
Um Sacrifício | Capítulo Dez
A marca lhe incomodou a noite inteira, assim como as palavras de Bethany.
Aislinn quase não conseguiu dormir com a dor ardente abaixo das costelas, tentava fechar os olhos e era interrompida pelas palavras da garota. Cuidado para não se afogar na própria hipocrisia.
Talvez ela estivesse certa, talvez a decisão de fazer um acordo com Asmodeus fosse um grande erro irresponsável. De qualquer forma, havia chegado longe demais para recuar agora, sentia sua energia mudando, se transformando. A dor que havia sentido quando tentara tocar Bethany, o modo como o colar lhe repeliu...
Conseguiu adormecer depois de muito esforço para calar sua mente, sem se dar ao luxo de refletir demais suas decisões. Se deixar Asmodeus se aproximar era um erro, já não podia fazer mais nada para mudar.
Sonhou com uma igreja, caminhava com pés descalços sobre o chão sujo do local. Símbolos estavam pintados em sangue na parede de madeira, um mar de velas acesas iluminava o local de maneira fantasmagórica, projetando sombras sobre todos os cantos.
Se encolheu com a onda de frio intenso, tremendo enquanto observava o lugar e o estômago revirava. Aislinn acordou quando o sol já estava nascendo, os músculos doloridos porque havia se encolhido entre as cobertas, querendo se aquecer.
Em um impulso, levantou e trocou a roupa. Enquanto escovava os dentes, pensou no dia em que Sara assumira seus poderes de líder infernal. Mamon havia usado uma igreja abandonada no fim da cidade, sua mãe havia dito.
Não estava considerando as consequências quando entrou no carro e começou a dirigir. Ainda era muito cedo, o sol nascia enquanto acelerava pela rodovia, o comércio começando a despertar. Observou a cidade girar ao seu redor e então ficar para trás quando se aproximou da saída.
Achou a igreja com facilidade, era uma construção simples de madeira com uma cruz se erguendo do telhado. Um local sujo, sombrio e caindo aos pedaços.
Ficou no carro por alguns segundos, tentando tomar coragem. Lembrou-se do sonho, da sensação aterrorizadora e da escuridão que cercava o local.
Finalmente saiu do carro e bateu a porta quando avançou para a igreja, colocando o celular no bolso. Mal tinha se aproximado das escadarias quando sentiu o aparelho vibrar e tocar, o que lhe surpreendeu. Não estava esperando nenhuma ligação, principalmente tão cedo.
Prendeu a respiração quando o nome de Bethany surgiu na tela. Atendeu a chamada com os dedos tensos.
— Beth? — Ouviu um suspiro aliviado do outro lado da linha.
— Eu tive um sonho estranho. Estava na igreja abandonada, havia símbolos, sangue e... — Ela parou por um momento, falando um pouco rápido demais. Aislinn soltou a respiração, aliviada ao perceber que ela parecia bem. — Você está bem? — perguntou. Aislinn mordeu o próprio lábio e começou a subir as escadarias da igreja, escutando a madeira rangir.
As portas estavam abertas para um salão nada convidativo, ainda intocado pelo sol nascente. Adentrou-o com cuidado, os passos fazendo barulho enquanto os olhos se acostumavam com a penumbra.
— Sim, eu... — Sua voz falhou.
As paredes estavam todas cobertas com símbolos grotescos, pintados com alguma coisa grossa e coagulada. Sangue. Aislinn sentiu o estômago revirar, o cheiro pútrido ardendo no nariz e na língua, infestando todo o local abafado.
Virou-se lentamente para o altar, contendo uma ânsia de vômito, e foi então que viu. Suas mãos tremeram ao celular, cambaleou para trás e bateu contra a parede.
— Aislinn? — chamou Bethany, e Aislinn não conseguia encontrar as próprias palavras.
Havia um cadáver sobre a velha mesa de madeira que servia como altar. Rodeado por uma poça de sangue seco e fétido, tinha a pele dilacerada e a carne exposta, tão desfigurado que mal tinha face.
Era um corpo masculino, percebeu. Um corpo masculino dilacerado e a pele esculpida com os símbolos que via nas paredes ensanguentadas.
— Seu pai está por perto? Preciso falar com ele, é urgente — pediu, a voz falhando enquanto tentava levar o ar para seus pulmões. Era cada vez mais difícil respirar.
Por alguma razão, Bethany não fez nenhuma pergunta. Talvez tivesse percebido a urgência em sua voz, porque ela lhe pediu para esperar por um segundo, até que Liam atendeu a chamada.
— Aislinn? O que houve? — Aislinn não conseguiu conter o alívio, encolhida contra a única parede não marcada pelo sangue, tentando não sufocar com o ar abafado e frio da igreja.
