Uma Luta Constante | Capítulo Vinte E Seis
O quarto de Arthur se transformara num refúgio, Arthur se transformara num refúgio.
Sara falou sobre Eric, sobre como fora perdê-lo e então reencontrá-lo. Falou sobre como era doloroso, surreal e maravilhoso ao mesmo tempo, sobre como sentia saudades de Noah e Bethany e não suportava a ansiedade para vê-los. Arthur ouviu tudo com atenção, mostrando-se compreensivo como prometera.
Ele também falou sobre a própria história, foram dividindo experiências, falando sobre um passado humano que parecia tão distante. Nunca achou que seria tão bom dividir tudo aquilo com alguém que não vivenciara seu passado, mas foi catártico se livrar de tantos sentimentos embolados. Sentia que podia ser si mesma com ele, sem precisar esconder toda essa carga emocional.
Ouviu quando Arthur falou sobre a relação conturbada com os pais, sobre como conseguiu independência aos poucos. Ele falou sobre como fora se adaptar em Onyx, perceber que era mais fácil ser quem realmente era ali — e que poderia deixar a dimensão humana para trás, recomeçar com uma liberdade que nunca havia sonhado em ter.
Tinham histórias tão diferentes, mas se compreendiam tão mutuamente que nem viu o tempo passar. Acordou encolhida no sofá dele, sentindo o calor da lareira e ouvindo o crepitar baixo das chamas. Pareciam ser de energia angelical, percebeu. Só energia angelical conseguiria provocar todo aquele calor e espantar o frio demoníaco — o quarto de Sara, ao contrário do de Arthur, era todo envolto por uma névoa fria.
Isso nunca lhe incomodou, sempre estava com blusas curtas porque seu corpo não se afetava com as sensações térmicas provocadas por energias diferentes, não tinha uma temperatura ideal a manter.
Estava com a cabeça apoiada numa almofada, coberta com uma manta macia e aconchegante. Aquilo lhe fez sorrir, porque Arthur provavelmente havia a colocado ali, mesmo sabendo que frio e calor são conceitos biológicos não aplicáveis na dimensão — mas sorriu mesmo assim, porque ele se importava e só estava tentando lhe deixar confortável.
Olhou ao redor, esperando encontrá-lo ali, já que estavam juntos quando adormecera — não percebera quão cansada estava depois da batalha. Notou que estava sozinha no quarto, havia apenas um bilhete lhe esperando, apoiado na mesinha de madeira ao lado do sofá.
Sara o pegou e abriu lentamente.
Precisei sair para uma reunião urgente, achei melhor te deixar descansar. Espero que tenha cessado todas as batalhas por hoje.
— Arthur
Suspirou levemente e se encolheu na coberta, observando as chamas por um momento, aproveitando a sensação de acolhedora. Resolveu guardar o bilhete no bolso da calça, dobrou a coberta antes de sair do quarto.
Olhou para trás uma última vez, lembrando-se de quando estavam na frente da lareira, acolhidos no sofá enquanto conversavam. A imagem lhe fez sorrir quando fechou a porta e seguiu para o corredor.
« ♡ »
— Onde você estava? Te procurei por todos os lugares! — Não teve tempo de falar nada, Elisa lhe abraçou quase automaticamente, logo depois de abrir a porta. Sara riu com alívio e abraçou-a mais forte, feliz por vê-la tão bem, por saber que estava segura.
— Me desculpe, só soube que você tinha voltado quando falei com Kenan — explicou quando se afastaram, observando-a com mais atenção. Os braços da ruiva estavam cheios de cortes, alguns envolvidos com curativos, e aquilo era novidade numa dimensão de querubins em que todos se curavam com uma rapidez estonteante. — O que aconteceu? Deveria pedir para Lena cuidar dos machucados.
— Vou ficar bem — garantiu Elisa, mas Sara ainda olhava com preocupação para os machucados profundos, inflamados contra a pele delicada dela. Se ao menos pudesse curá-la sem piorar a situação...
