Tentar | Capítulo Cinquenta
A música estava tão alta que fazia seus ossos pulsarem junto, Bethany queria dar meia volta e ir embora. Desta vez, a multidão, a música e o cheiro de álcool não serviam de consolo nem eram reconfortantes.
Talvez fosse o fato de estar muito longe de casa, de não conhecer ninguém na multidão, ou as músicas que nunca ouvira antes. Apesar disso, decidiu que daria uma chance para a festa de boas-vindas da Faculdade de Manchester.
Devia isso a si mesma. Devia isso a sua mãe. Tentar. Era por isso que estava usando sapatos que eram de Sara, porque queria sentir que ela estava próxima, quem sabe isso lhe desse sorte.
Estava ali para recomeçar, conhecer novas pessoas — e talvez, só talvez, ser um pouquinho feliz num continente totalmente novo e muito longe de tudo que considerava como casa.
Os veteranos do curso lhe deram boas-vindas e puxaram assunto, Bethany pegou uma bebida sem álcool e tentou se entrosar. Estava num grupo com cinco pessoas, mas com o passar da noite, algumas foram embora, outras saíram para comer em algum lugar, acabou ficando praticamente sozinha quando a madrugada chegou.
Era um salão grande e lotado, cheio de gelo seco e luzes piscando, como uma boate. Se tivesse bebido qualquer coisa alcóolica, aquilo seria interessante e empolgante, mas as luzes estavam lhe dando dor de cabeça e a música era irritante. Fazia meses que não colocava álcool na boca por causa dos antidepressivos, se sentia muito melhor assim.
A festa não estava ruim, mas sentia-se entorpecida. Nada lhe deixava empolgada, então decidiu que era hora de ir embora, porque estava começando a ficar com frio. Era como voltar a ser a Bethany de dezesseis anos, que não gostava de festas e preferia Netflix em vez de uma multidão barulhenta — não sabia se isso era ruim ou bom. Era quase hilário que, na garrafinha de água que segurava, havia realmente água.
Atravessou a multidão e reconheceu poucas faces, estava tão focada nas portas de saída que não olhou para os lados, acabou esbarrando com alguém que vinha da esquerda.
Se virou e arregalou os olhos quando viu que havia feito um garoto derrubar o copo descartável cheio de vodca, o menino olhava para líquido derramado com os lábios entreabertos, um olhar vazio na face.
Bethany ofegou, sem saber o que fazer. Não sabia quem era o culpado, porque não estava prestando atenção enquanto andava, mas ele estava de frente para si, deveria tê-la visto antes de esbarrarem.
— Me desculpe, eu... — ela começou a falar, ignorando as luzes que faziam sua cabeça pulsar. Não teve tempo de completar, porque o garoto se inclinou para frente e de repente começou a vomitar, o vômito respingando em seus saltos e acertando a ponta dos sapatos de veludo preto.
Bethany ficou sem reação, o garoto parou de vomitar e levantou o rosto. A pele escura estava um pouco mais pálida, as luzes brincavam em seus cachinhos curtos.
Havia alguma coisa engraçada na expressão chocada dele, no modo como ele olhava para o vômito e depois para os sapatos, então levantava o olhar para lhe encarar. Bethany gargalhou e levantou a garrafa de água para ele.
— Você precisa disso mais do que eu — deduziu, e ele olhou para o líquido transparente em dúvida.
— Eu... — O garoto estava claramente desorientado, provavelmente havia bebido muito pela expressão confusa. Aquilo não era nada bom. Como podia simplesmente deixá-lo ali?
— Está bem? Precisa de ajuda? — Ele negou com a cabeça, Bethany revirou os olhos. — Você está com alguém?
— Meu amigo, eu não sei onde ele está. — Ele falou tão rápido e embolado que foi fofo, Bethany mordeu o lábio e parou para pensar por um momento. Não conseguiria simplesmente ir embora com o garoto naquela situação.
— Vem comigo, eu te ajudo. — Ele não protestou quando Bethany o puxou pelo pulso, mas parou mais uma vez para vomitar.
