estou cansada disso. Ser querubim foi algo que simplesmente aconteceu e eu aceitei, agora eu posso explorar outras coisas e admitir que nem sempre eu quis isso aqui — tranquilizou-a com suavidade, e Lena se aproximou um pouco, sentando na ponta da cama. Ela tinha a mesma expressão inquieta e aflita, as mãos se movendo sem parar e as palavras rápidas demais, quase atropeladas.
— E se você não puder ficar em Onyx?
— Eu não sei, acho que vou ter de descobrir — respondeu Elisa, e a puxou para si, abraçando-a enquanto caíam sobre as almofadas cheias de lantejoulas. Ela lhe abraçou, Elisa deixou que Lena afundasse a face em seu cabelo ruivo, sentiu a energia dela fazendo cócegas em seu pescoço. — Nada vai acontecer enquanto eu estiver ligada com Clarissa, então não estou pensando nisso agora. Vamos focar no que realmente importa, por favor — pediu quando ela se afastou, percebendo que Lena tinha os olhos cheios de lágrimas.
— Você importa, não posso te perder também — murmurou Lena, as palavras engasgadas na garganta. Elisa a abraçou novamente, sentindo os próprios olhos arderem. Decidiu deixar as lágrimas escorrerem. Por ela. Por Clarissa. Por si mesma e toda aquela situação.
Não havia entendido o beijo tão espontâneo de Lena, não sabia por que ela fizera aquilo. Fora idiota em não perceber o que estava tão claro, porque o alívio e a felicidade estavam estampados na face dela quando lhe viu na porta.
Abraçou-a com mais força, imaginando se deveria dizer as palavras. Tinha certeza de que a amava desde que ela tomou a iniciativa do beijo e admitiu que lhe admirava platonicamente.
Suspirou fraquinho, aproveitando a presença dela e o silêncio. Se Clarissa estivesse ali, tudo estaria perfeito.
« ♡ »
Era comum ver Aislinn na biblioteca, então não foi estranho estar com ela ali, apesar de a biblioteca angelical ser milhares de vezes maior do que a que costumavam frequentar.
Aislinn estava um tanto perdida, Sara notou de imediato. Ela se sentou na poltrona e tinha um olhar apagado e baixo, nunca a vira tão distante e quieta.
— Você está bem? Como tudo isso aconteceu? — perguntou quando acabaram de se ajeitar ali, em uma das salas de leitura. Havia outras salas para estudo, aquela ali parecia mais para descanso, com sofás brancos e grandes almofadas douradas, além de um tapete grosso e felpudo que fazia cócegas em seu tornozelo.
— Asmodeus e Lilith aconteceram — respondeu Aislinn, e aquilo soou como uma pancada para Sara, que ofegou e retraiu o corpo com tensão.
— Meu Deus... — Estava sem voz, sem saber o que dizer ou o que fazer para melhorar a situação. Lilith no controle... — Aislinn, sinto muito.
— Não é sua culpa, você não fez nada disso — emendou ela, cheia de firmeza na voz. Sara negou com a cabeça, incrédula. Era tão estranho sentir aquela onda de energia demoníaca vindo dela, que sempre fora tão cheia de luz e vitalidade. Essa Aislinn apagada não era a Aislinn animada e cheia e iniciativa que conhecera.
— Mas eu...
— Você estava aqui o tempo inteiro. Não pode se culpar por algo que não pode controlar — garantiu Aislinn, sem lhe dar chance de argumentar. Sara tensionou o maxilar, se sentindo mal mesmo assim.
— Como estão Beth e Noah? — perguntou, porque já fazia tempo que não tinha notícias dos dois e estava começando a se preocupar, principalmente depois das ameaças de Mamon.
— Estão bem, fiquei observando de longe por alguns dias, depois que Lilith se foi. Eles parecem estar seguros — relatou Aislinn, lhe tranquilizando com um tom de voz suave. Os cabelos castanhos escondiam parte da face, brilhavam contra os vitrais coloridos da biblioteca. — Lena e Elisa te contaram o que aconteceu?
— Só detalhes essenciais, nem sei se quero saber o resto — admitiu em voz baixa, por que não sabia se conseguiria ouvir tudo sem desabar completamente, se culpar por cada acontecimento.
Algumas vezes era melhor evitar saber de tudo para não ficar remoendo aquilo dentro de si.
— É melhor assim — concordou Aislinn, com seriedade. Os olhos dela eram tão escuros que parecia desconexo, porque estava acostumada com os olhos reluzentes dos querubins. — Mas eles estão seguindo como podem, sentem sua falta — disse, e Sara sorriu com melancolia, tocando o relicário no pescoço.