Elisa não parecia preocupada, logo começou a relatar tudo o que acontecera quando estivera fora. Sara sentou-se em uma poltrona de frente para a ruiva, que se ajeitou entre as almofadas da cama.
Ela falou sobre os planos de Clarissa, o aparecimento de Aislinn e a espada que Clarissa dissera ser capaz de cortar o elo. Sara ouviu tudo atentamente, tensa ao absorver as novas informações e sem conseguir tirar os olhos dos curativos.
— Você trouxe o rubi para cá? — perguntou, e agora estavam deitadas lado a lado na cama, haviam se ajeitado ali durante as pausas que Elisa fazia para responder as dúvidas de Sara. Sentia-se engolida pelas almofadas brilhantes, tudo ali lhe lembrava do quarto de Elisa durante o ensino médio, então era um tanto reconfortante, porque o conhecia como se fosse o próprio quarto.
— Não, deixei com Beth. Eu simplesmente soube que deveria deixar com ela, não dá para ignorar esse tipo de intuição — respondeu Elisa, e Sara ficou um tempo em silêncio, sentido uma pressão estranha em todo o corpo, lhe sufocando.
Lena e Elisa não haviam falado muito sobre Bethany, sobre como ela estava. Sara não sabia se queria perguntar, Lena havia dito que não adiantava ficar presa nos acontecimentos da dimensão humana, porque faria mal observar sem poder fazer nada.
Não suportaria saber que Bethany e Noah estavam mal e não poder fazer nada sobre isso. Lena e Elisa lhe avisariam se qualquer coisa mais grave tivesse acontecido.
— Eric — murmurou baixinho, mas aquela dimensão era tão silenciosa que Elisa ouviu. Ela se virou com os olhos arregalados, mechas de cabelo ruivo caindo sobre o rosto de uma maneira bagunçada.
— Como?
— Ele apareceu quando eu estava no santuário, provavelmente fez com que você levasse o rubi para Beth — explicou sem olhar para ela. Encarou o teto, observando as ondas que o véu fazia ao cair no suporte do dossel. Era quase como estar no meio de uma nuvem. — Foi ele quem me alertou sobre Azazel, então fez essas flores desabrocharem e eu o vi no santuário — disse, apontando para o colar que Lena lhe dera. Elisa sorriu levemente, a tranquilidade em sua expressão acalmou Sara.
— E como foi?
— Eu achei que pudesse desabar, foi incrível poder abraçá-lo — confessou Sara, rindo fraquinho. Se ajeitou no travesseiro, os cabelos escuros se espalhando pela almofada prateada e brilhante. — Depois... fiquei com raiva, muita raiva e não sabia aonde descontar. Raiva porque não pude evitar nada disso, porque não posso mudar nada — confessou, feliz por finalmente tirar aquilo do peito. Não era como se pudesse falar sobre isso com Arthur, talvez ele entendesse, mas não lhe compreenderia como Elisa faria. Voltou-se para ela, mordendo levemente o lábio inferior. — Como foi quando você encontrou seus pais?
— Também senti isso. Claro que fiquei feliz, mas, ao mesmo tempo, tudo parecia tão errado, como se nada disso devesse acontecer. Eu e eles nesta dimensão, quando deveríamos ter uma vida normal... — falou Elisa, as palavras transbordando compreensão. Sara deixou que os olhos pousassem sobre o porta-retratos no gaveteiro ao lado da cama, observando a última foto que Elisa havia tirado com os pais, na varanda de casa. — Aos poucos, eu fui deixando isso para trás, aceitando a nova realidade. Não foi fácil, mas aconteceu. Sinta essa raiva, compreenda e a aceite, só não se prenda a esse sentimento porque há coisas melhores para se gastar energia — sugeriu a ruiva. Sara não conseguia parar de pensar nas projeções da sala de treinamento, em Mamon e em como estava enfurecida, tão enfurecida que não se importava em se machucar porque só queria descontar em algo, sentir algo além da angústia, nem que fossem os cortes na pele.