Havia um jardim com pessoas fumando e bebendo na entrada do salão, era mais calmo, já que a música ficava isolada dentro do prédio. Bethany o levou para lá, fez com que o garoto se sentasse num banco e bebesse a água.
Provavelmente tinham a mesma idade, as nuances da pele escura dele se destacavam na iluminação do jardim.
— Como é seu nome? — Ele demorou para responder.
— Kevin. — Bethany assentiu com um sorriso.
— Sou Bethany. — Antes que pudesse descobrir mais alguma coisa sobre o garoto bêbado, ouviu um toque alto de celular ecoar. Kevin pegou o aparelho com mãos desajeitadas e atendeu a ligação.
— Cara, eu tô numa festa — respondeu. Ele devia ter apertado sem querer no botão do alto-falante, porque Bethany ouviu o que foi dito em seguida.
— Eu sei, idiota, estou na mesma festa. — Aquilo lhe fez rir. Ouvia mesmo barulho de música e conversa por trás da ligação, a pessoa estava dentro do salão. — Em que lugar da festa você está? — perguntou a voz. Kevin olhou ao redor, mais uma vez confuso.
— Sei lá — respondeu, e Bethany revirou os olhos. O jardim estava quase vazio, felizmente, mas não queria arriscar deixar Kevin sozinho para buscar mais água, nem o levar para dentro de novo.
A ligação era sua única chance de ajudá-lo, ou teria de ficar ali até que ele estivesse minimamente sóbrio.
— Kevin, você está bêbado? — perguntou a voz, e Bethany pegou o celular antes quando viu que Kevin demorava para responder.
— Demais, estamos no jardim de entrada — disse, feliz por não estarem dentro do salão. Não precisava gritar para ser ouvida na ligação, diferente da pessoa do outro lado da linha.
Leu o nome no visor do celular. Julian.
— Chego em cinco minutos — garantiu Julian, e então desligou. Bethany devolveu o celular e fez com que Kevin tomasse o resto da garrafa de água enquanto esperavam.
Ele parecia muito bêbado para se importar em puxar conversa, então esperaram em silêncio e, pouquíssimo tempo depois, um garoto saiu pela porta e respirou aliviado quando viu Kevin. Ele tirou os cabelos castanhos do rosto enquanto atravessava o gramado.
— Você está aqui! — exclamou, então voltou-se para Bethany com um olhar confuso. Bethany apontou para a garrafa de água nas mãos de Kevin.
— Fiz com que ele tomasse uma garrafa de água, estava muito mal — explicou, e Julian assentiu, indo em direção ao garoto e o puxando para que ele se levantasse.
— Obrigado — agradeceu entre as reclamações de Kevin, que não queria sair dali. Julian girou um molho de chaves na mão. — Ele é como uma criança, não posso perder de vista cinco minutos. — Bethany concordou com uma risada, Kevin fez uma careta enquanto Julian o puxava na direção do estacionamento.
— Chato — reclamou ele, foi só então que Julian baixou o olhar e notou os sapatos sujos de Bethany. Ele arregalou os olhos.
— Meu Deus, você vomitou nos sapatos dela? — Bethany não conseguiu conter a gargalhada, o que confirmou a situação para Julian. — Kevin, peça desculpas. — Julian já estava puxando Kevin para fora, mas Kevin se virou rapidamente e gritou por cima da música.
— Desculpa. — Bethany apenas assentiu levemente, então viu os meninos desaparecerem no meio de outras pessoas na entrada do estacionamento.
Estava prestes a ir embora, estava perto do dormitório e conseguiria ir a pé, mas assim que deu dois passos o celular vibrou na pequena bolsa que havia levado junto.
Provavelmente havia conseguido conectar com a internet de algum lugar, porque a internet do salão estava péssima com tanta gente usando. Pegou o celular para olhar a mensagem.
Noah Crowford [03:33am]: Terminei com o Nick.
« ♡ »
Bethany não sabia o que esperar das aulas, muito menos sabia se gostaria do curso. Mas estava ali para tentar. Era esse seu foco. Daria tudo de si, se não desse certo... recomeçaria em outro lugar.