Continuaram ali por um tempo, tentou fazer o possível para tranquilizá-la em relação aos poderes, Aislinn desabafou sobre o quão estranho era aquilo, que não estava conseguindo se adaptar com aquela energia estranha que lhe mantinha viva.
Sara ficou preocupada, queria passar mais tempo com ela, tentar ajudá-la, mas não demorou até que Lena e Elisa aparecessem, atravessando o corredor de estantes de madeira.
Sara se levantou, abraçando a ruiva com força quando ela se aproximou. Elisa parecia bem, não tão pálida quanto antes e os machucados haviam desaparecido.
— Você me assustou — sussurrou, deixando um suspiro aliviado escapar. Elisa murmurou um pedido de desculpas, se afastando com a face baixa.
Lena pigarreou, levantando uma sobrancelha quando olhou para Aislinn e Elisa.
— Vocês podem me contar toda a história agora? Ainda não entendi nada sobre como vocês chegaram aqui — pediu Lena, Aislinn assentiu levemente e Elisa riu baixinho, assentindo também.
Sara estava prestes a se sentar com elas, mas sentiu um leve pulsar no pingente que Lena lhe dera. Foi sutil, mas notou aquela energia calorosa vibrar levemente, uma energia muito diferente da sua.
Baixou o olhar para a blusa, olhando para a pétala branca imersa no óleo translúcido. Brilhava levemente, um pouco mais intenso do que normalmente fazia.
— Preciso ir, encontro vocês depois — falou de maneira exasperada, saindo sem responder nenhuma pergunta.
« ♡ »
Não viu nada de diferente quando adentrou o santuário, só as mesmas paredes de quartzo brilhante, as velas acesas e aura de tranquilidade e sacralidade que se misturavam no silêncio.
Os bancos estavam vazios, assim como o altar. Girou lentamente, buscando uma visão panorâmica do lugar.
— Eric? — sussurrou baixinho, com medo de que um tom mais alto quebrasse a aura sagrada do lugar.
— Beth precisa de você — respondeu a voz infantil, e Sara se virou para encará-lo. Talvez nunca se acostumasse com aquilo, com tê-lo perto de si, porque ainda sentia o corpo falsear toda vez que o via.
Ele estava exatamente como antes, pés descalços, roupa branca e simples. Eric estava em cima de um dos bancos de madeira, assim ficava da altura de Sara e conseguia encará-la nos olhos.
— Ela está bem? — perguntou automaticamente, preocupada com a aparição tão repentina. Odiava que, mesmo juntos, ainda tinham um abismo os separando.
Queria poder cuidar dele, falar de coisas normais como a escola, os dramas adolescentes e tudo o que ele devia ter aproveitado, mas não pudera.
— Vai ficar — respondeu Eric, mas Sara viu um lapso de preocupação nos olhinhos escuros. — Mas ela precisa que você esteja lá.
— Eu já tentei voltar, não consigo — falou em um tom frustrado. Eric assentiu com calma, então desceu do banco e caminhou até onde ela estava; Sara estremeceu quando ele pegou sua mão. O toque do menino era uma mistura de emoções, uma pulsação de tranquilidade e dor, um toque que trancava sua garganta.
Piscou para afastar as lágrimas, fechou os olhos quando viu o santuário girando e se desmanchando em sua frente.
Por um segundo, ficou confusa enquanto tudo ao seu redor girava e derretia. Ele estava lhe levando de volta? Acordaria em seu corpo humano e então esqueceria da dimensão angelical?
Entendeu tudo quando abriu os olhos e se viu no meio de um quarto hospitalar, reconheceu imediatamente as paredes brancas e o suporte para o soro ao lado da cama, onde uma garota dormia. As luzes estavam apagadas, precisou se aproximar para enxergá-la no escuro.
Sara engoliu a seco quando reconheceu os cabelos bagunçados de Bethany, correndo até a cama com pressa, mal conseguindo pensar. Observou-a por um momento e percebeu que ela respirava pesadamente, o pulso estava inchado por causa da agulha do soro.
Ficou paralisada de preocupação, trêmula ao perceber que ela não parecia machucada. Esticou a mão e acariciou os cabelos escuros da menina, contendo as lágrimas que ainda persistiam. Bethany revirou-se vagarosamente entre os lençóis brancos, piscando com as pálpebras pesadas.
— Mãe — sussurrou ela, a voz abafada pelo sono. — Senti sua falta — disse a menina, se afastando um pouco e puxando levemente o braço de Sara. Sara sorriu e subiu na cama, deitando-se ao lado dela e a abraçando. Bethany se encolheu em seus braços, deitando a cabeça em seu peito e lhe abraçando também.