— A igreja abandonada está cheia de símbolos demoníacos — disse, observando o cadáver do outro lado do salão. De uma forma ou de outra, precisaria se aproximar dele. — Há um cadáver humano aqui. Está dilacerado, todo marcado com os símbolos. Não sei se devo chamar a polícia, ou se... — Parou de falar, balançando a cabeça. Era tolice chamar a polícia, deveria simplesmente se virar e sair dali. Eles fariam muitas perguntas, pediriam muitas explicações que não poderia dar. — Beth está bem? Talvez deva ficar de olho nela, há alguma coisa muito errada. Parece que arranjaram outro sacrifício — disse, finalmente se afastando da parede e atravessando a igreja a passos lentos. O chão tinha uma trilha de sangue, percebeu, como se o homem tivesse lutado e sido arrastado até o altar.
— Me mande fotos dos símbolos, tente não tocar e nem alterar nada — pediu Liam, e Aislinn concordou com uma voz baixa. — Não chame a polícia, só saia daí. Vou encaminhar as fotos para Rafael e vamos verificar, depois decidimos o que fazer — complementou. Ele não precisou falar duas vezes, Aislinn estava ansiosa para sair daquele lugar.
Quando desligou o celular, aproximou-se do corpo com a respiração presa. A pele dele estava suja de lama, sangue e dilacerada por cortes, Aislinn também conseguiu ver um desenho familiar abaixo da costela, quase como uma tatuagem.
Era um símbolo igual ao seu.
« ♡ »
Aislinn não conseguia focar nos livros e nas fichas que tinha para organizar. Seus pensamentos ficavam voltando para a marca na pele destroçada do cadáver, para o momento em que havia corrido para fora da igreja e vomitado no gramado.
Não se lembrava de como havia chegado à biblioteca, mas lembrava-se das mãos trêmulas no volante e a respiração fraca. Não conseguia deixar de pensar no cadáver, nos cortes grotescos e na carne exposta.
Ouviu o sino da biblioteca tocar e levantou o rosto, entediada com o pouco movimento daquele dia. Esperava Liam, talvez Rafael, mas não ficou surpresa quando Bethany entrou, ainda com a mochila nos ombros.
— Meu Deus, você nunca vai para a aula? — indagou, percebendo que ainda estavam no meio da manhã, em pleno horário escolar. O dia estava demorando para passar.
— Não tive os dois últimos períodos — respondeu, dando de ombros. Ela se inclinou sobre o balcão de recepção, dobrando os braços sobre ele. — E então? Conseguiu descobrir algo sobre os símbolos? — perguntou, com um ar de interesse que fez Aislinn levantar as sobrancelhas.
— Você não vai para aquela igreja, mesmo que eu tenha que te amarrar aqui — respondeu imediatamente, antes que a menina pudesse dizer mais alguma coisa. Bethany inspirou de forma impaciente.
— Não quero ir para lá, as fotos foram assustadoras o bastante — disse. Aislinn estava empilhando alguns livros e parou no meio do movimento, forçando uma expressão assustada.
— Quem é você? O que fez com Bethany Crowford? — Mais uma vez, Bethany revirou os olhos com impaciência, inclinando-se sobre o balcão enquanto lhe observava.
— Estou aqui para pedir desculpas sobre ontem — falou, e Aislinn mantinha o olhar baixo nas fichas de devolução, carimbando-as com rapidez. — Não que eu ache uma ideia inteligente fazer um acordo com Asmodeus, mas... — Deu de ombros, expressando certa indiferença. O erro é seu, lide com ele, parecia dizer.
— É uma longa história — respondeu, sem querer dar mais informações. Pegou uma das pilhas de livros nos braços, se virando para contornar o balcão e devolvê-los às estantes.
— Imagino — disse Bethany, enquanto lhe seguia pelo labirinto de mesas de estudo. — Na verdade, isso é ótimo. Agora tenho algo para jogar na sua cara se você me chamar de irresponsável — comentou com ironia, ao parar entre uma das estantes. Aislinn suspirou. Aquele tom irônico e sarcástico se parecia tanto com Sara. — Eu achei uma coisa — anunciou, chamando sua atenção. Ela estava mexendo na bolsa enquanto Aislinn se livrava da pilha de livros. — Reconhece? — perguntou, lhe esticando uma fotografia.
Aislinn estava surpresa por ela ter deixado Asmodeus de lado, mas não falou nada. Inclinou-se, percebendo que ela tinha uma foto de Sara em mãos, sentada ao lado de uma garota loira sorridente. Mãe de Ash, se bem se lembrava.