Sentia-se tão distante de tudo que estava desesperada para achar qualquer conexão, com algo, com alguém, o que quer que fosse. Talvez o curso lhe ajudasse com isso.
O professor já estava na sala conversando com os alunos, Bethany escolheu uma cadeira aos fundos e observou os colegas. Ninguém lhe chamou atenção, ninguém além do garoto de cabelos encaracolados na primeira fileira de cadeiras.
Conhecia aqueles cabelos crespos, mas não havia percebido o brinco na noite da festa. Kevin parecia o mesmo, só que agora sóbrio. Aquilo lhe fez sorrir.
O professor começou uma introdução sobre algumas pinturas, Bethany tentou prestar atenção e fazer anotações. Era uma das poucas pessoas fazendo anotações em papel, o resto da turma usava aparelhos eletrônicos.
Quando o professor começou a falar sobre o ponto em comum das obras que havia mostrado, um dos alunos comentou que despertavam sexualidade como um instinto básico de todo ser humano. Aquilo lhe deixava enjoada. Por que as pessoas presumiam que atração sexual era instinto básico de todo ser humano? Se não sentia atração sexual, perdia o direito de ser humana?
Bethany suspirou e olhou para o broch com a bandeira assexual que havia fixado na jaqueta. Era um acessório bem visível, listrado de preto, cinza, branco e roxo. Estava agarrada com aquela jaqueta jeans desde que havia acordado no hospital com ela lhe cobrindo, ainda com o perfume de Sara.
— Isso não é um instinto básico para todo ser humano, nem deveria ser. — Bethany estava com a garrafinha de água na boca quando Kevin falou, quase engasgou-se com o líquido. Ele dissera calmamente o que Bethany tinha entalado na garganta. — Existem pessoas assexuais, como eu. Atração sexual não é um instinto básico para mim. — Bethany não conseguiu conter um ofegar surpreso, o coração levemente disparado. — Inclusive, sou negro, então posso falar a manhã inteira sobre como é crescer sendo assexual num corpo que as pessoas tendem a sexualizar. — Quis bater palmas, ir sentar-se ao lado dele para continuar ouvindo-o. O professor falou alguma coisa e desviou do assunto, mas Bethany continuou pensando naquilo pelo resto da aula.
Foi só quando foram dispensados que conseguiu se aproximar de Kevin. Havia acabado de colocar as coisas na bolsa, ele ainda estava guardando um notebook na mochila quando Bethany parou ao lado da mesa dele.
— Ei — chamou a atenção do garoto. Kevin se virou e ficou surpreso ao lhe reconhecer, seus lábios se entreabriram e então seus olhos desceram para o broche pendurado na jaqueta.
— Você é... — Bethany assentiu com a cabeça e sorriu.
— Só queria agradecer por ter contestado aquilo, eu não estava aguentando — agradeceu, e Kevin riu, coçando a nuca de um modo meio constrangido.
— Foi nos seus sapatos que vomitei na recepção dos calouros? — perguntou lentamente, desta vez mexendo nervosamente na barra da camiseta, um gesto que era bem fofo.
— Eu mesma — confirmou Bethany, ajeitando a mochila nos ombros. Kevin balançou a cabeça e passou a mão pelos cachos escuros.
— Me desculpe, de verdade. Eu estava muito bêbado para me desculpar e agradecer propriamente — ele falou muito rapidamente, quase atropelando as palavras. Bethany balançou a cabeça para sinalizar que estava no passado.
— Eu sei, está tudo bem — garantiu automaticamente, porque estava mesmo. Fora o único ponto divertido da noite.
— Quer tomar um café? Acho que te pagar um é o mínimo que posso fazer depois do fiasco na festa — sugeriu ele, porque teriam um intervalo de quinze minutos até a próxima aula. Havia várias cafeterias perto da universidade que Bethany estava interessada em conhecer, mas precisou recusar.
— Na verdade, esqueci os materiais para a próxima aula, então acho que vou buscar no dormitório — disse com um suspiro frustrado, mas então sorriu levemente. — Mas aceito companhia, podemos tomar café lá, se quiser — ofereceu, Kevin aceitou.