— Também senti a sua, querida — sussurrou para ela, aninhando-a contra seu corpo. Por um segundo, Bethany pareceu aquela menininha de dois anos que vinha correndo para seu colo, que dormia com a cabeça apoiada em seu peito e tinha bochechas avermelhadas.
Ela devia ter adormecido, porque ficaram um tempo em silêncio.
— Precisa pedir para o pai devolver meu celular — murmurou Bethany, sonolenta e com as palavras suspiradas. Sara franziu as sobrancelhas com desconfiança, já que ela nunca havia ficado sem celular antes.
Por que Liam lhe tiraria o celular?
— O que aconteceu com seu celular? — perguntou, penteando as mechas de cabelo curto com os dedos, percebendo como os fios dela eram parecidos com os seus.
Bethany não respondeu, ainda com a cabeça apoiada em seu peito e adormecida em seus braços. Sara observou-a com atenção, deixando-a dormir.
Ela parecia muito frágil, talvez por isso Eric lhe trouxera ali. Deixou que pequenas correntes de energia vibrassem para ela, a fortalecendo, devolvendo aquelas bochechas coradas.
Envolveu-a naquela bolha de poder para ajudá-la a se recuperar logo, mesmo que não soubesse o motivo dela estar ali. Doía tanto vê-la assim, tão frágil e encolhida naquele quarto de hospital.
Ficou em silêncio, matando a saudade e esperando que isso a fortalecesse. Aproveitou o quanto pôde, deixou que sua energia se conectasse com a dela e a curasse lentamente.
Não soube quanto tempo se passou até que Eric apareceu, brilhando perto da porta e com um sorriso tristonho. Sara mordeu o lábio, desejando ter mais tempo ali, poder ficar o resto da noite com ela.
— Beth? — chamou baixinho, e Bethany se remexeu levemente, mas não acordou. Sara chamou-a novamente, desta vez um pouquinho mais alto. — Bettie?
— Hm? — respondeu a menina, ainda imersa em um estado de sonolência e sem abrir os olhos.
— Preciso que você seja forte, aguente firme um pouquinho de cada vez, tudo bem? — pediu com gentileza, sentindo que uma lágrima havia escapado e caído no ar, sumindo na escuridão. — Promete que vai fazer o melhor que pode? Vou fazer o meu melhor também — prometeu, abraçando-a com força. A menina demorou um pouco para responder, Sara pensou que ela havia adormecido novamente.
— Sim — sussurrou ela, tão baixinho que a voz desapareceu no ar. Sara sorriu e olhou para Eric, que lhe esperava do outro lado do quarto. Começou a se afastar de Bethany lentamente, com cuidado para não a acordar.
Havia acabado de colocar os pés no chão quando ela se remexeu na cama.
— Você vai voltar? — pediu a menina, se revirando no lençol e com os olhos sonolentos, perdidos. Sara hesitou por um instante e então se inclinou, beijando o topo da cabeça dela.
— Estou fazendo o possível, bebê — prometeu, e viu que ela já estava quase dormindo novamente. Com um suspiro, se virou e seguiu até Eric, mesmo que doesse deixar Bethany para trás.
Deu uma última olhada na menina, ficou mais tranquila quando percebeu que ela estava dormindo. Entrelaçou a mão na de Eric, fechou os olhos quando as coisas começaram a se desmanchar, sentiu o corpo deslizando e deslizando, como se estivesse caindo em um oceano muito profundo.
Piscou quando tudo voltou ao normal, observando o santuário, as velas bruxuleantes e as paredes voltando ao lugar. Viu tudo num borrão de cores, depois as paredes foram se tornando mais nítidas, como se nunca tivesse saído dali.
— O que aconteceu? — perguntou para o menino, sem conseguir controlar a própria ansiedade. Ele ficou em silêncio por um momento, desviando o olhar. — Eric, o que aconteceu com Beth? Por que ela está no hospital? — Tinha uma voz aflita, mesmo que tentasse manter o tom suave.
— Você não precisa saber — falou Eric com suavidade, a voz envolta de preocupação e afeto. Ele subiu no banco para poder lhe encarar, os pés descalços sobre a madeira envernizada.
Sara sentiu os músculos se contraírem, os olhos brilhando com mais lágrimas.
— Foi minha culpa, não foi? Decidir enfrentar Mamon...