— Não sei se consigo fazer isso — desabafou, porque não sabia o que fazer com esses sentimentos tão intensos. Elisa assentiu de maneira compreensiva, mas estava preocupada quando se virou no travesseiro, encarando Sara.
Os olhos dourados não estavam tão brilhantes, percebeu em um devaneio.
— Não posso te dizer o que fazer, nós perdemos pessoas diferentes, lidamos com isso de maneira diferente, — respondeu Elisa, as palavras cuidadosas e suaves ao mesmo tempo — mas acredite em mim quando digo que essa raiva não compensa, que há muita coisa melhor para se sentir. É uma luta constante e cansativa, eu sei, mas não pode se deixar ser engolida por ela — aconselhou. Uma luta constante. Aquilo parecia definir bem, porque a todo segundo precisava lembrar-se de nadar naquele mar de mágoa e sentimentos sufocantes.
— Eu sou a mãe, eu deveria estar tomando conta e cuidando dele, não o contrário — falou sem conseguir manter a firmeza nas palavras, olhando para o teto quando a voz tremeu. — Não é justo, nunca foi. É como se eu precisasse de alguém para culpar, de alguém para equilibrar tudo isso, mesmo sabendo que é besteira. É uma necessidade de saber que houve consequências, que Lúcifer sentiu toda a dor que eu senti e pagou por isso.
Elisa fez uma pausa, como se estivesse absorvendo suas palavras. Quando ela se virou para Sara, havia certa tristeza em seu olhar, mas também certa maturidade, maturidade de alguém que havia passado por tudo isso e conseguido aliviar as sequelas.
— Vocês derrotaram Lúcifer, isso te fez se sentir melhor? Apagou o peso do que ele fez? — questionou num tom suave, e Sara sabia que aquela era uma pergunta sem resposta. Não apagava nada, nem a morte de Eric, nem dos pais de Elisa, de Elisa. Continuava doendo como uma ferida não cicatrizada. — Não estou dizendo que não adoraria garantir que Adrian e Lúcifer queimassem no inferno pelo resto da eternidade, porque eu amaria isso — garantiu ela, e era impossível não perceber tanta sinceridade em sua voz. — Eu só não dependo disso para continuar, entende? Lúcifer se foi, sofreu as consequências, você está lutando uma batalha que já foi vencida, é a única que vai sair machucada disso. Com o tempo, você aprende a focar no que realmente te fortalece — prometeu Elisa, então Sara assentiu de maneira relutante e olhou para o teto, querendo acelerar todo esse processo.
Ficaram em silêncio por um momento, Sara absorvendo toda a conversa, lembrando-se de Arthur lhe dizendo que era diferente deles, que precisava aprender a enxergar o que estava debaixo de seu nariz.
Como se pudesse ler seus pensamentos, Elisa se virou no travesseiro, deitando-se de lado para encarar Sara.
— E Arthur? — indagou ela, com as sobrancelhas erguidas em um tom inquisitivo. Sara riu levemente, incrédula com a sagacidade da ruiva.
— O que tem ele?
— Não o vi em lugar algum, você desapareceu, ele também... — disse, deixando que o tom sugestivo falasse por si.
— Meu Deus, você precisa de limites — reclamou Sara, revirando os olhos com impaciência. É claro que aquilo fez com que Elisa ficasse ainda mais interessada, os olhos brilhando com uma animação infantil.
— Vocês estavam juntos, não estavam?
— Sim, estávamos. Satisfeita agora? — admitiu, levantando as mãos em um sinal rendido.
— Não! Preciso de detalhes! — insistiu a ruiva, sem dar trégua.
— Nós só conversamos, não foi nada demais — respondeu, ocultando a parte de que estavam no quarto dele e de que dormira no sofá. Talvez estivesse minimizando com nada demais.
— Da última vez que você disse que não é nada demais, você se casou com o cara e tiveram filhos — reclamou Elisa, nada convencida com suas palavras e totalmente disposta a descobrir a verdade. — Estou falando sério! Você sempre fica se fazendo de durona, demorou um bom tempo até que admitisse que as coisas com Liam estavam bem sérias — continuou no mesmo tom insistente. — Eu aposto que ele foi o primeiro a dizer eu te amo, duvido que você cederia antes disso.