Foram conversando durante todo o caminho, não era muito longe dali. Descobriu que tinham muitos gostos em comum para séries, a conversa fluía fácil enquanto caminhavam juntos.
Bethany gostava de seu quarto ali, era bem ventilado e iluminado, havia enchido de colagens e pequenas decorações. Abriu a porta e Kevin entrou logo depois, Bethany foi direto para uma garrafa térmica em cima da escrivaninha e serviu duas xícaras, depois esticou uma para ele — havia feito pouco antes da primeira aula, ainda estava quente.
Kevin riu.
— Ainda estou te devendo um café — acrescentou ele, quando deu um gole no líquido. — Com donuts extras porque você ainda teve paciência para me ajudar. — Bethany revirou os olhos, mas gostava da ideia de estar numa cafeteria com ele, falando sobre livros, séries e qualquer assunto que surgisse.
Bethany terminou o café e foi pegar o livro que esquecera. Quando terminou de arrumar a mochila, percebeu que Kevin encarava um dos porta-retratos na mesinha de entrada.
Era uma foto em que estava com Sara, seu quarto estava cheio de fotos e desenhos dela. O quarto era pequeno, mas o enchera com fotos da família, desde o mural em cima da cama, até os porta-retratos espalhados em cima da cômoda e os desenhos fixados na parede.
Aquele lugar se tornara um refúgio que desde que chegara ali, o único ponto familiar que tinha em Manchester, em toda a Inglaterra.
— É minha mãe — disse com um sorriso melancólico. Pelo menos conseguia falar aquilo sem desabar em lágrimas, estava ficando mais fácil falar dela com o tempo.
— Vocês se parecem muito — disse Kevin, e Bethany não tinha como discordar. Naquela foto, tinham o mesmo sorriso, os mesmos cabelos escuros e longos.
— É o que as pessoas costumavam dizer — deu de ombros, e Kevin ficou em silêncio por alguns segundos, processando a informação.
— Sinto muito — disse sinceramente, lhe olhando com empatia. Se perguntou se ele já passara por algo parecido, porque Kevin parecia calmo e não muito assustado com a revelação, não como os outros ficavam. Gostou daquilo, de ele não ficar tão surpreso e nem lhe olhar com pena. — Faz muito tempo?
— Quase quatro meses. — Sentou-se na ponta da cama, olhando para a foto e pensando em como suas versões passadas pareciam felizes. — Acho que as primeiras semanas passei meio dopada de antidepressivos, então não sei muito o que dizer, mas agora estou bem, eu acho. Consigo ver as fotos com ela sem chorar, é reconfortante — desabafou, porque era bom falar daquilo com um estranho, com alguém que não conhecia toda a história. Kevin assentiu com cuidado, depois passou os olhos pelo quarto.
— Você veio de longe — presumiu pelas fotos e pôsteres na parede. — Está gostando de Manchester?
— Acho que sim, consigo respirar melhor aqui, então é uma vitória — relatou. Manchester estava mesmo sendo um alívio, porque não havia nada ali para lhe lembrar do passado. Gostava de andar pelas ruas sem ter milhares de lembranças de tudo o que perdera.
Kevin baixou o olhar para o par de sapatos de veludo ao lado da porta, então mordeu os lábios levemente. Bethany havia tentado limpá-los, mas ainda tinham uma mancha esbranquiçada nas pontas, bem visíveis.
— Não se sinta tão culpado, tinta para tecido resolve — confortou-o com uma risada, mas Kevin olhava para a fotografia na mesinha, então para o veludo manchado. Ele arregalou os olhos de repente.
— Ai, meu Deus, eu vomitei nos sapatos da sua mãe. — Bethany franziu as sobrancelhas, então percebeu que Sara devia estar usando aqueles sapatos na foto. Não havia percebido, mas pelo tom desesperado de Kevin, eram os mesmos. — Me desculpe, eu... — Achou engraçado como as palavras dele estavam emboladas e rápidas demais.
— Kevin...
— Talvez eu possa levá-los para uma lavanderia, as manchas... — continuou ele, falando sem parar, tentando pensar numa solução. Bethany balançou a cabeça e o interrompeu.