— Não, não foi — respondeu ele, os olhos escuros brilhando sobre a luz das velas. — É por isso que você não precisa saber, vai te fazer mal. O que você precisa saber é que ela vai ficar bem, que Beth tem proteção — falou ele, e Sara ouviu tanto carinho em sua voz que não conseguiu conter as lágrimas. — Você está fazendo tudo o que pode, mãe. Precisa entender que é suficiente. — Sara levantou o olhar para encontrar o dele, os olhos quase arregalados. Ele nunca lhe chamara de mãe antes.
Era tão bom ouvir aquilo daquela voz infantil, tão bom ouvir aquilo vindo dele.
Sara deixou que as últimas lágrimas escorressem, então limpou o rosto com a ponta dos dedos, sorrindo com cansaço. Eric sorriu também, feliz ao lhe ver limpando o rosto.
— Obrigada — murmurou com sinceridade, acalentada pelo carinho e pelo sorriso dele. Quantas vezes já quisera ver aquele sorriso novamente, quantas vezes desejara ouvi-lo lhe chamar de mãe...
— Não precisa insistir tanto, as coisas acontecerão na hora certa — sorriu Eric, e Sara queria perguntar o que aquilo significava, do que ele estava falando com aquele tom misterioso. Quando abriu a boca para questionar, ele já havia desaparecido, tão rápido que não passou de um lapso de luz.
Sara olhou ao redor novamente, como se estivesse esperando encontrá-lo, mas resolveu sentar-se em um dos bancos de madeira por um momento. Encolheu-se ali, deixando que sua mente ficasse submersa no caos de seus pensamentos.
Não precisa insistir tanto, ele dissera. Eric provavelmente estava falando sobre sua relutância em se adaptar ali, sobre sua teimosia em aceitar essa nova realidade. Se levantou decidida a encontrar a pessoa que mais lhe incentivara a se adaptar na nova dimensão. Não podia perder mais tempo com sua própria teimosia, precisava aceitar sua nova realidade e lidar com ela.
« ♡ »
Não se virou quando ouviu as portas duplas se abrindo, continuou movendo os pés dentro da água. Sara já estivera naquele lugar antes, sozinha e pensando sobre como queria voltar para casa.
Era um lugar lindo, mas não quisera admitir isso da primeira vez que estivera ali. Não queria admitir que gostava da dimensão, que estaria ali por um longo tempo. Decidida a parar com a birra, encarava todo o lugar, encantada com as paredes cobertas por cipós, as flores vermelhas desabrochando no meio do verde e a água transparente ondulando.
— Queria conversar? — indagou Arthur, e foi só então que Sara se virou. Ele geralmente estava bem vestido, talvez o comando do exército exigisse isso, então não era difícil vê-lo com blazers e calças sociais.
Agora, Arthur usava apenas com uma regata e uma calça simples, os cabelos castanhos bagunçados de uma maneira bonita, como se cada mecha fosse devidamente planejada para aquele lugar.
Sara sorriu, assentindo com a cabeça enquanto ele se aproximava.
— Só agradecer por tudo, por ter me tirado daquela sala de treinamento, ter me ouvido e falado sobre você — disse, observando-o se sentar ao seu lado, na borda da piscina natural. Arthur dobrou as barras da calça para colocar os pés dentro da água, sem se importar quando molhou o tecido. — E também por ser essa pessoa extremamente chata que fica apontando o dedo na minha cara e me cobrando atitudes melhores — completou, fazendo-o rir. O som da risada dele lhe tranquilizava, Arthur lhe tranquilizava. Ele parecia tão acomodado ali, os cabelos bagunçados, a roupa simples e vibrando energia angelical com uma aura iluminada.
— Não há de quê — respondeu Arthur, sorrindo daquela maneira que abalava completamente suas defesas.
— Você tinha razão. Preciso de ajuda, preciso me ajudar a ficar bem — admitiu, os olhos baixos na água. Tocou o relicário no pescoço, pensando na foto das crianças. — Se não por mim... Então por eles, porque essa é a única forma de ajudá-los — disse, observando o reflexo da luz branca na piscina, o leve ondular cintilante que a água fazia.
— Finalmente percebeu — comentou Arthur, e Sara riu do tom sarcástico.
— É, levei algum tempo — concordou, movendo os pés para criar ondulações. Observou as flores que boiavam na superfície ondulando junto, seguindo o ritmo de seus pés. — Perdi muito tempo — corrigiu automaticamente, frustrada. Arthur negou com a cabeça, os cabelos castanhos balançando junto.
— Não perdeu, essa fase de adaptação é difícil para todo mundo — respondeu ele, sempre com calma e compreensão.
— Eu só continuo com medo de desapegar de tudo, deixar tudo para trás — confessou ao levantar os olhos, dando de ombros. — Admitir que não vou mais voltar.