— Uau, você me assusta, mas sim, Liam foi o primeiro a dizer — admitiu, sem conseguir conter a risada. Esquecia-se de que ela lhe conhecia tão bem. — Tudo bem, eu admito, gosto dele e talvez eu pare de erguer tantas barreiras, era isso que você queria ouvir?
— Gosta dele num sentido romântico ou de amizade? — provocou Elisa, enquanto prendia os cabelos ruivos, que até agora estavam completamente espalhados pelo travesseiro.
— Você está pedindo demais — resmungou Sara, fazendo a ruiva rir.
Falou um pouco sobre a conversa que tiveram, sobre como conseguiu se abrir com Arthur. Não falou sobre a foto e nem sobre o que ele havia dito sobre a família, não sabia o quanto Arthur era aberto sobre isso e nem tinha direito de falar sobre uma coisa tão pessoal dele.
Era bom conversar com Elisa sobre isso, lhe ajudava a clarear seus sentimentos e desembaraçar o nó confuso dentro do peito. Ela pareceu surpresa quando disse que havia contado a Arthur sobre Eric, e isso lhe fez perceber o quanto era completamente fechada para os outros.
Quando falou que adormeceu no sofá dele, depois de terem conversando na frente de uma lareira, Elisa estava completamente convencida de que aquilo era mais do que uma amizade. Sara estava cansada demais para tentar contra-argumentar.
— Pode ser que seja, mas não estou pensando nisso agora — falou com sinceridade, se surpreendendo com isso. Arthur era de fato incrível, não podia negar que existia uma tensão quando se tocavam e trocavam olhares, mas não tinha energia para joguinhos de romance. Estranhou quando Elisa não respondeu, se virou para ela depois de alguns segundos e arregalou os olhos, se ajoelhando no colchão com rapidez. — Liz? — chamou-a, ao perceber que ela estava inconsciente e muito pálida, pálida demais até mesmo para os padrões de Elisa. Inclinou-se sobre ela, puxando uma das ataduras e percebendo como os cortes estavam obscurecidos, quase inflamados. — Lisa? — chamou mais uma vez, desenrolando os curativos para analisar os cortes. Ela não acordou, talvez a energia demoníaca tivesse sido demais, então não conseguiria curá-la, precisava buscar alguém que pudesse. — Merda — murmurou, se afastando e saindo da cama. Deveria ter prestado atenção na voz cansada dela, nos cortes piorando aos poucos.
Deu uma última olhada para trás, insegura, e correu em busca de Lena.
« ♡ »
Aislinn se sentiu melhor quando acordou.
A dor de cabeça e o cansaço desapareceram, nenhuma ferida latejava ou ardia. Por um momento, foi como voltar para a vida normal, para um lugar em que se sentia protegida e calma.
Aos poucos, sentiu o cheiro de incenso e olhou para o teto arredondado, pintando com diversos detalhes dourados que pareciam estrelas. Aquilo lhe fez sorrir levemente, lembrando-se de onde e com quem estava.
Lena estava sentava sobre as pernas dobradas no tapete felpudo, com cartas de tarô espalhadas sobre uma toalha colorida.
— Você pode tirar os curativos agora — disse ela, e Aislinn sentia familiaridade naquela voz suave, era como sentir um cheiro rotineiro da infância. Gostava de pensar que seu corpo se lembrava dela, que conseguia reconhecer a voz, o sorriso, o modo como os cabelos castanhos brilhavam e o cheiro de incenso.
De alguma forma, aquilo era familiar, assim como o toque de Lena. Ainda assim, era estranho imaginá-la como sua mãe, era uma imagem que não conseguia normalizar em sua mente.
Lena lhe ajudou a se sentar e desenrolar os esparadrapos, Aislinn ficou surpresa ao perceber que não sobrara nem mesmo um arranhão, ela havia curado todos os machucados.