— São só sapatos, ela só usou, tipo, duas vezes, e descobri que é porque eles são extremamente desconfortáveis — falou rindo, Kevin suspirou de uma maneira extremamente frustrada e tinha o olhar de um cãozinho arrependido quando lhe olhou.
— Jura?
— Tenho os calos no meu pé para provar — afirmou Bethany, não querendo que ele se sentisse mal. — Não teria usado numa festa com gente bêbada se me importasse tanto assim. — Bethany olhou para o relógio e então se levantou com a mochila nas costas. — Vamos nos atrasar se não formos agora — alertou, então saíram do dormitório. O dia estava ensolarado e frio, Bethany gostava do clima úmido dali.
Estavam conversando sobre qualquer aleatoriedade quando o assunto da assexualidade surgiu, logo começaram a discutir as próprias experiências. Era libertador conversar sobre aquilo com alguém que entendia, que vivenciava o mesmo.
— Primeiro pensei que era gay, porque eu realmente gostava do Julian, tipo, gostava num sentido romântico — comentou Kevin, o olhar perdido no horizonte, nos longos gramados do campus e na movimentação da manhã. — Por muito tempo, achei que só éramos amigos muito próximos e íntimos, porque nunca quis transar com ele e nunca tive pensamentos assim, mas eu me irritava demais quando ele estava com outras garotas. Nós tínhamos muita proximidade física e até chegamos a nos beijar uma vez, quando contei que era assexual e que estava a fim dele — contou, e Bethany processou tudo aquilo. Não acontecera exatamente assim consigo, mas lembrava-se de como achava estranho simplesmente não ter nenhum pensamento sexual sobre outras pessoas. Era um tanto confuso, porque ninguém nunca considerava essa opção numa sociedade que vivia ao redor do sexo.
— E o que aconteceu? — ela perguntou com curiosidade, e Kevin passou a mão pelos cachinhos com uma risada anasalada.
— Ele percebeu que é definitivamente hétero. — Bethany riu um pouco, caminhando junto com ele, aproveitando o sol e o vento que levantava seus cabelos. — Depois que percebi que sou assexual, isso me fez notar que também me sentia atraído romanticamente por pessoas em geral, então sou assexual panromântico — explicou com um sorriso. — E você?
— Infelizmente hétero, meu irmão jogou no ar a assexualidade e pesquisei sobre isso, não foi nada tão dramático assim — relembrou com uma risada. Ainda bem que havia decidido se abrir com Noah, e que ele havia a ajudado a se encontrar. Conhecer o modo como se relacionava com os outros era libertador e importante, a ansiedade de seguir o padrão imposto socialmente desaparecia e não se sentia impelida a fazer nada que não quisesse.
Talvez os sapatos tivessem dado sorte, afinal. Conhecera Kevin, fora com ele que dera sua primeira risada desde que chegara na Inglaterra.
« ♡ »
Elisa acordou com Clarissa do lado, as pernas dela dobradas embaixo do lençol, um livro no colo. Era uma imagem muito comum, fosse na dimensão humana ou ali. Era algo familiar, familiar como estar em casa, ou pelo menos deveria ser.
Clarissa sorriu quando lhe viu abrir os olhos e deixou o livro de lado.
A ruiva sentiu-se culpada porque deveriam estar se divertindo e explorando a dimensão no tempo livre, mas haviam abandonado os planos porque tivera uma crise de ansiedade e Clarissa ficara cuidando até que passasse.
— Se sente melhor? — Elisa não soube o que responder. Não, não estava melhor. Estava sufocada.
Objetivamente, sim, estava melhor, mas não bem. Deu de ombros para não precisar responder, Clarissa lhe encarou com aqueles olhos arroxeados atenciosos.
— O que aconteceu? — Elisa revirou-se na própria cama. Não estava com vontade de responder, nem de falar sobre aquilo. Ao mesmo tempo, sabia que Clarissa não lhe deixaria em paz enquanto não respondesse. — Desde que cheguei aqui, você nunca teve uma crise de ansiedade. O que está acontecendo? — perguntou num tom aflito, e Elisa respirou fundo. Deixou o olhar vagar até os porta-retratos na mesinha de cabeceira, pensando nas fotos, na sensação de vazio que elas abriam em seu peito.