Ash e Bethany viviam juntas quando ela estava na cidade.
— É o mesmo símbolo pintado nas paredes — disse a garota, apontando para a clavícula exposta de Sara. Aislinn precisou estreitar os olhos para ver os contornos do que parecia ser uma tatuagem. — Desde então a marca se expandiu, moldou-se à energia dela, mas a de Lilith permanece igual — explicou. Aislinn precisou de alguns segundos para colocar as informações em ordem, percebendo que já sabia desse elo de Sara com Lilith.
— Seu pai tinha dito que os símbolos na floresta são de sacrifício, boa parte da vegetação estava morta — relatou, percebendo como a energia dos desenhos sugava a vida de tudo ao redor. — Alguns dos símbolos na igreja eram iguais, outros são totalmente novos — disse, lembrando-se dos traços grotescos pintados com sangue. Seu estômago revirou-se em protesto.
— Você quer dizer que eles estão sugando energia? Tanto da natureza quanto do... sacrifício? — refletiu ela, os olhos brilhando de forma pensativa. — Essa energia precisa ir para algum lugar, uma invocação, talvez. Quem sabe um portal por onde Lilith possa passar — devaneou, e Aislinn mais uma vez quis recuar com as próprias palavras.
— Ah, não — murmurou, apoiando as costas na estante e suspirando. — Você está com aquele olhar.
— Eu preciso ir até lá — afirmou Bethany, com confiança.
— Você acabou de dizer que não queria ir — apontou Aislinn, sem ânimo. Olhou em volta para conferir se ninguém ouvia a conversa estranha, mas a biblioteca estava quase vazia.
— Eu mudei de ideia! — exclamou a menina, balançando os cabelos escuros. — Se eu tenho essa ligação com Lilith, talvez eu possa destruir os símbolos. Li sobre isso também, posso destruir tudo aquilo e mandar a energia de volta para a natureza. — Aislinn vacilou, percebendo que aquilo não era uma ideia tão terrível assim.
Destruir os símbolos, acabar com tudo aquilo antes de começar. Estavam ficando sem tempo, sabia disso, talvez Bethany pudesse resolver aquilo em alguns poucos minutos.
— Se eu te levar lá, seu pai me mata — afirmou, recobrando a lucidez e cruzando os braços. — E sua mãe dá um jeito de acordar para ajudá-lo — complementou. Bethany tinha um olhar pensativo, estava abrindo a boca para falar algo quando Aislinn lhe interrompeu. — Não! Você não vai sozinha! Fale com seu pai, nós voltamos a conversar se ele consentir — disse, com rigidez. A garota apenas revirou os olhos com um ruído frustrado e se virou para ir até a área de estudos.
« ♡ »
Aislinn conseguiu lhe convencer a não ir para a igreja, argumentando que era melhor esperar por notícias de Liam e Rafael. Bethany concordou com relutância, passando o resto da tarde na biblioteca.
Ficou empoleirada no velho sofá de couro enquanto lia, ouvia música e desenhava, observando Aislinn trabalhar. Fizeram uma pausa para comer, tomaram chá quando ela tivera tempo e a tarde foi escorrendo de forma tranquila e lenta.
Só tiveram notícias de seu pai no final do dia, quando ele pedira para Aislinn lhe encontrar no necrotério do hospital.
— É claro que eu vou também — afirmou, mesmo que Aislinn não estivesse animada com a ideia. Não havia muito que ela pudesse fazer.
Sentia um tipo de empolgação sombria quando chegou ao necrotério, como naquelas séries sobrenaturais que costumava a assistir. Seu pai não pareceu surpreso ao lhe ver ali, mas Bethany teve de insistir para que ele lhe deixasse entrar para ver o corpo.
Aparentemente, ele e Rafael haviam dado um jeito no cadáver da igreja, os anjos haviam trabalhado para que ele fosse cuidado sem o questionamento dos legistas. Não sabia exatamente como fizeram aquilo, mas talvez fosse algum tipo de manipulação mental. Bethany exalava ansiedade quando seguiram por um corredor cinzento e sem graça, até que seu pai parou diante de uma porta grossa de metal.
Estava com o jaleco do hospital e com luvas de borracha, provavelmente usadas para analisar os corpos.
— Rafael está no bosque, encontrou outro corpo lá — disse ele, e Bethany trocou olhares com Aislinn. — Mesma situação. Muito sangue e os mesmos símbolos, trouxemos para cá para analisar melhor — continuou, abrindo a porta lentamente.
Bethany não sabia o que esperar. Estava bem frio ali dentro, tudo muito cinza e rodeado por gavetas de metal que subiam do chão ao teto, engolindo-lhe em um mar metalizado.