— Só porque você está cedendo e se acostumando aqui, não quer dizer que está desistindo — contestou Arthur, e a suavidade na voz dele fez com que Sara se encolhesse. — Não é fácil, eu sei. Não é racional, — disse ele — mas você pode aproveitar as coisas boas daqui também, não te faz uma péssima pessoa. Você não parou de lutar nem por um segundo, continuar assim só vai te fazer mal.
Sara ficou em silêncio, pensando nas palavras dele. Havia confessado para Arthur que estava exausta daquilo tudo, de tentar negar os próprios poderes e a própria realidade. Talvez devesse parar de lutar, talvez quando soltasse a defesa percebesse que estava lutando com o ar.
Sorriu para Arthur, se sentindo leve depois de ter passado tanto tempo se privando das coisas ali.
— E este não é nem de perto o melhor lugar daqui, talvez agora você pare de se trancar no seu quarto e me deixe te mostrar a dimensão — sugeriu ele, Sara revirou os olhos com a provocação.
— Posso pensar sobre isso — prometeu ela, rindo.
— Não pense muito — retrucou Arthur, bem quando Sara encontrou os olhos dele. Foi naquele momento, justamente naquele momento. Era como se todo o universo tivesse parado quando ele sorriu, como se toda a eletricidade do mundo estivesse no ar entre os dois quando encontrou os olhos dourados de Arthur.
Pararam por um momento, em silêncio. Não pense muito.
Arthur colocou a mão sobre a sua, nenhum dos dois desviou o olhar. Energia angelical formigou sobre sua pele, nos pontos que ele encostava quando entrelaçaram os dedos. Seu corpo fez o resto, se aproximaram com cuidado e a água ondulou sobre os pés quando fechou os olhos.
O beijo dele era exatamente como Arthur. Calmo, com total controle dos movimentos e forte. Sentia os movimentos dele contra os seus, Arthur passou a mão por sua cintura e lhe puxou um pouco mais para perto, sem interromper.
Não podia dizer que aquilo fora inesperado, ou que não estava gostando, mas sentia tudo pesado quando se afastou dele. O relicário queimava contra sua pele, estava sufocada por medo e insegurança.
Medo de se envolver demais, de criar laços demais, exatamente como fizera com Liam. Insegurança porque tinha tanta carga emocional, tantas pontas soltas no passado que ainda precisava resolver.
E depois da conversa na frente da lareira, depois de ter compartilhado tanta coisa, sabia que qualquer envolvimento com Arthur seria profundo.
— Arthur... — antecipou-se, o nervosismo enuviando sua mente e dificultando para encontrar as palavras certas. — Não sei se estou pronta para algo romântico — confessou com as palavras rápidas demais, sentindo-se a pior pessoa do mundo. Não queria jogar aquele balde de água fria, não quando ele estava sendo tão atencioso e cuidadoso com tudo. Queria conseguir se entregar totalmente aos sentimentos que tinha por ele, mas não podia fazer isso sabendo que talvez acabasse o magoando.
Arthur não parecia decepcionado, apenas confuso. Aquilo lhe deixou um pouquinho melhor.
— Me desculpe se forcei algo, eu não... — começou ele, e Sara balançou a cabeça com veemência.
— Não, não forçou — interrompeu-o, porque queria que ele soubesse que o beijo não era o problema. — Eu só tenho questões minhas que preciso resolver primeiro — explicou, tentando se concentrar na própria respiração para manter o foco. — Preciso me encontrar aqui antes, aceitar quem sou agora. Admitir que vou passar um bom tempo aqui e me adaptar já é um passo muito grande, me envolver com alguém deste modo é um passo maior do que posso dar — explicou com as palavras rápidas demais, soando desesperada para se justificar.
Mas Arthur, como sempre, sorriu com calma para lhe tranquilizar e aquilo envolveu sua aflição num cobertor suave e tranquilo.
— Eu entendo, não precisa se justificar para mim — falou ele, e Sara observou as flores vermelhas boiando na água. Sentia-se despedaçada, mas tudo bem, porque Arthur estava ali para colar tudo. — Estarei aqui, segurando sua mão quando precisar — prometeu.
Trocaram sorrisos e olhares calmos, lentamente se aproximou de Arthur, que passou o braço ao seu redor para lhe reconfortar. Sara se ajeitou contra ele, deitando a cabeça em seu ombro e observando os cipós que formavam uma cerca viva.
Fechou os olhos e inspirou aquele cheiro orgânico de umidade e natureza, pela primeira vez sentindo que ali era seu lugar, porque se conseguia dar chances a novas pessoas, como Arthur, conseguiria dar chance a uma nova dimensão.
Só precisava ter coragem o suficiente.
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