— Eu não sei, só comecei a olhar as fotos e pensar demais — confessou num tom cansado, então abraçou Clarissa pela cintura e fechou os olhos por um momento. Era a verdade. Havia começado a olhar as fotos com Camila e Rafael, as fotos durante uma aula da Juilliard e pensar em tudo o que havia perdido, aberto mão.
Tudo o que nunca teria porque simplesmente não estava viva.
Nunca conseguiria dirigir algum musical, tornar-se conhecida por suas produções e apresentações. Nunca mais estaria de frente para uma plateia. Sentia falta disso, de poder sonhar e lutar por um futuro inalcançável.
— Você está distante — comentou ela, e Elisa abriu os olhos para encarar aqueles cachinhos de boneca envolvidos pelo véu do dossel ao redor da cama. O quarto parecia complementar a delicadeza e as bochechas de porcelana de Clarissa. — Distante como estava quando voltei para San Francisco depois que tudo aquilo aconteceu — a loira completou com cuidado. Elisa apertou os lábios e se sentou, Clarissa lhe envolveu com os braços.
Deitou a cabeça no ombro dela, afundando no abraço, no corpo da loira.
— Vou ficar bem, só preciso focar em outras coisas — disse lentamente, Clarissa lhe abraçou mais forte e puxou o lençol para lhe cobrir. Elisa sentiu-se reconfortada e mais leve com aquilo.
— Promete? — Clarissa continuou desconfiada, mas alguém bateu levemente na porta entreaberta antes que pudesse responder.
Lena tinha um sorriso preocupado quando entrou, ela colocou os cabelos curtos atrás das orelhas e foi se sentar na ponta da cama.
— Cass me contou que você não estava muito bem, trouxe algo que pode ajudar um pouquinho. — Ela esticou um colar simples com uma pedra amarelada que Elisa não conhecia, mas resolveu não perguntar o nome. Apertou a pedra entre os dedos antes de colocar o colar. Lena sempre dizia que os cristais não curavam tudo, mas eram catalisadores que ajudavam com um pequeno impulso. Elisa gostava da ideia. — Podemos conversar sozinhas? — Lena levantou o olhar para Clarissa, que fingiu uma expressão teatralmente ofendida.
— Vou beber com o Lucas e reclamar que estou sendo excluída do triozinho — protestou com uma careta, Lena riu e as duas se despediram com um beijo estalado. Clarissa fechou a porta quando saiu, Lena se aproximou até que estivessem sentadas lado a lado.
Elisa só percebeu que ela carregava o baralho de tarô quando ela remexeu numa caixinha de madeira que tinha no colo, a caixinha em que ela colocava os baralhos.
Ela hesitou um pouco antes de começar a falar.
— Eu fiz algumas tiragens para você — confessou num tom meio culpado.
— Lena...
— Sei que você não gosta que eu jogue cartas sem pedir antes, que nem gosta de tirar as cartas, mas fiquei preocupada e queria saber como podia ajudar — ela se justificou rapidamente, e Elisa assentiu com leveza. Ela estava preocupada, muito preocupada. Podia ver pela expressão tensa e ansiosa. — Qualquer um percebe que você não está confortável aqui, você parece tão perdida... e eu queria te ajudar a se encontrar, achar seu lugar nesta dimensão. — Elisa franziu as sobrancelhas, mas ela continuou a falar antes que pudesse responder. — Todas as cartas falam sobre viagem e renascimento, sobre partir para outro lugar. — Não soube o que responder. Ir para onde? Não era como se tivesse milhares de opções pare escolher, como se tivesse liberdade para transitar entre as dimensões.
— O que você está dizendo? — indagou, brincando nervosamente com uma almofada de paetês cor-de-rosa. Lena parou por um momento, lhe encarando de forma preocupada.
— Que talvez haja outro lugar, que talvez você não devesse estar aqui — disse cuidadosamente, e Elisa parou de brincar com os paetês para olhá-la.