Sobre duas macas alinhadas no centro da sala, estavam os dois corpos, cobertos levemente com lençóis brancos. Bethany escolheu focar no da direita percebendo que sua pele estava limpa, então podia ver todos os cortes expostos e os símbolos se formando com clareza.
Era muito melhor ver os símbolos assim, considerou a menina. Era quase como se pudessem falar quando se aproximou. Esqueceu-se de que eram dois cadáveres, de sua pele pálida e dilacerada, pensou apenas nos símbolos.
Aislinn cambaleou para trás com um gemido de dor.
— A marca — disse ela, quando os outros dois se voltaram para encará-la. Estava pálida contra o ambiente cinzento. — É como se ela tivesse se conectando com eles, ou algo assim. O que me faz pensar... Por que não estou morta? — murmurou, e Bethany ficou sem voz, entendendo o que ela queria dizer. Ninguém havia aparecido para tentar sacrificá-la ou algo assim.
Voltou a atenção para os símbolos, que sussurravam como uma coceira no fundo da mente.
— Acho que é uma via de mão dupla para a invocação. Duas âncoras mortas, duas âncoras vivas — disse, piscando como se estivesse acordando de um transe. Em um primeiro momento, ficou surpresa com a própria constatação. — Você tem o símbolo e eu tenho uma conexão com Lilith, mesmo que seja mínima — murmurou, voltando-se para Aislinn. Ela trocou olhares com Liam, que estava com os lábios pressionados e os olhos obscurecidos.
— Sara — murmurou ele, apenas. Todos compreenderam. Sara não estava ali, seu corpo estava vago. Ela tinha conexão com Lilith, um caminho todo livre. — Acabei de sair do quarto dela, parecia tudo normal e estável, mas...
— Preciso ir para a igreja — falou Bethany, com firmeza.
— De jeito nenhum — retrucou seu pai, quase no mesmo momento. A menina olhou para os dois cadáveres estendidos sobre o metal, sentindo o estômago embrulhar.
— Vocês precisam ficar e garantir que Lilith não acorde no corpo a mamãe, eu posso ir até a igreja e destruir os símbolos enquanto isso — insistiu, levantando o olhar e tentando parecer segura. — Vocês impedem que ela saia daqui, eu a mando de volta para o inferno — continuou, com mais confiança do que realmente sentia.
— Beth... — Liam ainda não parecia convencido, precisaria insistir mais um pouco.
— Lilith não está atrás de mim, vocês vão mantê-la longe, de qualquer forma. Destruir os símbolos vai ser rápido. — falou, encolhendo os braços com o frio do necrotério. Queria sair logo daquele lugar. — A igreja não é tão longe, cinco minutos se Aislinn me emprestar o carro. Vocês me avisam se houver qualquer problema, eu volto na hora — disse, e seu pai permaneceu com uma sobrancelha levantada, sem se abalar. Bethany cruzou os braços e revirou os olhos, irritada. — Ótimo, vocês dois têm alguma alternativa melhor? Porque enquanto estamos discutindo, Lilith está arranjando um jeito de voltar — disse, os lábios contraídos com desdém.
Aislinn e seu pai trocaram olhares silenciosos, alguns segundos se passaram em silêncio. O loiro assentiu levemente, mesmo a contragosto. Aislinn suspirou e esticou as chaves do próprio carro, já que ainda tinham o de Liam caso precisassem sair dali.
Seu pai lhe encarava com seriedade.
— Se você não voltar em quinze minutos, nós vamos atrás de você — falou ele, com mais firmeza do que jamais ouvira. — Mantenha o celular nas mãos — avisou, e Bethany abriu um sorriso, assentindo. Pouco depois, se virou e acelerou os passos, ansiosa para sair do necrotério.
« ♡ »
Aislinn seguiu Liam pelos corredores do hospital, ele dava passos apressados para chegar ao quarto de Sara.
O hospital não era muito diferente do necrotério, com seu ar frio e paredes brancas, as macas espalhadas pelos corredores. Manteve-se calada, tentando não pensar no quanto a marca pulsava abaixo da blusa, como se estivesse viva.
Estava assim desde que havia entrado no necrotério.
Finalmente Liam parou em uma porta no fim do corredor, abrindo-a quase imediatamente. Ele murmurou algum xingamento e então pegou o próprio celular, mexendo no aparelho com urgência e então o levando ao ouvido.
— O que houve? — perguntou Aislinn, tensa.
— Ela não está aqui — disse, e então se afastou para que Aislinn pudesse ver o quarto. Ofegou, levemente zonza. A cama tinha lençóis bagunçados e as máquinas apitavam, mas o quarto estava vazio.
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