— Como se sente? — perguntou Lena, Aislinn deu de ombros com um olhar vazio. O que deveria responder, afinal?
— Melhor.
— Não estou falando dos machucados — insistiu ela, e Aislinn baixou o olhar para as cartas de tarô espalhadas no tapete. Mordeu levemente os lábios ao reconhecê-las. — Suas cartas. Nada bom — explicou.
A primeira carta era o arcano d'A morte, a figura encapuzada e obscura montada em um cavalo branco, carregando uma grande foice. Aislinn quase começou a rir com a literalidade da carta. Não precisava pensar muito sobre sua interpretação: Era um arcano maior, com uma interferência grande em sua vida.
A segunda carta virada era o Oito de Espadas, que mostrava uma mulher vendada e encolhida, cercada de lâminas afiadas. A figura feminina na carta parecia insegura, a um ou dois passos de se cortar na lâmina. Tentou se lembrar das palavras-chaves para a interpretação. Desafios. Fracasso. Medo. Dor.
Todo o naipe de espadas estava relacionado ao ar e à mente, a maioria das cartas falavam sobre momentos difíceis e conflitos exaustivos mentalmente. Não ficou surpresa quando viu o Nove de Espadas como a última carta, anunciando fragilidade, aflição e preocupações excessivas.
Não era surpreendente. A carta exibia uma pessoa sentada na cama, a cabeça entre as mãos e várias espadas acima de sua cabeça, como se tivesse acabado de sair de um pesadelo. Nada poderia ser mais descritivo sobre seus sentimentos do que isso.
— Só estou tentando lidar com todas as mudanças, tem sido difícil — explicou sem querer se estender muito. Tinha medo de falar e falar e descobrir todos os medos atolados dentro do peito.
— Aislinn...
— Não quero falar sobre isso, por favor — pediu, a voz soando mais aflita do que planejava. — Ainda não tive tempo para entender todas as mudanças, só preciso de um pouco de tranquilidade para conseguir colocar tudo no lugar. — Eu espero, complementou mentalmente, porque não sabia se todo o tempo do mundo seria suficiente para conseguir compreender sua nova realidade, o fato de não ter um coração batendo.
Nada disso parecia certo. Cada vez que se lembrava de seus poderes sentia um certo pânico no peito, um sentimento de estranheza.
— Vai falar comigo se precisar, não vai? — pediu Lena, sentando-se ao seu lado na cama e passando os braços ao seu redor. Aislinn assentiu lentamente, deslizando para mais perto dela e ajeitando-se em seus braços.
Ficaram em silêncio por um momento, Aislinn observou as prateleiras cheias de cristais e velas acesas, as chamas coloridas dançando suavemente.
— Meus avós sabiam que você é... — perguntou com uma voz baixa e insegura, mas Lena se surpreendeu mesmo assim. Ela demorou um pouquinho para responder, seus lábios se curvaram com tristeza quando respondeu.
— Bissexual. E não, não sabiam. Tentei contar para uma tia uma vez, ela disse que era só uma fase porque eu não conseguia confiar em homens depois de ter você — completou Lena, e Aislinn viu quando ela revirou os olhos com força, os lábios tensionados de uma forma incomodada. — Seus avós são muito conservadores, então não contei porque achei que não reagiriam bem — explicou com a face baixa. Os olhos dela, sempre tão vívidos e iluminados, tinham um tom de dourado nublado e fechado. — E eu tinha você, tinha medo de que se eu contasse... talvez te afetasse também, tinha medo de que eles achassem que eu não era uma boa influência. Eu planejava contar quando fosse independente, quando nós morássemos sozinhas e eu já estivesse nos bancando, assim poderia me impor se precisasse.
— Mas isso nunca aconteceu — completou Aislinn, baixinho e quase engasgando, a garganta pesada. Era difícil pensar em tudo o que ela perdera, porque costumava pensar mais em si mesma, em como tinha sido crescer sem a mãe.