— Eu tenho você e Cass, tenho Sara... não quero estar em outro lugar. — Também era verdade. Gostava de ensinar nos treinamentos avançados, das espadas e poderes, da biblioteca gigantesca e do lugar tão grande e bonito. Era sufocante às vezes, admitia isso, mas só porque ainda não conseguira se despedir totalmente da dimensão humana.
Mesmo depois de tanto tempo.
— Liz... — Lena negou com a cabeça, Elisa a interrompeu.
— Não vejo qual viagem preciso fazer, porque tudo o que quero está aqui — falou com firmeza. Não podia abandonar Onyx por um futuro incerto, não podia deixar as únicas três pessoas que eram a base de sua vida agora. Se é que podia chamar de vida.
Gostava da dimensão de querubins. Podia conviver com aquilo e aos poucos o passado e todo o desejo de ser humana se abafariam.
— Estou falando isso porque te amo, porque se eu me amasse, estaria te implorando para ficar — Lena soava aflita, ela abriu a caixinha de madeira e tirou de lá dois baralhos. Um tinha cartas grandes e coloridas, o outro era tão pequenininho que cabia no bolso. Ela lançou um olhar de dúvida para Elisa, que hesitou e então acabou assentindo. Não gostava de tirar tarô, mas se Lena insistia tanto, podia tirar uma ou duas cartas.
Esperou enquanto ela afastava o lençol e organizava os dois baralhos em linhas paralelas, espalhando-os para que as cartas ficassem visíveis. Um era o tarô propriamente dito; o outro, o que cabia no bolso, era o Baralho Cigano, percebeu. Lena havia explicado a diferença.
— Preciso que você tire uma carta de cada — pediu ela, e Elisa se concentrou para escolher as cartas que lhe pareciam certas. Demorou algum tempo, mas finalmente colocou-as lado a lado, uma carta grande e outra pequenininha.
Quando as virou, viu o arcano d'A morte na carta maior e a figura de um barco na carta menor. Tensionou os lábios. Sabia por cima o que elas significavam depois de ver Lena interpretar as cartas tantas vezes.
Metamorfose. Mudança. Viagem.
Era algo grande, se o arcano d'A morte estava envolvido. Havia muitas cartas sobre mudar e deixar coisas para trás, mas A morte era como um ponto exclamação. E o Barco... Não era viagem física em si, mas uma mudança muito longa, um processo.
— Saíram em quase todas as tiradas que fiz para você — Lena falou com um sorriso triste no rosto. Elisa a abraçou forte e inspirou fundo, tentando se acalmar.
Lena ficou mais um tempo ali, tentou lhe convencer a tirar mais cartas, mas Elisa não quis. Ela foi procurar Clarissa quando Elisa pediu para ficar sozinha.
Não ficou muito tempo no quarto também, saiu logo em seguida, antes que se afundasse na agonia do próprio peito.
O santuário estava iluminado como se lembrava, velas dançando nas paredes de cristais, tudo brilhando e brilhando. Sua mãe já estava lá quando chegou, como se sentisse que precisava de ajuda.
A abraçou sem dizer nada, sentindo-se segura em toda familiaridade dela. Quando se separaram, ela lhe guiou para um banco, dando brecha para que Elisa começasse a falar. Sentaram-se lado a lado, bem próximas.
— Lena acha que eu não deveria estar aqui — falou de uma vez, meio que vomitando as palavras. Maitê assentiu de maneira compreensiva, da mesma forma que uma figura onipresente faria. Ela sempre tinha essa postura de quem sabia de tudo.
— E o que você acha? — perguntou calmamente, e isso fez Elisa parar por um momento, tentando ouvir os próprios pensamentos. Sentia-se confusa. Confusa e perdida.
— Eu estou feliz aqui — disse por fim. Depois balançou a cabeça de maneira inconformada. — Ou, pelo menos, deveria estar — confessou com um suspiro longo, colocando o rosto entre as mãos. — Está tudo calmo. Sara e Azazel estão conseguindo organizar as coisas, tenho Lena e Clarissa, estamos seguras, juntas e felizes. Posso ter uma eternidade aqui — continuou falando, listando os motivos pelos quais deveria ser feliz ali, estar satisfeita com o que tinha. — Antes eu estava tão envolvida nessa loucura com Mamon, tudo estava tão agitado, que mal tive tempo de pensar no futuro, parar para pensar sobre o que isso significava. Agora que não há nada para me preocupar, que a maré se acalmou e não preciso ficar nadando desesperadamente o tempo inteiro, simplesmente não sei.
A voz de Lynn invadiu sua mente de uma forma incômoda.
Droga, Elisa, seus pais morreram e quando você finalmente colocou sua vida nos eixos, quando finalmente conseguiu seguir em frente e criar planos, entrar em uma faculdade renomada, sair de San Francisco e viver sua vida, você morreu e perdeu tudo.
A mãe lhe olhava sem qualquer julgamento.
— Mas não é isso que você quer. — Aquela foi uma afirmação.
— Eu não sei — soou tão aflita e agoniada quanto se sentia por dentro. — Eu comecei a olhar uma foto com Rafael, então comecei a chorar e entrei nessa crise de ansiedade horrível, como costumava acontecer nos meus primeiros momentos aqui — revelou num tom culpado, o que era ridículo. Não deveria se sentir culpada ou envergonhada por aquilo, por emoções que não conseguia controlar.
— Mas também não é por causa de Rafael — constatou a mãe, também uma afirmação. A voz de Lynn continuava falando aos fundos de sua mente.
Não foi sua escolha, sei disso. Fez isso porque sabia que as pessoas que você amava morreriam sem a sua ajuda, então quem morreu foi você. E ainda há uma parte sua que nunca vai se encaixar aqui, que deseja viver, ter uma carreira, se apaixonar e viver de música como você sempre quis.
— Eu o amo, é claro que amo, mas segui em frente — disse com sinceridade, então afundou no banco e olhou para cima, para o teto arqueado de cristal bruto. — Eu nunca quis ser mãe. Quando o vi com Naomi, com as filhas dele... Rafael parecia tão feliz, tão satisfeito com tudo aquilo, era um futuro que ele desejava, mas não era o que sempre quis para mim. Quando Sara estava grávida de Beth e Eric, eu me imaginei na mesma situação com Rafael, mas simplesmente não consegui me sentir tão feliz, nem lidar tão bem quanto ela. Achei que mudaria essa ideia, mas quando o vi com a filha dele, percebi que não — confessou. Ficava muito feliz por ele, por saber que ele havia conseguido o que queria, mas aquilo também lhe fez perceber que eram muito diferentes, desejavam caminhos que não se encontravam. — É mais o fato de que, quando eu estava com ele, eu criava planos para o futuro. Eu me imaginava em musicais, cultivando uma carreira e vivendo uma vida empolgante. — Tudo se apertou dentro de si quando admitiu aquilo, quando pensou em como Rafael lhe apoiava nas aulas de música, como ele parava tudo para lhe ouvir tocar. Ele sempre a havia apoiado em qualquer caminho, mesmo que esse caminho lhe levasse para longe dele. — Estou feliz por ele, só não consigo estar feliz por mim. Gosto de estar aqui, mas odeio o fato de não ter um futuro, o pensamento de uma eternidade em Onyx me dá calafrios e me faz enlouquecer — finalmente admitiu as palavras entaladas no peito, sentindo os olhos arderem com a confissão. Se encolheu um pouco, sua mãe se aproximou e passou o braço ao seu redor, lhe abraçando.
Elisa sentiu os olhos se encharcando com lágrimas.
— Liz...
— Mas se eu tentar... Se eu tentar achar algo que me faça ver um futuro aqui, talvez eu possa... talvez eu possa ficar e tentar ser feliz aqui...
— Liz — interrompeu sua mãe, lhe olhando com um olhar muito sério. Elisa foi engolida pelo silêncio, sentiu-se sufocada. Então soluçou baixinho, afundando nos braços dela.
Simplesmente começou a chorar, chorar sem saber exatamente o motivo. Sentia-se exausta. Exausta, perdida, agoniada. Queria gritar.
— Eu preciso ir — gaguejou entre as lágrimas, e Maitê suspirou levemente, lhe confortando em seus braços.
— Eu sei, querida, eu sei.
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