— Não — respondeu Lena, mordendo o lábio de leve e com um sorriso triste. — A primeira garota que eu beijei, a primeira com quem me relacionei, foi Emma— disse ela, se inclinando para pegar uma foto na mesa de cabeceira. Esticou para Aislinn um porta-retrato em que estava com uma garota loira sorridente, traços gorduchos e bochechas rosadas, resplandecente. — Eu estava grávida e perdida, o colégio era um lugar hostil, então ela se transferiu para minha turma no meio do ano e viramos melhores amigas, pouco depois percebemos que éramos algo a mais. Ela foi comigo às consultas, aos ultrassons, me ajudou a passar por tudo isso e me divertir no processo, aproveitar as coisas boas. Emma foi a primeira te segurar no colo, depois da minha mãe — relatou. Aislinn observou melhor a menina, lembrando-se de já ter visto aquela foto antes, perguntando-se quem era a garota loira, absorvendo seus traços rechonchudos e imaginando qual a história da amizade das duas. — Você a amava, só dormia no colo dela.
— E o que aconteceu depois? — perguntou e depois se arrependeu, porque tinha certo medo da resposta. Lena deu de ombros, mas não havia tristeza e nem mágoa em seu olhar, só uma tranquilidade suave e calma.
— O ensino médio acabou, ela foi aprovada em uma faculdade do outro lado do país, eu tinha você para cuidar e estava ajudando meus pais com a confeitaria.
— Sinto muito — disse Aislinn, sem conseguir encará-la. Crescera na loja de confeitaria dos avós, sentindo cheiro de açúcar queimado, roubado docinhos e comendo as sobras de glacê. Era tão familiar que quase conseguia imaginar Lena lá, entre as massas e cupcakes, concentrada na tarefa de colocar o chantilly no bolo.
— Não sinta, às vezes relacionamentos acabam e tudo bem, a maioria das coisas acabam um dia, não quer dizer que não foi bom ou que precisa ser esquecido — garantiu ela, abrindo o um sorriso. Aislinn ainda não conseguia encará-la, sentindo-se estranhamente culpada e triste, Lena percebeu isso e lhe abraçou com força, lhe beijando na testa. Aquilo era tão bom, tão espontâneo e amoroso que desejou ter crescido com ela lhe dando beijos na testa. — Eu não mudaria nada, juro. Obviamente, só mudaria isso para ter mais tempo com você — disse, apontando para todo o quarto como se quisesse se referir à dimensão, ao fato de estar morta.
Aislinn riu fraquinho, abraçando-a mais forte.
— Seria incrível ter crescido com você como mãe — sussurrou, a voz trêmula por causa das lágrimas que tentava conter. Sentia o cheiro suave de incenso nos cabelos dela, doce e fresco como hortelã.
— Seria incrível ser sua mãe — respondeu Lena, acariciando seus cabelos de maneira suave. — Aliás, foi Emma que sugeriu seu nome, ela disse que era poético e que lhe lembrava das estrelas — contou, e aquilo fez Aislinn sorrir, pensando nos detalhes dourados do teto, que parecia cheio de estrelas. Ficaram ali por um tempo, abraçadas e aproveitando o momento, porque não sabiam quando teriam a chance de fazer isso de novo.
Queria memorizar o abraço dela, memorizar o beijo na testa, porque isso era tudo o que teria para se agarrar depois que saísse dali.
Ficou surpresa e assustada quando alguém bateu à porta, mas Lena se levantou com calma e se afastou. Quando ela abriu, Aislinn não conseguiu conter o leve arfar espantado.
— Preciso da sua ajuda — disse Sara, e Aislinn tinha os olhos presos nela, observando os cabelos longos e soltos, caindo em um mar escuro sobre os ombros, a pele pálida com o brilho da lua, os olhos obscurecidos e preocupados.
Uma onda de poder irradiava ao redor de Sara, era possível sentir em sua pele do mesmo modo que sentia um raio do sol ou uma brisa fria. Ela continuava a mesma, a aparência delicada e pequena, mas muito, muito mais poderosa.
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